O INGLES ESTUPEFATO

____ Repita "for me".

Tec, tec, tec!

Varinha pedagógica batendo no quadro negro.

____ Repita "for me".

A frase era dita bem alta, para encobrir o barulho ensudercedor dos corredores, dos alunos andando e conversando, dos bedéis chamando alhures a atenção de alguém, meninos e meninas gritando uma com outras, indas e vindas, risadas, portas batendo, cavalgadas, corridas, derrapadas, cadernos caindo pelo chão, gargalhadas, vociferações, pancadas, baderna, professores reclamando silêncio e admoestando os retardatários.

Bem-intencionados na primeira fila; na última, os descaradamente desinteressados.

Lição transcrita no quadro negro.

____ Repita "for me:"

____ The what this is?

Os alunos respondiam:

"This is a apple".

____ Cala a boca Sebastião! Preste atenção na aula.

____ The what this is?

"This is a book."

____ Raimundo, volte para a sua carteira!

____ The what this is?

"This is a pencil."

____ Raimundo, chega! Faça o favor de sair da sala.

____ Repita "for me:"

The what this is?

" This is a marshmallou."

____ Professor, o que é marshmallou?

Eliezer e eu, em meados dos anos setenta, partimos para ganhar a vida no sul de Goiás.

Região algodoeeira na época.

Carente de tudo, abundante de problemas.

Eliezer descolou aulas como professor de inglês.

Matéria que sabia nica.

Lá não faziam muitas exigências.

____ Marshmallou? Deixem pra lá, passemos ao ditado.

Nada como um ditado pausado, sincronizado para terminar junto com o encerramento da aula.

Batida a sineta, ditado terminado ou não, todos arrumavam os seus cadernos e iam embora.

Lições copiadas de um livro, resumiam toda cultura inglesa do meu amigo.

Fingido distanciamento e ar austero, para simular conhecimento, eram suas ferramentas principais.

Receita infalível em nossa sociedade, estruturada pela aparência e pela vaidade.

Como no conto "O homem que falava javanês", de Lima Barreto, ele soube angariar admiração e deferência.

E tudo terminaria bem não fosse o destino;

este inesperado acontecimento que se manifesta nas horas inapropriadas.

Ocorreu de estar ele na fila do caixa de um banco.

Momento em que foi abordado pelo gerente, ansioso, que o levou para um canto.

_____ Fomos avisados pela diretoria de que um inglês, investidor em algodão, vai ligar aqui para a agência para saber da situação da colheita.

Fez pausa dramática.

_____ O senhor deve ter conhecimento de que em razão das prolongadas chuvas o algodão não pode ser colhido. As perdas superam oitenta por cento. Quase tudo perdido. Uma tragédia.

Com olhar de quem enxerga a última pessoa capaz de salvar-lhe, fez o pedido:

_____ Aqui ninguém fala inglês, de modo que precisamos do senhor como intérprete.

Não houve tempo de refutar.

No mesmo instante toca o telefone:

_____ É ele! O inglês. Atenda por favor.

Eliezer relanceou os olhos pelo recinto.

Os funcionários pararam o que estavam fazendo para observar a cena.

Os clientes foram se aproximando, curiosos.

Queriam assistir o ilustre professor dar um show na lingua de Shakespere.

____ Hello!

Do outro lado da linha breves palavras incompreensíveis.

____ Yes!

Depois uma longa pergunta aflita e enigmática.

_____ The cotton?

O pomo de Adão de Eliezer subiu e desceu;

algo entalado na garganta.

_____ The cotton...

A testa começou a transpirar;

a face a avermelhar;

e os dedos a tremerem, embora fortementes agarrados ao telefone.

_____ The cotton...

_____ The cotton...

Pressentiram o desespero;

e uma muda oração.

_____ The cotton...

O milagre não se produziu.

Nada indicava progressão na conversação.

Eliezer enxergou o oceano (*) diante de si.

"Tão pálido como a camisa que trazia.

Os joelhos a baterem um no outro,

o rosto cheio de uma expressão digna de piedade

como se alguém do inferno o houvesse libertado" (**)

Que lhe deu coragem para gritar:

_____ Ora! The cotton? The cotton foi pro brejo !!!

Dito o que, bateu o telefone e saiu em desabalada carreira.

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(*) Oceano é o termo pelo qual os ingleses se referem a William Shakespeare.

(**) Diálogo de Ofélia com Polônio, "Hamlet", Ato II, Cena 1.

Araçatuba-SP, 08-06-2008

Obrigado pela leitura.