Cinderela

Cinderela

Era uma vez, uma jovem linda, graciosa, meiga. Seus cabelos cacheados castanhos-dourados refletiam os raios do sol sob a luz dos flashes dos fotógrafos. Ela deslizava em seu branco vestido de noiva em direção ao altar. Centenas de olhares acompanhavam cada um de seus passos. A marcha nupcial ao fundo, a chuva de pétalas de rosas... Um lindo sonho se concretizando...

A fada madrinha, D. Eulália, estava muito feliz ao lado da mãe adotiva que emocionada não conseguia conter as lágrimas teimosas descendo pelo rosto. O príncipe estava pálido, seus olhos pareciam desbotados, cansados, injetados, vermelhos, contrastavam com a beleza do sorriso iluminado da jovem que ia desposar.

O padre iniciou o sacramento, ao elevar o cálice pensava: - Preciso falar com o sacristão, este vinho não tem a mesma qualidade dos outros, tem um cheiro tão forte! Abaixou o cálice, logo após engoliu o vinho rapidamente... Deu a benção aos nubentes, pensando ainda na qualidade do vinho ingerido. Tão forte! Sentiu-se enjoado, por mais um pouco não saía correndo para desafogar seu estômago tão embrulhado.

Os noivos deixaram a igreja e foram para a festa em um clube próximo dali. Estavam muito felizes. Pousaram para muitas fotos com as famílias, os amigos. Receberam calorosos cumprimentos, conversaram com uns e outros. A noiva jogou o buquê de rosas vermelhas. A menina moreninha, baixinha, atirou-se selvagemente para agarrá-lo, e no mesmo instante ver todas as pétalas caírem sob suas mãos, restando os frágeis caules das flores. Os noivos se despediram e saíram para a lua-de-mel.

Cinderela finalmente acordava. O sol já ia alto. Olhou para o outro lado da cama e não viu Manoel ao seu lado. Sentia uma forte pressão na cabeça, e quase não conseguia se lembrar dos últimos acontecimentos. Estava meio tonta, cansada. Imaginava ser assim com todas as noivas. Tentou pular da cama, não conseguiu. Seu corpo doeu demais. Preferiu continuar deitada. Logo ele voltaria.

Aos poucos, mesmo muito cansada, relembrava todos os detalhes. Sentia-se transportada para outras paragens. Tudo tinha sido perfeito, lindo, inesquecível. Ela era a verdadeira Cinderela como no conto de fadas. Ao longe ouviu a voz da fada madrinha, não conseguia discernir o que ela falava. E ele será que ainda estava no chuveiro. Ouviu um relógio bem próximo bater doze badaladas. Era meio-dia. Dormira um pouco... Tinha a sensação de que a manhã passara muito rápida. Manoel estava demorando.

Meio-dia, Cinderela, sentiu uma fraqueza nas vistas, meio tonta, intuía que a mágica se acabava. A carruagem estava esmagada, tão amassada, que não dava nem para ver a cor de abóbora. Os cavalos força motora, tinham fugido... O cheiro acre de vinho estava no ar,

espalhado em poças por todos os lados. Seu vestido estava em farrapos, sujo de lama. Uma das partes do véu que estava todo rasgado enrolara-se em alguma coisa macia, branca, Cinderela olhou com mais firmeza e viu, a mão esquerda de Manoel com a aliança dourada brilhando no sol da manhã, enrolada num pedaço de véu. Sentiu sede, passou a língua pelos lábios, ainda sentiu o gosto estranho do vinho...

O Ministério da Saudade adverte: “Se dirigir não beba”, “Se beber não dirija”. O padre levantava o cálice, ela descia do altar, braço dado com Manoel, a festa, os convidados, a viagem de lua-de-mel. Estranhava, e ao mesmo tempo se deliciava ao ver tantas flores arrumadas naquele outro salão, tantos convidados, a fada madrinha, só ela para superar a si mesma e guardar surpresa tão grande! Outra festa. Estranhava mais ainda, verdadeiro mistério. Onde estava Manoel, preparava-lhe uma surpresa? Em seu entusiasmo viu de relance que na mesa não tinha bolo nem docinhos. Duas caixas grandes de madeira. Desmaiou, e ao cair deixou um lindo sapatinho de cristal a bailar no ar. As lágrimas da fada madrinha cristalizaram-se deixando na lembrança de Cinderela toda a saudade que então já sentia.