A Fonte
Sônia via-se em um sonho. O quarto escuro. Pintar os vidros de negro foi boa idéia. Economizou nas cortinas. Agitada. Suores. Odores. Sensação estranha de sair do corpo e um cenário recorrente. Caminhava por corredores de uma cidade. Ruas tortuosas. Cenários que, na vigília, não faziam sentido, mas que quando desdobrava-se eram familiares. Sentia a presença de um guia. Seria um ser angelical?
Estava acostumando-se àquelas jornadas seguidas. Decifrava-se a si mesma, explorando os infinitos meandros da mente. Paulatinamente, como uma neblina que se esvai, descortinava novos cenários.
Queriam tomar-lhe o marido e os filhos.
Percorreu túneis formados por estranhos labirintos de construções esguias que se dobravam como presas a querer fechar uma boca cuja dimensão não percebia. À medida que avançava pelos guetos, as ruas se fechavam ao par que outras vielas abriam-se. Em dado momento tentou voar. Não conseguia. Para onde fora aquele poder?
Sentiu uma sensação de perda. Uma dor no peito. Era como se três punhaladas lhe cravassem o seio esquerdo. As feridas formavam um triângulo simétrico. O sangue não jorrava embora a sensação fosse de esvaziamento. A garganta fechava-se como naqueles momentos em que somos humilhados e perdemos a capacidade de reagir a uma ofensa. Queria gritar mas não tinha voz. Via-se através das negras vitrines de uma tabacaria, naquela vila medonha, em trajes escuros, roxo e negro se mesclavam. As pernas cobertas por uma meia fina. Um mini-vestido colado ao corpo. Os seios extravagantes à mostra. Lábios e contorno dos olhos pintados de negro. A pele branca refletia uma luz difusa. Grossa e negra capa aveludada, com alto colarinho e uma bota de canos longos e salto extremamente comprido davam-lhe o ar de criatura gótica, encantadora e poderosa. Tinha a impressão de que a alma e o corpo descolavam-se.
Uma onda invisível conduziu-a para a frente de um portão de ferro maciço ao fim de extensa e larga alameda ladeada por árvores tristes e choronas. Duas grandes argolas em forma de cabeça de leão o guarneciam. Era o portal de um cemitério. Sentiu que deslizava. Foi conduzida pela onda a três tumbas. Nelas gravados os nomes do marido e dos filhos. Queria chorar, não conseguia. Uma dor dilacerava-lhe a alma. A ferida no peito começou a sangrar. Acordou com um tremendo grito.
O marido, ao lado, despertou em susto
- Sônia, o que houve?
- Pesadelo.
- Era o mesmo?
Confirmou com a cabeça. Ele pegou o relógio ao lado da cama. Um pequeno bip denunciava que verificava o horário.
- Quase hora de acordar.
- É melhor, disse a mulher levantando-se.
Correu a tomar banho. O marido chamava as crianças. Sônia, diante do espelho, após enxugar-se, envolta na toalha, via a estranha figura da noite anterior. Pegou de uma tesoura. Sem saber como, cravou, no peito com força. Não gritou. A garganta fechada. Sentiu novamente a sensação de flutuar. À medida que o corpo tombava, viu-se deslizando pela cidade estranha, vultos aplaudindo nas janelas e uma estranha força carregando-a em direção a uma enorme labareda ao centro de uma praça, onde, se fosse uma cidade normal, deveria existir uma fonte...