Eu Carrego os Pecados do Mundo
Eu Carrego os Pecados do Mundo
Ana Esther
O luxuoso Palazzo Ducale estava prestes a abrir suas portas à visitação pública; havia lá pessoas do mundo inteiro, em visita a Veneza, ávidas por ver, com seus próprios olhos, as deslumbrantes riquezas expostas nas dependências do palácio. Rotina diária, os guias verificavam minuciosamente cada sala e testavam as instalações dos alarmes, antes da abertura. Era nesse instante que, ano após ano, o menino que carrega os pecados do mundo retorna, finalmente, a sua morada no afresco venerado, San Cristoforo, do pintor Tiziano Vecellio. Nessa bela manhã de agosto de 1986 algo de extraordinário aconteceria poucos minutos depois que o público começou a adentrar os salões do Palazzo Ducale.
O menino que carrega os pecados do mundo ficava em seu posto, nos ombros de São Cristóvão, na tela de Tiziano, a perscrutar as pessoas que se aglomeravam em frente à obra para admirá-la. Todos os dias ele escolhia alguém na multidão para ajudar a livrar-se de seus pecados. Não havia sentido, até então, nenhuma vibração que indicasse quem necessitava de seu auxílio. Surpreso, pois sempre encontrava problemas para selecionar o escolhido do dia entre as centenas de visitantes, o menino resignou-se a ficar mirando as pessoas com mais cuidado do que normalmente o faria. Achou estranha a demora, mas não se precipitou.
Subitamente, seus olhos se fixaram em um dos janelões que ele podia vislumbrar na Sala dei Filosofi. Uma cobra deslizava parede abaixo sem que ninguém o percebesse. O menino agitou-se, impotente, em sua morada, na tela de Tiziano. A cobra se escondeu atrás da mobília e não mais apareceu. O dia rolou sem assombros. O menino encontrou uma alma sofredora e foi fácil e rápido trazer a paz de volta àquela criatura torturada pelo medo do desemprego. Sua técnica consistia em capturar o olhar da pessoa-alvo, decifrar os problemas mais íntimos e levá-la a uma viagem espiritual libertadora. A pessoa-alvo descobria suas falhas e medos mais profundos e, numa revelação induzida pelo menino que carrega os pecados do mundo, descobria o caminho da solução de seus problemas. Durante esse processo, o menino abandonava sua morada e vagava pelo mundo, juntamente com a pessoa-alvo, até encontrarem a paz. Quando isto ocorria o menino retornava ao quadro e a pessoa saía de seu transe. Tudo não levava mais do que poucos segundos, segundos esses que sugavam a energia do menino.
Durante a noite, quando o palácio ficava deserto, o menino tinha liberdade para caminhar pelos salões até perder o ‘peso’ dos pecados da pessoa que ajudara durante o dia. Para isso, ele caminhava, incessantemente, a noite inteira. Os minutos que antecediam à abertura do Palazzo Ducale eram os únicos momentos em que ele se sentia leve, até escolher a próxima alma necessitada. Entretanto, nessa noite o menino, logo que saiu dos ombros de São Cristóvão, na tela de Tiziano, foi direto até o móvel em que vira a cobra se esconder.
A cobra se desenroscou e acordou do sono diurno. Ao ver o menino, suspirou e agradeceu a oportunidade de poder lhe implorar sua ajuda. A cobra passou a narrar sua vida de pecados. Desde que re-encarnara, na terra, sob a forma de cobra venenosa, não resistira à tentação de cometer crimes horripilantes. Com a desculpa de defesa pessoal, havia picado várias pessoas, inclusive, criancinhas inocentes. Muitas de suas vítimas haviam morrido e outras sofreram dores intermináveis. Ela não agüentava mais aquela sina, era um peso por demais grande para carregar. Ela vinha rogar ao menino que a ajudasse a livrar-se de um fardo como esse.
O menino compungiu-se com a agonia da pobre cobra e a levou na viagem espiritual, até que a mesma descansasse e se convencesse de que sua vida de cobra era também abençoada por Deus. Após a viagem os dois ficaram conversando, o menino estava muito intrigado com a visita da cobra; era a primeira vez, em toda a sua existência e em sua missão, que ele ajudara a uma cobra. Tanto eles conversaram que chegou a hora da abertura do palácio. A cobra, um tanto aturdida, despediu-se do menino, muito agradecida, e subiu até o janelão, por onde abandonou o prédio.
O menino, no entanto, pesava como chumbo pois não fizera sua caminhada para livrar-se do peso dos pecados que acumulara. O peso era tanto que ele teve dificuldade em retornar ao quadro e montar no ombro de São Cristóvão. Um conhecedor da tela certamente notaria a sutil mudança nas feições do santo pintado pelo artista italiano. Naquele dia de visitação, as pessoas que fitaram o quadro impressionavam-se com o ar de dor, tão real, de São Cristóvão, tentando suportar o peso do menino que carrega os pecados do mundo.
*Este conto é o de número 36, parte do meu livro "Terapia Ocupacional - Contos" (2004)