Loki no Rio de Janeiro

_ O que está acontecendo aqui?_ perguntou o homem para uma repórter que procurava se proteger da fúria de manifestantes.

_ Estão protestando, mas perderam a noção._ respondeu a repórter, ofegante.

A multidão se reuniu por volta das 18:00 horas e gritava palavras de ordem em frente ao portão do palácio duque de Caxias no centro do Rio de Janeiro. Estavam tentando invadir a fortaleza e o exército colocou um grupamento de soldados na calçada, com escudos e armados para impedir que os manifestantes fossem adiante.

O grupo protestava por um ato terrível que foi atribuído a soldados militares em uma localidade perto dali. Porém a certa hora do protesto as coisas saíram do controle, a multidão começou com procedimentos de depredações em automóveis e tentavam derrubar a todo custo as barricadas previamente colocadas pelas autoridades militares, a policia estava no local para tentar ajudar de alguma forma, mas não estava sendo bem sucedida na tarefa, uma grande bagunça havia se instalado ali e nas ruas próximas.

Em frente, junto ao monumento conhecido como Panteão Duque de Caxias, monumento este que foi construído para abrigar os restos mortais de Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias, considerado o patrono do exército brasileiro, e sua esposa, Ana Luísa de Loreto Carneiro Viana, duquesa consorte de Caxias; existe um grande estacionamento onde alguns manifestantes exaltados destruíam carros de pessoas que não possuíam culpa pelos fatos sombrios ocorridos dois dias antes.

A imprensa cobria toda a manifestação bem de perto, equipe de reportagens das mais diversas emissoras estavam presentes acompanhando toda a manifestação e em contato com a policia para receber mais informações que ocorriam nos bastidores do que havia se tornado numa queda-de-braço entre as pessoas contra o comando militar do leste.

_A turba é o homem se rebaixando voluntariamente a natureza da besta_ rebateu o homem.

Mas que espécie de comentário era aquele, pensou a repórter voltando-se para ver o homem. Era um indivíduo alto e que lhe chamou a atenção imediatamente; cabelos castanhos claros, quase aloirados, e longos, amarados num penteado que lembrava os antigos samurais japoneses; uma trança voltada para cima quase no topo da cabeça, e da altura das orelhas para a base do pescoço caiam longas mexas lisas.

_ Quem disse isso?_Ela indagou.

Ele estava olhando a multidão de longe, ambos ficaram na calçada mais afastada da batalha, os manifestantes gritavam sem parar. Ele olhou para ela e respondeu:

_ Creio que foi Ralph Waldo Emerson.

Os olhos do estranho eram tão estranhos quanto ele; eram de um azul poderosamente vivido, e mesmo àquela hora, quase totalmente sem luz do sol, ainda pareciam brilhar com luz própria. Ela devia estar muito cansada e imaginando coisas; pensou.

_Pois é_ disse ela_ é possível que a situação piore.

A mulher estava se entristecendo com o que via, mas seu profissionalismo impedia de deixar que suas emoções fossem além do permitido. Muitas pessoas estavam voltando de seus empregos e tinham naquele trajeto a forma mais curta de chegar a estação de trens conhecida como Central do Brasil; alguns trabalhadores estavam sendo surpreendidos pela movimentação atípica e corriam para não se envolver, outros paravam ao ver câmeras e equipes de reportagens.

Uma bomba estourou, mas era apenas de efeito moral.

_ Você pode me emprestar uma caneta? _ o estranho homem estava vestido em trajes muito alinhados, poderia se destacar facilmente em qualquer multidão, não somente pelas roupas, mas também pela sua postura extremamente ereta.

A mulher deu a caneta e foi chamada para entrar ao vivo levando novas informações dos acontecimentos, o homem se afastou, porém só o suficiente para não ser focalizado pela câmera do reporte cinematográfico.

A luz da câmera se ascendeu e a repórter disse:

_ A situação ficou complicada aqui no comando militar do leste, os manifestantes tentaram invadir o palácio duque de Caxias, momentos atrás e outros depredaram veículos que estavam nas redondezas...

Ela continuou fazendo o relato pormenorizado dos acontecimentos enquanto o outro a observava depois de escrever algo num pequeno bloco de papel, daqueles que cabem facilmente no bolso da calça.

Outra bomba explodiu e lançou fumaça no meio dos manifestantes, provavelmente no intuito de dispersá-los, mas isso não ocorreu.

A mulher voltou assim que a luz da câmera se apagou e intrigada estava, porque aquele homem olhava para as pessoas em fúria seguidamente e fazia anotações em seu diminuto bloco. Seu aguçado faro jornalístico estava apitando, resolveu sondar.

_ Você é militar?

_Não.

Mas a resposta do homem não a convenceu, ela já estava na profissão de jornalista há muito tempo e conhecia todos os colegas de outras emissoras e mídias impressas, sabia que não se tratava de um colega de profissão, de mesmo modo não poderia ser um mero curioso, porque a forma como ele olhava para a multidão em fúria não era como o de uma pessoa que busca entender o que está acontecendo e sim um olhar de quem sabe exatamente o que esta vendo.

_ Você é militar, não é?_ insistiu ela.

Ele finalmente voltou a encará-la com aqueles olhos diferenciados.

_ Não sou militar, mas tenho parentes que foram e são. Aqui eu sou apenas um curioso, gosto de ver como as pessoas se comportam e o Brasil tem me dado muito material para estudo.

Se ele não era militar então por que aquele ar diferente dos demais que ali estavam, algo não estava cheirando nada bem. Ela se afastou por um instante e comunicou a seu colega cinegrafista, confabularam algo um segundo aproveitando que o homem estava escrevendo novamente.

Quando ela retornou, ele disse apontando para um rapaz que se destacou do bolo humano indo em direção aos soldados munidos de escudos protetores na frente do edifício militar.

_ Vê aquele jovem, vai arremessar algo nos soldados; ele nem mesmo entende o que está fazendo aqui, mas não poderia perder a oportunidade de se juntar aos demais numa grande balburdia como essa.

A jovem jornalista olhou por um momento para o homem e voltou sua atenção incrédula na direção do rapaz apontado.

O rapaz correu, tropeçou em algo, quase caiu, parou para ver o que era, abaixou-se e ergueu do chão o que daquela distância parecia ser um bloco solto, algo como um paralelepípedo; depois correu mais um pouco e arremessou a grande pedra sobre os soldados. A pedra se chocou contra o escudo e caiu aos pés da tropa de contenção sem maiores estragos.

_ Como você sabia? Perguntou atônita.

Ele sorriu mais uma vez:

_ Conheço as pessoas, é isso que eu faço, além do mais a postura do garoto denunciava a sua ação.

_Mas como isso é possível?

_ Eu já rodei o mundo vendo os maiores confrontos que você pode imaginar, vi as pessoas e como elas se comportam nessas ocasiões, o homem é um só em qualquer canto da terra e desde o início.

Resposta muito enigmática.

O cinegrafista chamou a repórter mais uma vez, iam gravar mais algumas vezes para ser apresentado no jornal que entraria no ar no princípio da madrugada. Ela se ausentou mais alguns minutos, gravou e quando finalmente voltou o indivíduo não estava mais no lugar, havia ido embora.

_ Mais que droga!_ ela disse_ levou minha caneta.

Um jovem surgiu e solicitou falar com a mulher, ele disse que um sujeito pedira para entregar um bilhete e uma caneta, ela recolheu ambos da mão do menino que se foi em seguida. Assim que ela tomou a caneta nas mãos, sentiu que o pequeno objeto estava frio ao extremo, parecia saído de um congelador; de repente a caneta congelou bem na palma da mão dela e o susto foi tamanho que a mulher saltou e deixou a caneta cair. Com a queda, o gelo, que agora formava uma capa muito bem lapidada sobre o utensílio, pareceu cintilar e não se quebrou, A repórter abaixou, pegou novamente a caneta envolta na capa transparente como vidro nas mãos e para seu total espanto constatou que não era gelo, temeu que fosse cristal.

Aquilo era inexplicável, imediatamente abriu o bilhete que segurava na outra mão e leu:

“Procurei um reino para mim durante muito tempo, há séculos ouvi falar de uma nova terra chamada Brasil e para cá vim, longe de meus pares, há exatas cinco décadas resolvi me instalar no Belíssimo Rio de Janeiro, poucas vezes encontrei um solo tão fértil, adoro multidões, ganância e orgulho; amo confusões, mentiras e maldades; desde que cheguei, fiquei estudando vocês e agindo eventualmente, mas agora as coisas vão ser do meu jeito, gostei de conversar com você, faça o que quiser com o bilhete, diga a todos que eu estou no Rio; espero que não fique ressentida com a pequena brincadeira que fiz com sua caneta. É diamante”.

A caligrafia era totalmente diferente de todas que ela já vira, muito bem trabalhada como se tivesse sido desenhada e não escrita; cada letra com um cuidado especial. Embaixo dessas palavras estava uma assinatura, mas ela não reconhecia aquele nome; dizia assim:

“Loki”

A jornalista não sabia o que fazer; levantou a cabeça e olhou ao redor na esperança de avistar o estranho, mas o que viu foi um pássaro negro sobre a estátua no monumento de Caxias com olhos penetrantes repousando sobre ela; um falcão, quando seus olhares se encontraram o pássaro emitiu um som e alçou vôo se perdendo na noite.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 17/06/2008
Reeditado em 20/06/2008
Código do texto: T1037752
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