HERANÇA MALDITA


Dona Amélia estava nas últimas. Suspirava e torcia o rosário nas mãos ossudas e deformadas.
Há oito semanas repousava na cama cheirando a lavanda. As empregadas lavavam várias mudas de roupa por dia, lençóis brancos, camisolas de cambraia de linho bordada em ponto cruz, enxoval vindo de Lisboa nos tempos áureos da fazenda Oliveira.
 
A pretinha espiava da porta, queria ser a primeira a dar a notícia. A velha não morria e a menina voltava triste para a cozinha. 
A cozinheira mexia a canja no caldeirão:-Dona Isaurinha, sua madrinha de hoje não passa, está por um fio, melhor chamar o padre.
 
- Tanto sofrimento, coitada da dinda, tão boa e caridosa, mal cheguei ela caiu doente.
 
-Uma pena a senhora ter vindo de tão longe, mal colocou os pés na fazenda e sinhá ficou deste jeito.
 
- Ela mandou me buscar só para me dar esta herança. Vês este anel? É uma jóia de família, minha boa madrinha quis me entregar em vida, estava tão feliz e animada.
 
- Já te disse para ir procurar o velho Bento, ele cura toda gente, quem sabe cura sua madrinha?
 
-Não gosto destas mandingas, sou muito católica, prefiro meus jejuns e novenas.
 
-Então não venha se queixar que não fez tudo que podia para salvar a pobre sinhá.
 
 
Isaura queria ter coragem para ajudar a pobre moribunda. Sentia-se culpada por não fazer esta última tentativa.
Angustiada, decidiu ia ver o tal preto velho que sabia todo tipo reza e garrafada. 
Andou ligeiro no passinho apertado, meio corrido, o sol a pino queimando sem dó. Na pressa havia esquecido a sombrinha. 
Bateu palmas na frente do barraco e ouviu a voz do velho mandando entrar: - Entre Dona Isaurinha, estava a sua espera.
 
Isaura sentia-se enojada .Um cômodo acanhado e humilde, o chão de terra batida limpo e o velho muito idoso sentado em um banco baixo.
A imagem de São Benedito e Santo Antônio na mesa tosca cercada de velas conferiam um aspecto mais fúnebre ao lugar: - Vim saber se o senhor pode ajudar a madrinha que está nas últimas
 
-Posso sim senhora...
 
-E ela vai ficar boa?
 
-Vai sim senhora.
 
-Estás a brincar ? Não vês que estou desesperada? Ai que má idéia. Mando te surrar até arrancar teu couro.
 
-Bem vejo que puxou sua madrinha.
 
-És muito atrevido velho vou me queixar da tua audácia.
 
-Não carece, vou ensinar o que a senhora precisa. Mas vai depender da sinhazinha ter coragem de fazer o que deve ser feito.
 
- E o que é? Diga que eu faço, anda logo que não tenho o dia inteiro.
 
O velho Bento ensinou um feitiço muito simples. Colocar uma raiz forte em uma gamela virgem, cobrir com leite quente e um pouco do sangue da donzela e a doente será curada:
 
-Que beleza de anel a senhorinha está usando!
 
 - Esta jóia? Tire este olho grande que vale uma fortuna.
 
-Estou só admirando a beleza da pedra,  muito bonita, vá depressa sinhorinha.
 
A mocinha nem se deu ao trabalho de agradecer o velho. Não notou que ele tinha uma expressão maliciosa e os olhos brilhantes.
Voltou para a casa grande gritando com a cozinheira e providenciando todo o material.
 
 Sabia que quando a velha senhora ficasse sabendo quem a havia curado cairia de amores pela afilhada e a cobriria de ouro e prendas.
 
Meia noite  em ponto foi para o quarto da madrinha.
 A raiz de gengibre tinha as formas quase humanas, exatamente como havia sido instruído pelo velho. 

No último momento obrigou a cozinheira a servir de companhia:- Dona Isaurinha, a senhorinha tem certeza? Não se deve mexer com estas coisas, eu tenho medo...
 
-Larga de ser besta que é para a saúde da madrinha. Vamos começar rápido, abra a janela para a lua clarear bem o quarto.
 
A moribunda gemia baixinho Isaura ajoelhada ao lado da cama, fez um talho fundo na palma da mão esquerda deixando o sangue escorrer na cabaça.
 
Sentiu uma dor aguda no peito e imaginou que fosse nervoso. Na alcova a velha se mexeu e resmungou o nome da afilhada. Foi a última coisa que Isaura ouviu antes de cair morta aos pés da madrinha.
 
Dona Amélia deu um longo suspiro e ajeitou o corpo cansado.
A cozinheira correu para amparar a patroa:- Esta deu trabalho sinhá, custou convencer a danada a procurar o velho Bento
 
- Deixe a defunta aí e vá enterrar o feitiço antes que o leite esfrie, você já sabe o que fazer.
 
 
A cozinheira correu para o antigo cemitério de escravos. No canto afastado o preto velho havia cavado um buraco fundo e esperava a gamela:- Desta vez quase não deu tempo. Tive dó da menina.
 
-Enquanto a malvada tiver parenta para vir fazer troca ela não morre tão cedo.
 
-Com esta são quatro inocentes, dizem que ela tem mais de cem anos.
 
-Quatro vezes ela barganhou com a morte. Pensar que até as filhas ela enterrou para ficar aqui tomando conta destas terras. Cruz credo.
 
A casa grande já estava toda iluminada, as mulheres afobadas tratando da arrumação do velório no salão principal. 
Dona Amélia escolheu o melhor vestido para a afilhada. Tirou o anel da mocinha e colocou no próprio dedo, admirando o enorme rubi vermelho sangue. 
Tocou com doçura o rosto da morta. Isaura aos trinta e cinco anos, virgem e pobre não tinha família para reclamar a ausência. 

Ajeitou os cabelos e pensou nos cinco anos que ainda tinha pela frente. 
O dia estava clareando quando o padre chegou do vilarejo acompanhado por várias famílias para rezar as novenas e velar a defunta.

Mais uma desgraça na Fazenda Oliveira.
No povoado diziam que era uma Maldição de Sinhá Amélia.

Ainda que não acreditasse em tais boatos,o bom cristão benzeu-se e rezou uma Salve Rainha antes de apear da carroça. 
Isaurinha parecia uma noiva, toda de branco, um buquê de rosas brancas entre as mãos entrelaçadas. 
A madrinha em luto pesado ocultava com o véu o frescor e as faces coradas.
Completamente refeita e bem disposta.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 01/05/2008
Reeditado em 28/10/2008
Código do texto: T970546
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