A SOBREVIVENTE
Começara a chover devagarzinho, as gotinhas caindo finas como orvalho no chão de areia, sem fazer barulho. As flores, abaixo da janela aberta de par em par, ainda não tinham sido atingidas.
-As florinhas, pobrezinhas – gemera sorrindo Andréa debruçada à janela. Sentira o carinho do sopro frio do vento.o inverno aproximava-se no cinza de um conforto, com as cobertas e os lençóis já guardados, cheirando a amaciante de lavanda.
Que alegria era aquela se o dia era tão cinza? O sol era amarelo e só pertencia ao som dos pássaros cantando, e a tarde esmaecendo entre o amarelo-âmbar e roxo-alvoroço desses na copa frondosa daquele abacateiro.
Desde criança Andréa acreditava que ali moravam os passarinhos, e ficava nesta mesma janela imaginando o que faziam; os diálogos, os beijos dos que chegavam do trabalho; igual como era que via seu pai chegar e beijar sua mãe onde que ela estivesse, quer seja na sala costurando, quer seja na cozinha preparando a janta.
O dia era cinza e ela ouvia um longínquo som de piano, como se viesse do fundo falso da parede; a parede as suas costas. A parede era cor de rosa esquecida e rachada, e o piano estava no canto da sala enorme e oca; o piano coberto de poeira que a mãe de Andréa já não tinha mais paciência de espanar.
O piano estava no, prego. Mas não havia quem se interessasse em compra-lo.E assim a casa encontrava-se sem moveis e rachada.
A chuva parecia começar a fazer barulho, e era a densidade como uma cortina de flocos de água que parecia cair do céu cor de chumbo.
Andréa olvidara a sorte das florinhas desengonçadas abaixo da janela e provara o beijo gelado do inverno tão carinhoso.
O verão era tão feio e seco ali e se sofria como um russo sofre quando chega o inverno.
Andréa crescia naquela janela, com um mundo tão pequeno ao seu alcance que ela não desejava nem mais que as horas se passassem. O cabelo castanho dourado dela ondulava até cair aos ombros – onde no decote do vestidinho já exibia os seios – e na testa caía uma franja; os olhos claros como um dia terrível espelhavam o arrabalde de chão de areia cinza.
Do céu ao chão o pequeno universo estava cinza da cor de chumbo. A menina abria um sorriso para o horizonte que se confundia com o chão e suspirava com o coração no paladar de lavanda dos cobertores de logo mais a noite.
Alguém agora atravessava a entrada do seu quintal, de muro sem portão, com uma sombrinha escarlate. Era apenas o que se via girar: o escarlate da sombrinha que a pessoa manuseava.Desaparecera ao começar a subir as escadas – a casa começava no segundo andar – e Andréa ouvira os passos, os passos com um leve resfolegar feminino.
Da porta dilacerada aparecera a menina, morena e cheia num vestido muito apertado nas ancas, com a sombrinha escarlate e enorme fechada e em punho como uma espada.
A presença era muito bem-vinda, e Andréa deterá-se à frente daquela.
-Luzia...
-Rodolfo não quis vir...
Andréa fugira os olhos para o piano, e Luzia a acompanhou no mesmo olhar.
Aproximaram-se após um longo tempo em que estiveram pensando, e o abraço acontecera porque Andréa jogara-se aos braços de Luzia, e esta a recebera cuidadosa como se fosse aquela de porcelana e pudesse se quebrar.
O barulho da chuva caindo fina lá fora era agora como panos se rasgando no silêncio da penumbra de um quarto de costura, e doía no coração de Andréa comprimido ao corpo de Luzia no abraço tão apertado.
Andréa sufocava o pranto no ombro farto da amiga. O que cortava seu silêncio interior eram aqueles panos se rasgando na penumbra de um quarto de costura.E do fundo falso da parede cessara-se o som do piano.
Rodolfo não viera tocá-lo...
-você não pode continuar nesta casa sozinha – fora falando Luzia desesperada e querendo fitara Andréa, mas esta se apertava ainda mais sofrida ao ombro daquela – vamos lá para casa. Mamãe está tão preocupada...
-Eu quero ficar aqui – disse Andréa com voz estrangulada e abafada de um desespero que não explodia.
-Rodolfo está perto, muito perto – fora falando Luzia afagando-lhe os cabelos.
E Andréa voltara a ouvir o som do piano vindo do fundo falso da parede. Sim era Rodolfo, Rodolfo estava perto, muito perto.Rodolfo que é como o cheiro dos cobertores à amaciante de lavanda, que ela se cobria e sentia o próprio calor emanando em si mesma.
As duas desenlançaram-se, e Luzia a segurara firme pelos ombros finos de menina-moça, e esta menina-moça disfarçava os olhos vermelhos do desespero. Tinha vergonha do desespero como da nudez em publico.
Os panos ainda se rasgavam no silêncio da penumbra do quarto de costura, todavia tinha o piano que Rodolfo tocava no fundo falso da parede.
Andréa achara um sorriso, e no andar que se perdia a tropeçar no vazio da casa que ameaçava desmoronar ela chegara ao piano. A mão passara pela camada de poeira como uma caricia.Ele não fora vendido nem nunca seria limpo.
-Será que Rodolfo o quer? Indagara de costas à amiga.
Luzia apoiada na sombrinha fechada disse surpresa:
-O piano? Você se refere ao piano Andréa?
-Sim eu me refiro ao piano – respondera olhando para a palma da mão com a poeira de muitos dias do piano.
-Mas para que Rodolfo iria querer um piano Andréa? Para quê?
Agora Andréa riscava sobre a poeira, do elefante negro, coisas sem nexo como era o seu sorriso encontrando uma lúcida demência.
-Ora para que mais haveria de ser Luzia – fora dizendo sem parar de riscar sobre a superfície do piano.
-Rodolfo não sabe tocar piano... Rodolfo só sabe...
Ela a interrompeu bruscamente:
-Escute Rodolfo... Rodolfo é este silêncio que geme no fundo desta casa...
Luzia pensara em falar alguma coisa, Andréa a repreendera, Luzia tentara novamente e novamente vinha a repreensão.
-Escuta Luzia, é preciso ouvir para que você acredite.
Luzia pensou certo instante, ter ouvido mesmo. Mas eram panos se rasgando que ela ouvira.
-Vamos embora daqui Andréa – pedira Luzia em tom de súplica, ousando toca-la ao ombro e ela se sacudira toda como que toda tomada.
-Fica quieta um instante Luzia, só um instante –pedira Andréa se afastando para o meio da parede rosa esquecido e rachada.
Luzia a obedecera a trêmula, e a enorme sombrinha era agora um baluarte para suste-la de pé.
Os panos se rasgavam ainda mais violentos e confundiam-se com o barulho xucro da chuvinha fina no chão de areia.Despedaçava-se coisas num canto escondido onde Andréa acreditava ouvir o piano ser tocado por Rodolfo.Luzia sentia como que um esparadapro quente na sua boca, e não podia gritar a Andréa que fossem embora, que Rodolfo nem sabia como era o som de um piano.
“Rodolfo só sabe...”
“Não, não Rodolfo precisa do piano...”
Os panos rasgaram-se ainda com mais força, pareciam ser mãos velhas e hábeis que desfaziam aqueles panos duros embora gastos.
De repente um tremor como uma explosão ao meio da gargalhada vitoriosa de Andréa, e o céu cor de chumbo veio mesmo de encontro ao chão da mesma matiz.
Para Luzia só restara achar uma caixa de fósforos para acender a vela no quarto de costura que fora todo entregue a escuridão.
Mesmo debaixo da chuva pesada que desabasse juntou foi gente, obstruindo o caminho dos bombeiros, nos escombros da velha mansão que viera ao chão.
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AUTOR: RODNEY ARAGÃO