1998 - Ritual de Sangue

- Vamos celebrar a missa! – avisa a voz áspera.

Os cantos monásticos e os rostos solenes poderiam até passar por uma missa cristã, mas os estranhos apetrechos sobre a mesa denunciam se tratar de uma liturgia de outra espécie.

Sobre um grande pentagrama há uma carcaça de bode preto.

O sangue quente ainda escorre, molhando os pés espetacularmente calçados do sacerdote vestido com uma manta cerimonial vermelha.

Após sussurrar frases em uma língua que já era antiga quando a humanidade engatinhava, o homem observa seu efeito: uma estranha bruma esverdeada de aspecto doentio os cerca.

Toma estranhas formas, dissolvendo-se ao ser encarado fixamente.

O ar enche-se de sussurros malignos.

Alheio a tudo mais, duas figuras encapuzadas esperam o momento crucial.

- É chegada a hora do sacrifício! – avisa o mestre.

Uma criança, ainda sem batismo, é introduzida no escuro porão. Caminha com um ar aéreo, provavelmente hipnotizado ou drogado.

Debaixo do grosso capuz preto, uma moça aperta com raiva o cabo de uma machadinha.

O menino se põe de joelho diante do altar.

Ao sussurrar novamente a língua profana, o sacerdote molha as pontas dos dedos no sangue do bode.

Depois de gravar a testa da criança com o líquido rubro, pega sua afiada adaga.

Gritando palavras incompreensíveis, os olhos arregalados de êxtase, levanta a arma cerimonial acima da cabeça.

Segura o rosto do garotinho e o coloca em posição para ser supliciado.

A lâmina tem um brilho esverdeado, onde aparecem com riqueza os detalhes entalhados em sua superfície.

Entre as centenas de encapuzados, nem todos estão ali para ver o sacrifício.

- Todos parados! Polícia federal! – grita um homem de bigode espesso.

Outros agentes da lei se descobrem, apontando suas armas para os membros da seita.

Eles não parecem intimidados.

- Humano! A entidade a quem sirvo não pode ser detida por vocês! – avisa o sacerdote.

Nesse instante um vulto passa à sua frente.

O mestre sombrio tem a impressão de que algo importante lhe foi arrancado. Procura o menino com o canto dos olhos, pronto para desferir o golpe fatal.

Espanta-se.

- A Criança! SUMIU!

Os outros membros parecem reagir. Olham em volta com desespero até localizarem o pequenino em um canto.

Esta no colo de um encapuzado.

O membro mais graduado avança.

- Você tá louco? Dá ele aqui!

Para bem próximo ao ver o par de olhos vermelhos que o encaram com frieza de sob o manto.

Tenta tomar a criança, mas tem o pescoço esmigalhado no mesmo instante.

Enquanto suspende o menino com uma mão, arranca o capuz jogando-o ao solo.

Todos vêem no rosto do rapaz os traços tipicamente indígenas, seus olhos vermelhos e os longos dentes caninos, porém denunciam que se trata de uma criatura diferente.

- Não sei como alguém tão pequeno pode causar tanto problema! – reclama ele em uma voz quase inaudível.

O índio se chama Saturno e há uma semana procura o pequeno Marquinho. Apesar de ser uma vampira a pouco mais de dois anos, Ângela não consegue deixar velhos hábitos.

Um deles é visitar seus antigos parentes humanos.

Além de seu tio hippie, tem mais uma tia e um sobrinho pequeno.

- Mas você já está morta! – reclama Saturno.

- É... Mas eles não sabem disso! – replica a garota.

Ainda demoraria alguns anos para ela largar esse costume, tempo suficiente para os parentes perguntarem-se o porquê dela parecer sempre tão jovem.

Certa tarde de Dezembro, os pais de Marcos acharam a criança muito calada. E quando entram no seu quarto descobrem desesperados, que ele havia sumido.

Em seu lugar havia um fragmento de ouro puro.

A família chama a polícia e estes, certos de que o menino fora pego por um maníaco, começam a investigar.

- Não.

Ângela insiste para que os dois investiguem o seqüestro de seu sobrinho.

- Você tem que entender que eu ainda os sinto como uma família! – pede ela.

Ante a face de pedra do índio, inflexível, ela chora.

Aquelas lágrimas racham o coração de Saturno. Pela primeira vez em quatro séculos ele sente pena de alguém.

- Tá. Vamos tentar achá-lo... – consente ele, muito consternado.

A garota o abraça com força e o rapaz de longos cabelos negros, não sabe o que dizer, pois pouco a pouco tinha perdido a capacidade humana da emoção.

Foram à delegacia durante a madrugada e sorrateiramente tiveram acesso às evidências do caso.

Fotografam a peça de ouro e levam para Caronte, um vampiro amigo residente em Osasco.

Esse Caronte é uma bichinha doida, provavelmente o primeiro vampiro Clubber que o mundo teve conhecimento.

Também é um dos melhores Hackers´s que existem no mundo. Entregam-lhe a fotografia da peça.

- Já ouviu falar de Internet?

Diante do olhar de indagação dos dois, o vampiro gay dá de ombros.

- Deixa pra lá fofos! Não vai demorar mais que uma hora!

Mas não foi bem assim, mesmo cruzando dados na Internet e trabalhando com seis computadores em rede e um vírus de rastreio inteligente, após 36 horas Caronte não consegue nada.

- E então? – cobra Saturno.

O vampiro Gay balança as mãos de maneira afetada.

Dois dias inteiros perdidos, e talvez a criança já esteja até morta. O índio joga a moeda para o alto, agarrando-a antes que esta caia no chão.

Ângela terá que se conformar.

- Parece até jogo de RPG! Uma pista indecifrável que é a chave do final! – reclama Caronte amuado.

O vampiro índio que já se preparava para ir embora, para subitamente.

- O que você disse?

- Disse que esta pista é indecifrável fofinho!

Saturno tem uma súbita idéia. Pede que o amigo ligue o computador de novo.

Após vasculharem a rede, descobrem algo promissor: um bando de Demonologistas havia juntado um mínimo de conhecimento arcano e pretendem ressuscitar uma divindade inominável.

- Querido! Deixa o pivete rodar! Você sabe que “Eles” não vão deixar o “Capiroto” sair assim numa boa! – graceja Caronte.

Saturno o encara com raiva. Às vezes tem vontade de estrangulá-lo.

Não se digna a responder. Vampiros novos não conhecem o significado da palavra “Honra”!

Havia prometido encontrar o pequeno Marcos e manteria sua promessa.

Descobrem que as peças de ouro, é o pagamento pelos pequenos sacrificados.

Sobre a face de um medalhão um poderoso símbolo cabalístico fora gravado e partido em seis partes.

No momento em que os pais pegam a moeda, eles aceitam vender seus filhos.

Cada criança representa uma parcela e ao uni-los na morte ritual, se abrirá um portal no limbo, trazendo o demônio representado na face do medalhão.

Encontram um diário virtual na rede, onde um dos membros conta em detalhes as ações macabras de sua seita, na forma de contos de terror.

Já haviam sacrificados cinco dos escolhidos, algo que não choca Saturno. O pequeno Marcos será o próximo em um ritual que acontecerá no auge da Lua Cheia.

- Descubra quem é o dono da página e me ligue. Vou lhe fazer uma visita!

- Rapidinho fofo! – responde o Gay e começa a digitar freneticamente.

Cruza suas informações com as da vampira. Recolhem outras denúncias de seqüestro e descobre que a polícia tem a descrição dos outros cinco seqüestros.

Traçando as localizações sobre um mapa do Estado, descobrem que se trata de um pentagrama. Como os sacrifícios foram feitos nas junções fica faltando o local para do último sacrifício.

Por dedução própria acreditam que encontrarão o encontrarão na cidade de Jaú.

O vampiro índio fica muito feliz com Ângela. Pouco depois de meia hora quando os dois estão viajando de trem para o interior norte de São Paulo Caronte liga.

- Coraçãããão? Descobri fofo! O endereço do pilantra!

Após anotar o endereço o vampiro se recolhe a um porão na cidade de Itu. O dia se aproxima velozmente e Ângela precisa descansar, assim como ele.

Faltam duas noites para o pico da Lua Cheia.

No entardecer do dia seguinte acordam junto com a escuridão.

A fome os esmaga.

Teriam muito mais o que extrair de Rodrigo além de informações. Rodrigo Buchatti, analista de sistemas e satanista nato.

Não que seus parentes e conhecidos sequer desconfiem de suas preferências religiosas, pois ele se passa por um católico praticante.

Na mesma noite alcançam a cidade de Jau, a capital do calçado feminino e encontram o analista em sua casa. Os dois têm que derramar muito sangue antes dele revelar o que sabe.

O resto, eles bebem depois.

Acessam os dados no computador de Rodrigo, mas logo Saturno se enerva.

- Que bosta! Não consigo mexer com essas coisas!

Ângela o acalma e mais paciente, assume seu lugar.

Ela não é um Hacker como Caronte, porém é ótima com informática. Vasculha os dados de cabo a rabo sem muito sucesso.

A localização do pequeno marquinho é algo que só o grande mestre sabe. Contentam-se em descobrir a localização do sacrifício. Será em um galpão próximo da Associação dos Plantadores de Cana da Região de Jaú.

O ritual começará as vinte e três e meia horas da noite em um galpão alugado.

Saturno e sua companheira vão para lá. Dormem no cemitério local e saem à tarde.

As pessoas simples do lugar os observam com estranheza, e eles por sua vez ficam observando o galpão e notam que os grupos chegam a pequenas quantidades por vez.

Entram de três a cinco pessoas no máximo.

Alguns têm a aparência de altos executivos, outros, simples peões. Carregam sacolas, bolsas ou maletas.

Os vampiros interceptam dois deles e quebram seus pescoços sem a mínima piedade.

Olhando dentro das sacolas encontram um manto negro com capuz. A roupa tem uma tarja vermelha no ombro esquerdo, mas os imortais não sabem seu significado.

Resolvem entrar no lugar dos mortos esperando não serem descobertos lá dentro.

A porta se abre para um galpão completamente escuro. Um vulto de costas para eles os instrui com voz grave:

- Cubram a cabeça com o capuz, não mostrem os rostos e nomes não importam aqui dentro!

Na penumbra alguém os chama.

- Vocês! Para baixo! O ritual vai começar logo!

Incógnitos, eles descem para o subterrâneo.

Caminham por um alonga escada, até chegarem a um porão fracamente iluminado.

Muitas centenas de pessoas se encontram ali. O vampiro de longos cabelos negros nota certa hierarquia.

Os membros com três faixas vermelhas no ombro esquerdo podem ficar mais perto do altar. Aqueles símbolos na grande mesa não lhe deixam dúvidas: trata-se de uma liturgia Satanista.

O silêncio se torna mais espesso ao ouvirem o ruído de passos ao longe.

Um homem grande, vestido com um manto encarniçado adentra o porão. Com sua máscara ritual de marfim e longos cabelos ruivos, inspira submissão.

O índio nota também que outros, como eles, não parecem estar a vontade. Lê as mentes frágeis dos humanos.

Eles movem-se de modo diferente, posicionando-se entre os fiéis e parecem estar armados.

- Polícia. – avisa Ângela em voz extremamente baixa.

Saturno assente com a cabeça.

Trazem o bode preto e o mestre vira de costas para todos. Com uma afiada adaga o sacrifica, esquartejando-o sobre a mesa.

O sangue torna sua vestimenta mais vermelha ainda.

Gritando palavras em uma língua desconhecida, que deixa todos de cabelos arrepiados, ordena que tragam o menino.

Tudo acontece muito rápido desse momento em diante: a Polícia Federal se revela e o imortal rouba o moleque bem debaixo do nariz do sacerdote!

Ele tem que dar um jeito de fugir, mas está cercado.

Sente uma dezena de mãos segurando-o e seu punhal faz um circulo prateado no ar.

Alguns homens, sortudos, caem no chão já sem vida. O que vêem depois não tem tanta convicção ao verem os companheiros mortos e outros aleijados para sempre.

- Parados! Parados! – grita o chefe dos policiais.

Um dos agentes federais dispara e logo todos atiram sem controle. Todos os fiéis com um pingo de cérebro tentam fugir pela estreita escada.

No alvoroço, muitos acabam pisoteados e mortos.

O mestre anda calmamente, jogando longe as pessoas que aparecem a sua frente.

Seus olhos azul-celeste soltam chispas de ódio.

- Entregue o pequeno! – ordena ele.

O índio dá um sorriso irônico. Vê Ângela aproximar-se do inimigo por trás.

- Vem pegar! – graceja ele.

Ele avança dois passos ficando bem próximo do rapaz de longos cabelos negros e da criança.

A vampira crava a machadinha com força entre os cabelos ruivos. Lágrimas de sangue escorrem dos olhos do sacerdote.

Uma rachadura fende a máscara de alto a baixo.

Em um movimento que surpreende ambos os imortais, o mestre crava a adaga nas costas do menino. Faz um semi-circulo chutando a garota com força insuspeita.

Ela voa no ar, caindo entre corpos sem vida.

O sacerdote arranca a máscara e o índio segura a respiração.

- Você é um vampiro! – espanta-se ele.

O ruivo puxa a adaga manchada de sangue e ri.

- Idiota! Seu esforço para me impedir foi em vão!

Vendo o sangue do pequeno em suas mãos o índio se enfurece. Tudo a sua frente se tinge de vermelho.

Seu punhal zune no ar abrindo um profundo talho no pescoço de seu inimigo.

Este deixa cair a adaga, surpreso com a velocidade do golpe e com as duas mãos tenta conter o sangue que salta em jorros.

Saturno aproveita-se do descuido do vampiro ruivo e pisa em seu joelho, partindo-o para trás.

O sacerdote, sem ponto de apoio algum, cai no chão.

Ângela se levanta e volta correndo para ajudar seu amado. O índio pretende esmagar a cabeça de seu inimigo, mas para derrepente ao ouvir uma voz conhecida.

- Sssssaturnooooo...!

A voz sobrenatural chama seu nome.

Um arrepio lhe toma da cabeça aos pés. Havia escutado aquela voz pela última vez pouco mais de cem anos atrás.

Para ser mais exato em 1890.

Olha para a mesa de sacrifício. Algo como uma espessa nuvem de fumo parece tomar forma.

Aquele é o espectro de um demônio ancestral, que ele combatera há muito tempo.

Por um momento se lembra do poço profundo e os destroços da torre. Será que este é o mesmo terreno amaldiçoado?

Volta à terrível realidade, no momento em que o ser infernal fala outra vez:

- A prenda ffffoi sssssacrificada... Vou me materializzzzar em sssseu universsso... – urra o ser maligno.

Saturno pode sentir o ódio em sua escabrosa voz. Entrando em nossa dimensão ele será o primeiro a sentir as conseqüências.

- Ângela! Tome o garoto! Dá seu sangue para ele! – grita desesperadamente.

O rapaz de longos cabelos negros atira o pequenino e a vampira o agarra no ar.

- Quê? Eu não vou transformá-lo em um de nós!

Ela sabia que seu sobrinho nunca envelheceria. Seria um pária mesmo entre os imortais.

Um morto-vivo, preso eternamente em um corpinho de criança.

- Faz o que eu mandei porra! – ordena o indígena.

Com os dentes, Ângela rasga o próprio pulso. Embora relutantemente encharca de sangue a boca do menino.

Ela o observa bem, mas o pequeno garoto continua o mesmo.

- Não ta acontecendo NADA! – grita ela.

O vampiro índio encara com desespero o bicho que parece cada vez mais nítido.

- AiMeuSaco! Vai tentando!Vai tentando!

Seu punhal rasga o ar, mas não fere o demônio. Este ainda não se materializara o suficiente e nossa realidade.

- SSSSERVOSSSS! OLHEM PARA MIMMMMM! – conclama o ser.

Muitos olham para trás, para a figura demoníaca, ao ouvirem a ordem tenebrosa.

O ser infernal aspira profundamente, e os humanos caem secos como uvas passas. As almas, arrancadas zunindo por Saturno.

Os vampiros nada sofrem. Não tem almas para serem roubadas.

O ser monstruoso sorri. Está mais nítido agora.

Mas ainda não está satisfeito e suga profundamente mais duas vezes. A cada vez que aspira ceifa a vida de dezenas de humanos.

Policiais e fiéis. Todos caem perante a fome voraz do demônio.

- ÂNGELAAaaa! Faz seu sangue circular nesse moleque! – grita o índio desesperadamente.

Pelo tom de voz dele, a vampira percebe a gravidade da situação. Ela enche a boca de sangue e furando o pescocinho com a unha afiada, empurra com força três vezes.

O demônio avança sobre Saturno, mesmo com o corpo encurvado, sua cabeça bate no teto do porão.

O índio guarda o punhal e veste um par de luvas de couro pretas.

Tira de dentro da roupa, algo comprido e enrolado em um trapo sujo. É a espada Santa.

Guarda-a desde que quase fora morto por ela, dois anos antes.

Dentro da empunhadura há um fragmento de osso engastado, provavelmente de Cristo.

O rapaz de longos cabelos negros brande a espada no ar, ferindo o ser infernal no estômago.

- Você não temmm o poder necesssssário para me dessstruir....

O amaldiçoado gargalha.

Desfere um poderoso soco no chão, que faz todo o lugar tremer. Só a grande agilidade de Saturno o livra do golpe.

Crava a lâmina na mãozorra do demônio, mas ele consegue agarrá-lo com a mão livre.

O vampiro índio tenta se livra e não consegue.

Seus ossos pouco a pouco são esmigalhados.

O ser monstruoso abre um sorriso grotesco, com evidente satisfação.

- Vou arrancar ssseusss membrosss como um inssseto! – murmura ele.

Apesar de acostumado a dor, Saturno deixa escapar um longo gemido. O pequeno Marcos pisca uma vez.

Vivo.

A mão do gigante se desmaterializa e o índio cai no chão. Seu corpo, flácido como um trapo velho.

Muito ferido, mas vivo.

- O QUÊ? – urra o demônio.

Ângela grita de alegria.

- Amor! Eu consegui!

Por mais esforço que faça o ser infernal não consegue se solidificar.

Com dificuldade extrema, Saturno se põe de joelhos, o corpo, pende de lado. Derrepente o índio arregala os olhos puxados.

Tudo acontece antes que possa se manifestar.

O vampiro ruivo corre por trás de Ângela com a adaga em punho. O talho em sua garganta havia parado de sangrar.

Seu corpo vampírico já havia se regenerado.

A moça engasga, sentindo uma súbita dor nas costas.

Um filete de sangue escorre de seus lábios e ela olha para o próprio peito. Entre os seios a ponta da lâmina afiada aparece.

Mesmo com a machadinha enterrada quase entre os olhos o sacerdote ri maleficamente. Dá um chute nas costas da garota, puxando a adaga.

O pequeno Marcos cai no chão, longe de sua tia vampira.

Saturno dá três passos largos saltando no ar. Não tem ainda o controle completo de seu corpo, por isso parece um boneco impulsionado por uma mola

O imortal ruivo levanta a adaga no ar, pronto para desferir o golpe fatal.

O índio cai sobre ele com uma raiva silenciosa.

Os pés sobre a machadinha empurram com violência para baixo e a cabeça do ruivo se parte em duas, tal e qual um ovo podre.

O ser noturno inimigo cai tentando juntar os pedaços da própria cabeça.

Saturno solta um suspiro de alívio, até olhar para baixo.

O corpinho da criança se esvai em sangue. A adaga, cravada fundo em seu pequeno coração.

- “Puta merda”! – pensa.

Olha para o lado do demônio e se apavora ao notar que este volta pouco a pouco à carne.

O ser infernal solta um riso medonho.

- Chegouuuu seuuuuu FIM!

Saturno agarra com mais força o cabo da espada.

A vampira, mesmo ferida, volta para cuidar do menino.

E o índio corre, saltando sobre o demônio surpreso. A espada sagrada perfura um dos olhos do amaldiçoado, fazendo-o urrar.

Em seguida, o rapaz de longos cabelos negros tenta saltar o mais longe possível da entidade de tremendo poder, mas é agarrado por uma perna.

O ser infernal é extremamente ágil para seu tamanho.

O corpo de Saturno é atinge o teto diversas vezes e é atirado longe. Ele rola sobre os corpos, ficando silencioso por alguns momentos.

Quase não lhe sobra um osso inteiro.

Ângela tapa a boca, horrorizada.

O demônio espera alguma reação e então se volta para a imortal:

- Agoraaaaa é suaaaa vezzzzz! – sibila ele.

Mal a criatura dá um passo quando escuta um grito.

- NÂO!

Saturno se levanta com dificuldade e mostra a espada. O ser infernal arreganha os dentes em algo parecido com um sorriso.

Apesar do esforço e coragem, o índio cai e joelhos após alguns passos.

- Angel... FOGE! – grita desesperado.

A vampira não se mexe, está disposta a morrer por seu amor. Ignorando seu adversário caído, o demônio se volta em direção à moça.

Quer ver o índio, que lhe frustrara sua invasão ao nosso plano de realidade duas vezes, sofrer com a exterminação dela.

Saturno abaixa a cabeça, mal tem energia suficiente para se mexer.

O porão é subitamente iluminado.

Um cheiro adocicado. Indefinível.

Como o mel e frutas silvestres, toma conta do ar. Três figuras, envoltas em luz passam por ele leves como o ar.

Uma das criaturas translúcidas lhe toma gentilmente a espada.

- NÃO! VOCÊSSSS NÃÃÃÃÃOOOOO! – berra o demônio.

Indiferentes, eles o cercam.

Uma voz. Tão bela como um canto de passarinho.

- Servo de Belial, volte parta seu lugar. Ainda não é chegada vossa hora. – ordena o ser celestial.

A criatura do inferno tenta atacá-los, mas eles se desviam dos golpes quase como se não se movessem.

- NÃO! EU JÁ FUIIIII UM IRMÃOOOO DE VOCÊÊÊÊSSSS – urra o ser tenebroso.

-Isso foi a muitas Eras. Antes do Início. Você escolheu a queda e deve quitar a dívida com o mais Alto. –avisa outro ser imaterial.

- Tenteeeem me mandar de vooolta entãããoooo! – desafia o ser grotesco.

Saturno se arrasta até sua amada, puxando-a pelo braço.

A vampira está paralisada. Nunca em sua vida havia visto nada tão belo.

O demônio cruza os braços de do tamanho de postes e quando os abre, solta uma tremenda onda de choque.

Até os seres de luz parecem ser afetados, pois protegem os rostos com as mãos.

O vampiro ruivo desiste de procurar o outro lado de seu crânio e se afasta para um canto escuro, procurando fugir da batalha de entes tão poderosos.

Ângela sai do êxtase e ajuda seu companheiro a se levantar.

Com dificuldade escalam a pilha de corpos nas escadas.

A cada ataque do ser infernal acuado o edifício estremece. A construção treme mais duas vezes e quando chegam ao alto se surpreendem.

Agentes, fiéis e descrentes.

Todos dentro do galpão estão mortos. Secos.

O demônio havia sugado todas as almas daquele porão infecto.

No subterrâneo a batalha está próxima do fim.

- Diante de sua recusa... – começa a dizer um deles.

- Devemos usar a força... – continua o segundo.

- Para mandá-lo de volta. – completa o terceiro.

Agarrando o cabo da espada sagrada, O anjo libera todo seu poder Divino.

O imortal ruivo grita em agonia, assim como o demônio de imensa força, sentem seus corpos começarem a se desfazer milhares de fragmentos

Os vampiros alquebrados estão quase na saída quando sentem algo estranho. O galpão sofre uma convulsão extrema e o solo começa a se desintegrar.

- CORRE! CORRE! – grita o rapaz de longos cabelos negros.

Ele dá um forte empurrão, atirando a bela vampira porta afora. Ângela rola, protegendo o pequeno corpinho aninhado em seu colo.

O edifício vai pelos ares em uma explosão de luz gigantesca.

A moça vê seu amor ser atirado ao longe.

Em chamas.

Corre até o índio, apavorada em como ele pode estar.

Quando se aproxima o bastante vê que ele está de pé, apagando o fogo com as mãos.

Seus cabelos negros e escorridos, completamente queimados.

- Merda! Eu adorava essa camiseta! – reclama ele.

Ângela sorri também, e logo começa a sentir o coraçãozinho de seu sobrinho, Marcos, bater.

Seu sorriso morre no rosto.

Uma sombra de dúvida lhe atravessa a mente.

- Será que ele vai se tornar um de nós? – pergunta ela angustiada.

Saturno pensa por um instante antes de responder.

- Acho que não. Seu sangue não tem a força suficiente.

A filha da noite fica aliviada.

Provavelmente não ficaria se o índio dissesse a ela que o garotinho nunca mais seria um humano normal.

Pouco a pouco os dois se afastam do local em chamas, enquanto escutam a sirene dos bombeiros.

- E a Espada?

- Se ainda estiver lá, eu recupero depois!

O galpão é consumido por chamas estranhas, que os bombeiros não conseguem apagar.

Parecem consumir a si próprias depois de algum tempo depois de reduzirem a zero todos os corpos dos infiéis.

A Polícia Federal não se pronunciou sobre o caso, limitando-se a recolher escolher estranhas evidências.

Após certa pressão pública, os bombeiros chegam à fácil conclusão de que um vazamento de gás foi a causa da explosão.

Das duas centenas de corpos, nada sobrou.

Centenas de desaparecimentos foram notificados às autoridades nos vinte e sete Estados brasileiros.

Como Saturno havia prometido, seis meses depois buscou a Espada. No prédio da Polícia Federal em São Paulo.

Agora tudo volta à normalidade. Até mesmo o fato de Ângela ter visto Anjos.

Marquinhos não se lembra daquela noite.

Ele brinca com um carrinho na sala de sua casa. O pai ronca no quarto.

O menino vê uma barata passar sorrateira pela parede próxima.

Corajoso, o menino tenta matá-la, mas ela entra debaixo de um pesado sofá de três lugares.

Irritado, o menino levanta o móvel com apenas uma mãozinha.

Agarra o inseto.

Quando solta o sofá, este faz um barulhão.

A mãe larga um prato que se espatifa no chão, o pai dá um pulo na cama.

- O que foi isso Marquinho? – pergunta ela apertando o coração.

O pequeno menino está sentadinho no sofá, com o carrinho na mão.

- A janela bateu com o vento mamãe.

Ele aponta para a janela fechada.

A mulher olha em volta procurando algo quebrado. Não vendo nada de anormal, dá de ombros.

Passa o trinco na janela e beija o filho no rosto.

- Não faça barulho que o papai trabalhou muito hoje. E ponha uma blusa que você está gelado! – pede ela.

- Sim mamãe.

A mulher volta a seus afazeres, e o marido, vendo que não é nada demais volta para a cama.

O menininho sorri e seus olhinhos ficam vermelhos por um instante. Ele esmaga o inseto e volta a brincar com seu carrinho.

FIM.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 23/04/2008
Código do texto: T958149
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