A COLINA
Uma noite inesquecível, sim! Isso é o que a define! Uma noite além da imaginação, e lá estávamos nós, eu e minha namorada, admirando aquilo– se é que aquilo era passível de ser admirado.
Já acampávamos a umas duas noites num parque no interior de Minas Gerais. Era uma região com muito verde, as matas eram cheias de ipês, tílias, flamboyants– toda uma profusão de árvores tão belas e magníficas que não há conhecimentos botânicos para dizer o nome toda aquela vitalidade. Era essa a imagem que predominava naquela reserva. Afirmo que era a imagem predominante naquela terra por conta de uma colina que havia próximo à região onde nos instalamos. Poderia dizer que aquela colina era de fato uma charneca, pois a sua imagem era pedregosa e esparsadamente havia aquela vegetação seca e desoladora que cresce nesse tipo de outeiro.
Não posso dizer muito bem, mas havia alguma coisa ali– e mais tarde minha namorada também me confessou que sentia o mesmo– que me causava uma profunda sensação de estranheza e repulsa. Pensei que fosse a esterilidade que emanava daquela colina em contraste com todo o espírito verdejante ao redor, aquelas matas musicais por contas das aves e fragrantes em virtude do cheiro das flores.
De qualquer forma, aquela região me causava repulsa, não gostava de olhar para aquilo. Porém quando menos percebia eu estava olhando diretamente para ali, a repulsa tinha em si algo de atrativo.
Bom, mudando de assunto. Para o acampamento obviamente levei uma barraca, mantimentos, lanternas, para caso de qualquer coisa estranha no meio da noite; um rádio para nos entreter; e também um celular e carregador móvel para que pudéssemos nos comunicar com o mundo para o caso de quaisquer problemas, como nos perdemos ou outra eventualidade qualquer.
Os três dias e as duas primeiras noites foram normais. Nada mais fizemos senão que trilhas e namoros durante o dia; e durante as noites aproveitávamos o frio para ficarmos perto da fogueira, ouvir uma música e continuarmos namorando e namorando e namorando. Nada mais que isso se fez nesse tempo, ainda mais por só termos feito essa viagem para namorarmos e fazermos algumas trilhas– mas principalmente para namorar e bebermos em paz durante a noite.
A terceira noite era uma noite incrivelmente bela apesar de tão bizarra em suas revelações finais. A lua prateada– e ainda assim baça- brilhava sobre um céu de tons acobreados, brilhando como um grande olho cósmico; a névoa era sutil porém se espalhava por toda a mata, porém mais ainda se espalhava, por sinal com bastante densidade, no entorno daquela estranha charneca.
Eu e minha namorada naquela noite curtíamos um bom vinho do porto, romanticamente, ouvindo uma boa música no som, a rádio tocava algo que parecia ótimo para o momento, uma dessas baladinhas românticas que toda pessoa gosta quando escuta. Nos entregávamos aos beijos e à carne um do outro, bebíamos nosso vinho do porto, escutando aquela música que ainda não posso me lembrar. Ficamos assim por um tempo, um tempo maravilhoso.
De repente, a música mudou.
Daquela balada calma, recheada pelo dedilho gentil das cordas de um violão, do passo calmo das notas do teclado, transformou-se numa música estranha para mim. Havia, no lugar da gentileza das notas do violão, toda uma crueza das notas de uma guitarra, que se arrastava horrendamente, acompanhada pela voz lúgubre, desesperada e grotesca de um homem. Me lembro ainda de um trecho da música que me marcou horrivelmente, embora não tenha escutado nada além dessa parte. Era acredito que assim:
Big black shape with eyes of fire
Telling people their desire
Satan's sitting there, he's smiling
Watches those flames get higher and higher
Oh no, no, please God help me!
– Pô, amor, tira isso daí– disse minha namorada– mó coisa de metaleiro, pessoal maluco– disse ela, me parecia um pouco assustada com a mudança repentina na música
– Tá com medo, é?
– Claro! Isso do nada, parece até coisa do capeta mesmo– disse realmente assustada, supersticiosa– amor! Tira isso logo vai!
– Tá bom, tou tirando, fica calma, já tou tirando– disse eu um pouco malicioso
Depois eu fiquei pensando, realmente aquilo era de dar medo. Não era o medo do mal somente, era o medo da desolação que se abateu sobre mim. Era estranho realmente escutar aquela música medonha, falando de chamas, satã, e contendo gritos agoniados no meio daquele ermo. Eu queria pensar em coisas melhores, mas as trevas tem sua maneira sádica de zombar de nossas mentes.
Eu ficava pensando nessas, refletindo distraidamente. Quando voltei de meus pensamentos, reparei que inconscientemente eu estava olhando para aquela colina, cuja névoa era cada vez mais densa. Mas uma coisa me chamou atenção, não ventava– e mesmo se venta-se não seria possível, eu acho, aquele efeito– porém a névoa ao redor da charneca estava fazendo uma espécie de movimento circular. Parecia rondar somente a colina, somente ali. Não sabia o porquê, mas aquela imagem somente me trouxe um reforço as coisas horríveis que estavam na minha cabeça naquele momento.
Enquanto pensava nisso, minha namorada gritou:
– Meus Deus! Thiago! Vem, rápido!– sua voz soava histérica
Perguntei o que havia ocorrido, ela respondeu que viu alguma coisa se movendo nos matos. Era uma figura alta e andava com certa calma.
– Vai lá, homem! Vai ver o quê é isso– dizia com a voz tremendo
– Tudo bem, fica aqui, não sai de dentro da barraca.– disse eu preocupado com seu estado– apaga a fogueira e fica com esta lanterna. Eu sei me cuidar, não se preocupa comigo.
Avancei então ao mato, que ali era fechado, fazendo com que a lanterna iluminasse pouco, o que era ainda agravado pela névoa. No máximo eu conseguia distinguir o que estava a uns cinco metros, nada era passível de ser visto além dessa distância estipulada. O mato fechado me fazia avançar com dificuldade, tendo sempre que me desviar dos galhos baixos e também das árvores. A demora ainda era agravada pela minha preocupação com animais nocivos como aranhas, lacraias e cobras– preocupação que tinha apesar de estar usando as minhas botas de cano alto.
Foi após meia hora andando no meio da vegetação que pude perceber aquilo que mariana provavelmente havia visto. Eu vislumbrava uma figura alta, com mais de um metro e oitenta, que devido a distância a qual eu me encontrava, pela claridade da floresta, pela neblina, era uma imagem vaga e totalmente negra, mais negra que a noite e me causava calafrios. Surpreendia-me mormente a sua maneira de andar; a minha ziguezagueava em virtude das árvores e da preocupação com as criaturas peçonhentas, já o passo do vulto não– era um passo firme, reto, inalterável como a morte, seguro. Em suma, aquele vulto me dava sensações que não me eram boas. De qualquer forma, uma vontade vinda de regiões ignotas da minha alma me dizia para seguir aquela sombra.
E assim o fiz, me esforçando ao máximo para manter uma distância constante. Até certo ponto consegui, porém num átimo eu não encontrava perto qualquer sinal daquela pessoa, sombra, vulto ou o que quer que fosse. Olhando ao redor eu percebi: a névoa estava ainda mais densa e o luar estava encoberto pelas nuvens cúpreas; outro detalhe, na minha vontade por seguir aquilo, eu não havia feito qualquer tipo de marca nas árvores. Mais claramente, eu estava perdido no meio da mata.
Decidi ficar parado ali, era mais inteligente, evitaria que eu me perdesse ainda mais. Porém… o que era aquela sombra? O que ela fazia ali? Para onde ia? Era isso que minha solidão agora me fazia inquerir. Todavia, ponderei a questão por pouco tempo.
Atravessava na névoa o som de passos. Passos que eram bastante sutis e ainda assim metalicamente densos, e avançavam somente numa direção– a minha. Em questão de pouco menos de um minuto, lá estava outro vulto, mais ou menos das mesmas proporções na altura. Assim como a anterior, era absurdamente negra, tal qual a anterior, seu passo era direto e inabalável, como o de um daqueles sacerdotes antigos guiados pelo fervor de seus cultos. Mas dessa vez, prestando mais atenção, era capaz de escutar que novos passos vinham além daquele vulto, e mais outros de um outro ponto, e outros, e mais outros. Agora, com curiosidade renovada, decide segui-los. Não me preocupava, pois agora já tinha noção que aquelas pessoas não notavam minha presença.
Eu os segui pela floresta inteira, sendo que na proporção que avançava percebia cada vez mais passos, chegando ao ponto que aquilo tudo parecia o som do avanço de uma verdadeira coorte. Eu devo dizer coorte, pois depois de um tempo eu consegui notar que os passos seguiam quase que de uma maneira rítmica. Era algo que seguia uma cadência, prestando atenção, precisa, densa como a névoa que envolvia o ambiente, mas que de alguma maneira me provocava horríveis sensações.
Mas esse não era o único som que se propagava no espaço. Quando avancei para uma parte mais periférica, eu consegui diferenciar do som dos passos o som de uma música. Era uma música fina, frenética, baixa, arrastada, saturada de notas agudas. Era tocada por músicos invisíveis, por assim dizer, com instrumentos que soavam próximos ao oboé, ao flautim, à flauta de pã, e outros instrumentos antigos de sopro. Tudo ali soava maligno. Meu Deus! No que eu estava me metendo?
Agora estava eu caminhando por um descampado, as árvores agora me pareciam tão distantes quanto o mar, somente havia a minha volta e sob meus pés a grama. Conseguia agora manter o mesmo passo que os vultos, que agora pareciam ser milhares, que mantinham um ritmo inabalável rumo à alguma região que eu não conseguia discernir, em virtude da névoa cada vez mais densa. Enquanto isso, a música- que somente as palavras “medonha”, “horrível” e “pavorosa” podem chegar próximas a definir– estava ficando mais frenética, mais alta, mais histérica, intensificava-se a cada passo que eu dava. Fosse o que fosse eu estava me aproximando do epicentro de onde as notas se originavam.
De repente, enquanto avançava, tropecei em uma pedra. Agora eu sabia onde estava… a vegetação rasteira de gramíneas, a névoa, aquela pedra… sim! Eu estava agora na base da charneca, da odiosa charneca. Mas o que aquelas pessoas faziam lá no topo daquela elevação?
Então tomei um susto:
– YUQTVY RNLÖN SHABAT!– gritou, bradou, fremeu um coro de vozes detestáveis do alto daquele monte. Aquelas vozes eram profundas e ao mesmo tempo agudas, fantasticamente potentes, mas ainda assim eu fiquei pensando se elas poderiam vir de órgãos vocais humanos.
– KULLT SHABAT RNLÖN!– respondeu um coro de vozes tão inumanas quanto aquele anterior
Agora eu podia escutar não somente os instrumentos que tocavam agora com violência inconteste, escutava ininterruptamente essa cantoria bizarra. Minha alma era tomada por um sentimento profundo de pavor, um sentimento naquele instante bastante justificável. Minha mente, contudo, dotada como todas as mentes da curiosidade natural da raça humana, desejava seguir seu caminho para o centro de todo aquele sentimento de opressão e perigo.
Eu escalei pedra por pedra daquela charneca para conseguir subir– e lamento até hoje o fato de tê-lo feito. Cheguei até uma altura onde era possível se saber o que ocorria. Aquelas coisas não deveriam ser vistas… aquelas coisas não deveriam estar acontecendo na superfície da terra… aquelas coisas não deveriam nem mesmo existir…
Lá estavam, para meu espanto e pavor, milhares de homens e mulheres. Eram horríveis, marcados por deformidades inacreditáveis no rosto e no corpo– partes da face com protuberâncias fúngicas, deformidades ósseas, braços atrofiados, membros semelhantes aos de pessoas com elefantíase, coisas bizarras…– estavam ali em uma orgia inominável, sendo que as mulheres gemiam, berravam, ululavam, em obscenidades incríveis. Porém essas gentes horríveis não eram as únicas coisas que poderiam ser vistas ali; lá estavam coisas com troncos humanos mas o restante das feições eram unicamente caprinas, era imagens de sátiros ou de qualquer outra coisa. Mas eram horríveis tudo me dava a mais distinta repugnância que posso imaginar: mulheres e homens de todas as idades, esses seres caprinos, e outras coisas hediondas em um fervor que eu jamais pude imaginar- que as mentes humanas jamais deveriam imaginar. Lá estavam eles em uma fornicação asquerosa, uma profusão de corpos deformados e que a cada momento chegavam mais e mais desses sibaritas e hetaíras , que cheguei a descobrir serem aqueles vultos estranhos que eu segui.
Olhava a cena estarrecido. Tudo ali exalava o mais grotesco e vil ato carnal. E a música agora era mais opressiva, o frenesi das flautas estava agora associado ao batuque selvagem– para não dizer possesso– de milhares de tambores e atabaques que pareciam vir… daonde? De qualquer forma, a música e aquela sórdida ladainha me oprimiam, assim como todo o resto.
Nada, contudo, me prepararia para aquilo que vi.
Num dado momento, a situação daquela orgia chegou ao clímax. Homens e mulheres chegaram ao êxtase, e entoaram simultaneamente aquelas frases e outras que minha mente não consegue recordar. Nesse momento, uma estranha pressão emergiu do cume da colina, não fosse ao local onde estava escondido e a um reflexo rápido teria sido eu lançado longe. Poderia, com prazer esse ter sido meu destino.
Então do provável epicentro da pressão emergiu um pungente odor de putrefação e, num átimo, estava aquilo que me causa tanto pavor agora. Era bastante alto, devia medir talvez uns três metros, que eram bem proporcionais a sua largura enorme. Era horrível, sua pele era de um tom ocre, bastante indefinido, e tinha uma aparência talvez rochosa e luminescente; sua aparência era caprina nas faces, acompanhada por um convanhaque com cor de ferro. Suas pernas, eram um pouco curvadas e pude notar rapidamente que ele tinha não pés mas sim cascos; e no alto de sua fronte estava um par de chifres longos e apontados para o céu. Mas o que me espantou era seus olhos, donos de uma íris vermelha e de uma pupila amarela, era o fogo que crepitava ali naqueles olhos.
– Kgawl uiron fthagn!– exclamou numa voz que parecia o trovão, meus ouvidos foram feridos horrivelmente pelo som daquela voz.
Um grito conjunto foi a resposta. E naquele momento das mulheres saiu uma massa viscosa e nojenta, saiu de todas e escorriam como se fosse gema de ovo. Uma quantia considerável passou perto de mim e – infelizmente– pude discernir aquilo que era a gosma. Para meu horror, e para o leitor normal também, aquilo que estava em minha frente era nada mais nada menos que um torrente tétrica de fetos humanos. Nesse momento eu gritei:
– Jesus!– e comecei a ter o princípio de um desmaio. A última coisa que vi foi aquela face hedionda virando-se para mim e expondo aquelas presas saltadas de javali. Ele vinha na minha direção com furia, o que ocorreu depois, não posso saber, posto que já estava desmaiado
Quando acordei, não conseguia lembrar-me de nada. Ao abrir meus olhos eu já não estava mais ali naquela mata e nem na tão detestável colina, encontrava-me agora no hospital sírio-libanês de Monte Áureo. No meu quarto estavam minha namorada que começou a chorar de felicidade ao me ver mariana e pediu para sair do quarto. A outra pessoa era o médico que estava cuidando de meu caso
– O que houve, doutor?
– Você foi encontrado no meio da mata. Estava gravemente ferido, com várias costelas queradas e um traumatismo craniano. É um milagre que você tenha sobrevivido. É bom que da próxima vez que você acampe preste atenção se você não está invadindo uma propriedade. Os touros podem ficar mais agressivos durante a noite.
– O que você quer dizer com isso, doutor?
Então ele abriu minha camisa. Entregou-me um espelho e perguntou-me o que eu vi. Somente o desespero aquele fluxo de memória me trouxe. O reflexo que estava no espleho mostrava uma enorme marca extendida por todo meu peitoral direito, parecida com aquela de um touro. Era negra e se assemelhava com uma enorme queimadura.
Agora estou marcado para sempre. A cada ano , no dia de 30 de abril, eu fico doente e a marca me parece queimar entre a meia-noite e o nascer do sol