[C0NTO] - FÚRIA SELVAGEM - Capítulo 2 – CORRENDO COM A MATILHA.

A fúria passa e quando dá conta de si ele está parado na Rua Marília, uma travessa da Avenida Paulista, próxima ao parque do Trianon. Está parado em frente a uma estreita porta de aço sem número ou placa de indicação.

Jovens com roupas da moda entram e saem a todo instante.

Gregório vê seus braços cobertos de sangue seco e arregala os olhos.

A camisa, assim como a calça, rasgada.

- Entra. Eu te pago uma bebida, garoto selvagem! – convida uma voz feminina rouca e deliciosa.

O moreno só então nota a garota ruiva de cabelos Chanel com as pontas muito arrepiadas para fora. Ela veste roupas descoladas e um colar de dentes de seis voltas.

Dentes humanos.

Aturdido, o moreno se deixa levar pela moça sensual.

Ele se sente um pouco constrangido, pois as pessoas balbuciam a sua passagem.

- Será o natural...?

- Impossível, dizem que desde...

- Isso deve ser uma brincadeira...!

- Meu mestre disse que o último natural...

Eles se encostam ao bar.

- Um conhaque aromatizado com trufas negras para mim e meu amigo vai querer...?

- Ãn... Uma cerveja.

Ao lado deles dois rapazes pedem uma porção de fígado acebolado na grelha.

- Qual o ponto senhor? – quer saber o chapeiro.

O rapaz muito bem vestido rosna baixo. Com um leve estremecimento o atendente começa a cortar o bife de fígado fresco em tiras compridas.

O amigo do rapaz que fez o pedido comenta em alto e bom tom:

- Tem que ser malpassado! Se a carne para de gritar é por que passou do ponto!

Algumas pessoas que estão próximas riem com gosto.

Um homem de cabelos curtos brancos se aproxima. Todos fazem uma discreta reverência a sua passagem.

Por trás de sua aparência simples pode se notar uma estranha força. Ele para junto a Gregório e a moça ruiva.

- Estela. Vejo que me trouxe um presente...

Greg nota a cicatriz no pescoço do homem de meia idade atlético. Parece que fora atacado por um cão. E dos grandes.

Ela assente positivamente.

- Qual seu nome meu rapaz?

- Gregório.

O assistente contábil não tem certeza do que viu, mas acredita por um segundo que o homem lhe fez uma discreta reverência.

- Pode me chamar de Lucas. Sou o dono desta casa noturna. O que aconteceu com suas roupas?

O moreno fica confuso.

- Eu... Eu não sei... Não me lembro.

A cantora engata a música “Fera Ferida” do Caetano Veloso e alguns casais dançam na pista.

Interrompendo o silêncio constrangedor o homem de aspecto severo bate palmas discretamente.

Um jovem de faces emaciadas e cabelos médios muito ensebados abre caminho entre a multidão compacta.

- Chamou senhor?

- Felipo... Consiga roupas adequadas para meu convidado.

O jovem franzino circunda Gregório, cheirando-o, muito surpreso.

Acostumado a notar detalhes, o assistente contábil percebe que faltam dois dedos na mão esquerda do empregado e que ele tem muitas cicatrizes também.

Alguém sinaliza de longe e o empresário se afasta por alguns momentos.

Com uma caderneta manchada, Felipo anota de vista, as medidas de Greg. Estela segura já a mão coberta de sangue seco dele, forçando uma intimidade que não existe.

- Hocê es um “Natural”? Há trescientos años que no veo um! – chama uma voz áspera em um forte sotaque “Portunhol”.

O rapaz atlético vira-se para ver quem se dirige a ele.

Com mais de dois metros de altura, o homem é uma massa de cabelos e músculos. Pelo seu hálito pode-se perceber que bebera mais de um litro de Chivas 18 anos.

Felipo se interpõe entre os dois.

- Não deve falar com ele! Ainda não...

O rosto do grandalhão se contorce de raiva.

- Como ousa interrumpir? No sabe su posición?

O moço magro fica mais pálido do que o normal se encolhendo um pouco.

- E você Ramón? Conhece seu lugar na Hierarquia?

Vindo pela lateral, o empresário traz nas mãos uma bandeja com iscas de carne malpassada.

- Señor, estava apenas fazendo hacer valer mis direitos...

- Ajoelhe-se. – ordena o homem grisalho secamente.

O gigante fica nitidamente constrangido:

- Señor Lucas... No es necesario ...

O rosnado que Lucas é tão intenso que até Gregório tem ímpetos de se ajoelhar.

O grande espanhol abaixa em uma reverência raivosa. Instantes depois, some entre a multidão.

O rapaz moreno continua a não entender nada.

Felipo encarrega-se de servi-lo.

- Filé de Kobe grelhado. Farte-se senhor!

O empresário aponta para um mezanino.

Vamos para a área VIP? Aqui está um tanto... Lotado.

Eles atravessam o salão apinhado de gente e quando os olhos de Gregório se encontram com os da cantora, ela lhe faz uma breve reverencia.

Logo em seguida, começa a cantar “Garganta” da Ana Carolina.

Eles chegam a um camarote projetado sobre o palco, com paredes de vidro. De onde podem ver e serem vistos pelos outros.

Dentro, apenas seis pessoas.

Lucas entra, seguido por Greg, Estela e Felipo, todo encolhido.

O empresário apresenta o assistente contábil para um político, um artista de novelas e um ativista ecológico; assim como suas respectivas companheiras.

O celular V8 do jovem seboso toca e ele pede licença por alguns instantes.

Todos se servem do bife de Kobe malpassado. Logo o servo volta com uma roupa esportiva; camisa pólo Ermenegildo Zegna, calca jeans Diesel e tênis Adidas.

O modelo, Gregório não conhece, só sabe que custa uns quinhentos reais.

- Eu... Eu não posso aceitar! Custa mais que o meu salário...

O moreno abaixa os ombros, desolado.

E logo o homem grisalho levanta uma sobrancelha.

- É um presente. Ou você pode me pagar aos poucos se preferir...

Com esta adição, finalmente Greg aceita as roupas.

- Eu... Vou me lavar... Estou sujo de sangue...

Estela passa a língua no pescoço suado do moreno surpreso.

- não precisa. – sussurra ela com voz rouca – Nós gostamos do cheiro de sangue. Você não?

Gregório atira as roupas no chão e se afasta apavorado, até a parede de vidro.

- O que está acontecendo aqui? Vocês são de alguma quadrilha? Já sei! Vocês querem meus rins não é isso?

Todos no camarote VIP se levantam. Os olhos dourados.

- Acalme-se. – pede Lucas.

- Não eu... ROAAAR!

Para seu próprio horror, Gregório solta um rugido.

Todos se encolhem, inclusive o imponente empresário. Imprensado contra o vidro, o assistente contábil olha para o salão.

Todos os olhares se voltam para ele. Centenas de olhos amarelos.

- Ai merda! Eu... ROAAAR!

O rapaz atlético não nota, mas seu corpo começa a ficar mais peludo.

- Acalme-se. Por favor... – implora Estela.

Felipo é um montinho trêmulo no canto da sala.

Respirando rapidamente, pouco a pouco o homem se acalma. Lucas abre a porta e pede que os outros se retirem.

Em silêncio, o político, o artista e o ecologista saem acompanhados pelas moças.

A porta continua aberta.

- Você quer ir embora? Pode ir. – aponta o empresário.

Gregório olha desconfiado para os três.

Estela, torcendo as mãos, quase implora para ele ficar. Felipo olha apavorado de esguelha para seu mestre. Parece não entender o que se passa.

Lucas mantém suas feições indefinidas.

Dando a volta na sala para passar o mais longe possível do trio, Greg alcança a porta.

Quando dá o primeiro passo para ir embora, as palavras do empresário lhe atingem fundo.

- Você pode fugir daqui, mas não pode fugir de você mesmo...

Gregório para como que fulminado.

- Co-como assim? Do que vo-você está falando?

Lucas sorri, oferecendo a cadeira.

- Sente-se. Coma. Sei como você se sente.

Meio desconfiado, Gregório aceita os filés de carne de Kobe um tanto frios.

- Duvido que você saiba como eu sou...

- Sei que você já se perguntou milhares de vezes, porque consegue sentir o cheiro de cada pessoa e reconhecê-lo muito tempo depois. Também já se perguntou de onde vem a sua força e resistência se você não faz exercícios físicos e o mais importante: Porque, durante uma semana de cada mês você sente uma fúria quase incontrolável?

Gregório está impressionado com Lucas. Como será que o empresário sabe tanto sobre ele.

Coisas íntimas.

Coisa, que ele não conta nem para o travesseiro.

- E como você poderia saber de tudo isto?

Impávido, Lucas esclarece:

- Sou como você. Um Lupino. Ou como você deve estar mais acostumado a ouvir, um Lobisomem.

O rapaz moreno, com a mão de Estela sobre sua coxa, para de mastigar e fica com a boca aberta e os olhos arregalados.

Momentos depois sorri e balança a cabeça negativamente.

- Você está brincando...

O homem de cabelos grisalhos bate palmas discretamente e logo seu servo está de prontidão ao seu lado.

- Felipo. Mostre ao nosso convidado sua verdadeira forma.

O moço pálido o encara com incredulidade.

- Se-Senhor?

Com apenas um olhar o empresário cala seu serviçal.

O jovem de cabelos sebosos suspira e peça a peça, retira a roupa, ficando apenas de cuecas.

Magérrimo, pele e osso apenas, Felipo grunhe baixinho.

Greg apóia a cabeça nos ombros, meio entediado, meio divertido com a situação do magrelo.

O espetáculo que se segue é grotesco: os braços finos e todo o corpo se enchem de pêlos cinzentos, que brotam rapidamente. Logo, apenas o que sobra do rapaz esquálido é sua roupa de baixo.

A isca de Kobe semi-mastigada cai da boca aberta.

Estela e Lucas observam com atentamente as reações de Gregório.

- Assim está de seu agrado, meu Senhor? – pergunta entre rosnados e grunhidos a criatura em que se transformou Felipo.

- Não. Deixe a Besta te dominar.

Estela olha o empresário interrogativamente. Gregório embasbacado, não consegue tirar os olhos de cima do lobisomem.

Felipo uiva longamente e cai de quatro. Seu tronco afina mais ainda e a cauda, a princípio pequena, se alonga e logo nada o distingue de um lobo, a não ser a cueca.

Magro, de pêlo sujo e esfiapado, parece que levou uma surra daquelas.

O moreno coloca as mãos no rosto e depois aponta o lobo, horrorizado.

- AiMeuDeus! Eu vou ficar assim? – grita pulando da cadeira.

- Não. – avisa o empresário – você vai ficar bem pior. Você é um “Natural”...!

Estela faz um sinal para o lobo e logo a transformação se inverte trazendo Felipo de volta.

- PIOR? – grita Gregório – pior que ISSO? AiMeuDeus!

A ruiva tenta abraçá-lo, mas é repelida.

Falando pausadamente, o empresário tenta tranqüilizá-lo:

- Vou lhe contar uma história: “Era uma vez um homem que pôs um lobo no estômago, e, lentamente, foi devorado de dentro pra fora. No final o homem não conseguia mais conter o lobo.”

Alucinado Greg ri.

- E o que é isso? Um trecho da PORRA da BIBLÍA dos LOBISOMENS?

Lucas sorri.

- Não. Li em uma revistinha do Hellboy. Sabe? Do Mike Mignola*. Vamos. Para o ar livre...

- Nunca fui muito fã de quadrinhos... – comenta o moreno, angustiado.

Descem as escadarias. O homem grisalho faz um comunicado:

- Vamos dar as boas vindas para o “Natural” do novo milênio! Em quinze minutos no Parque do Ibirapuera!

Todos gritam um Hurra e engolindo suas bebidas abandonam a casa noturna às pressas.

Ficam apenas uma dúzia de pessoas, que obviamente não são Lupinas, confusas como súbito esvaziamento do local.

- Troque de roupa mais tarde! – pede Lucas.

Entra em um Pajero cabine dupla blindada e ignorando o pedido do homem grisalho resolve se vestir.

Estela o ajuda a trocar de roupa. Sem conseguir resistir, ela acaba lhe mordendo o peito peludo.

- EI você! Eu tenho namorada!

Pela primeira vez na noite, ele se lembra de Fabiana.

- Tudo bem! Todo macho Alfa tem várias fêmeas. Lembre-se disso quando tiver vontade...

Gregório abre a boca embasbacado, mas antes que possa responder, o carro para e ela desce.

Os seguranças do parque correm na direção das dezenas de carro que estacionam com alarido.

Ao verem o empresário se inclinam respeitosamente.

- O parque é nosso esta noite.

Tremendo, o guarda tenta conversar.

- Senhor... Tantos carros... Vai chamar a atenção!

Com os olhos dourados brilhando, Lucas o observa com o mais absoluto desprezo.

- Arrume uma desculpa! Diga que é uma excursão... Noturna.

Antes que possa ser interrompido, dá um salto de quatro metros ficando do lado de dentro da cerca.

Logo é imitado por muitos outros. Inclusive Felipo e Estela.

- Venha. - chama o empresário.

Gregório dá um passo atrás.

- Eu não posso! Não consigo... Eu...

A lua aparece imponente no céu. O moreno sorri.

Salta dezoito metros no ar e passa vários metros adiante dos outros.

- Eu Sou um Lobo! – grunhe com satisfação.

Fabiana acorda gritando. Está em um sofá com forte cheiro de mofo.

A escuridão é intensa.

- Greg? Oh meu Deus, Greg? Tive um pesadelo horrível...

Do outro lado da sala um isqueiro acende um cigarro, iluminando por instantes um rosto pálido coberto por uma barba negra espessa.

A brasa do cigarro brilha quando este é tragado. Os olhos do homem brilham também, igualmente vermelhos.

- Qual o sua rrelacionamento com a Licantrropo? – pergunta uma voz em carregado sotaque russo.

A quilômetros de lá, no Parque do Ibirapuera, os Lobisomens se espalham ao redor de Gregório, os olhos brilhantes na escuridão.

- Liberte a Besta! - clamam eles.

A princípio o rapaz não compreende, mas logo, rodeado pelos seus, ele inicia a transformação.

O urro é tão intenso que pode ser ouvido a um quilômetro de distância.

A pelagem negra e abundante, seu maxilar e membros poderosos; um colosso primitivo caminha novamente sobre a Terra.

Seu corpo se desdobra exponencialmente, assumindo a fera que já existia dentro dele.

Suas frágeis roupas novas se rasgam, enquanto ele se transforma e cresce.

- Deveria ter insistido para ele vestir a roupa após a cerimônia. Felipo! Providencie roupas novas para o “Natural”! – ordena Lucas.

- Se - Senhor? Eu Po-Poderia ver a glória da transformação do Natural?

Com uma ponta de irritação por não ser atendido imediatamente, mas perplexo pelo pedido, logo o empresário sorri.

- Claro. Mais tarde você busca. Você é um bom servo, Felipo.

O jovem macilento sorri, mostrando os dentes amarelos cheios de tártaro.

Logo os dois se transformam em licantropos também.

Felipo, em um lupino cinzento e magricela, Lucas, um altivo lobo branco.

O grande Lobisomem negro que é Gregório uiva e todos os outros o acompanham.

Horas depois todos pulam a cerca de volta, cansados e suados, mas renovados de alguma maneira.

Cada um deles dá aos guardas caixinhas que variam de R$ 5,00 a R$ 100,00 reais dependendo de sua condição social.

Lucas se oferece para levar Gregório até seu apartamento.

- Agora, vamos acertar os detalhes de sua nova vida...

O moreno franze o cenho.

- Nova vida? Estou muito satisfeito com minha vida atual!

Estela acaricia o peito de Greg.

- Querido... Seu lugar não é na cidade! Você é o mais puro guerreiro, o mais feroz sobrevivente... Você deve ir para o coração da floresta amazônica, onde irá gerar uma linhagem de Lupinos vigorosos!

- Eu não vou sair de São Paulo! – ele range os dentes.

Os três, Felipo, Lucas e Estela trocam olhares nervosos.

- Fúria Negra... – murmura o lobisomem cinzento.

- Quê?

- Vo-Você pode ser acometido da Fúria Negra. Fica tão tomado pela Be-Besta que não distingue amigo de inimigo... – o servo Lupino treme ao dizer estas palavras.

Gregório engole em seco.

Chegam até o apartamento na Rua da Consolação e ele sobe, exausto.

Sobre a cômoda, um bilhete com a letra de Fabiana.

- “Você me deixou plantada no cinema!”

Ele bate a mão na testa.

- Merda! Que mancada! Amanhã eu ligo pra ela!

Desaba na cama. Sem perceber que o cheiro na folha de papel não é de uma mão humana.

* (Mike Mignola é desenhista e roteirista da revista Hellboy, a revista a que o empresário Lucas se refere é “Os Lobos de Santo augusto” procure nos sebos, vale a pena.)

Continua...

FIM DO CAPÍTULO 2

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 08/05/2008
Código do texto: T981287
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