Statu quo
Já havia muito se sabia serem as ruas estreitas do Centro de Liberté mais perigosas para jovens negros do que um covil de feras carnívoras para um antílope. Ainda assim, muitos faziam ouvidos moucos às recomendações dos mais velhos e saíam à procura de diversão, impelidos talvez pelos desejos da juventude ou simplesmente atraídos pelas magnéticas luzes da cidade.
Decerto uma metrópole de 20 milhões de habitantes abrigaria toda sorte de malfeitores, escondidos entre os cidadãos comuns, prontos para, a um descuido das vítimas, dar o bote. Mas, além dos facínoras comuns a qualquer grande cidade, Liberté era afligida por outro Mal - assim, com letra maiúscula, tal o horror que seus cultores provocavam no restante da população. O Mal supremo, a ignomínia absoluta do povo: os vampiros pululavam pelo distrito industrial de Liberté. Por razão desconhecida da quase totalidade dos libertenses, atacavam com sofreguidão jovens negros.
A preferência talvez se explicasse por um rigor exclusivista - tergiversavam alguns -, já que, ao contrário do que contavam as lendas de tempos imemoriais sobre seres da noite, as pessoas de cor não carregavam consigo o vírus do vampirismo. Uma vez mordidas, não se tornavam criaturas das trevas, senão cadáveres dilacerados e prontos para o encaminhamento à morgue. De todo modo, mantinham-se obscuros os objetivos dos hematófagos do distrito.
Naquela noite, um adolescente pardo saía de um clube de rinha de galo, no Centro antigo, rumo à estação de trem de Ville Roumaine. Dali partiria para a favela em que vivia, no subúrbio da região metropolitana. Eram então 23h55. Consciente dos perigos da noite, caminhava em marcha rápida por um beco deserto e escuro próximo à divisa com o distrito industrial. À sua esquerda, erguia-se imponente o muro de tijolos trabalhados artesanalmente da antiga fábrica de chapéus - de onde, em tempos idos, saíam os últimos modelos diretamente para as cabeças da elite branca de Liberté. Mais à frente, estava a estação ferroviária.
A poucos passos de seu destino, o garoto ouviu um grito estridente atrás de si. Apesar de os termômetros marcarem 15º C, numa típica noite de inverno libertense, o jovem, agasalhado da cabeça aos pés, suava frio. Não teve coragem de se virar após ouvir o barulho. Em vez disso, retirou de seu jaquetão, com a mão direita, um canivete. Na esquerda, levava alguns trocados ganhos na aposta.
Antes que pudesse tornar para a outra extremidade do beco, sentiu um forte solavanco, como se fosse atropelado por uma carreta. Um corpanzil cujo peso estimado poderia ser de uns 300 quilos se enganchou nas suas costas - os pés arqueados acoplados ao dorso inferior do rapaz, quase na altura da cintura, e os braços de garras afiadas na ponta apertando-lhe as espáduas. Caído no chão, com algumas costelas quebradas, sentiu de súbito duas finas estruturas cortantes penetrarem-lhe o pescoço no lado esquerdo. Em pouco mais de um minuto, já não havia gota de sangue em suas veias e artérias. Petrificados pelo terror, os olhos do infeliz permaneceram abertos mesmo após a vida abandonar seu corpo robusto. E assim ficariam, até que o cadáver fosse recolhido e levado para o necrotério. Ou melhor, esbugalhados estariam para todo o sempre, depois de serem apresentados ao máximo horror.
*
Eram quase 10h quando a inspetora Ane Lafitte abaixou-se e recolheu algumas cédulas - provavelmente obtidas em algum jogo noturno proibido - da mão esquerda de um cadáver negro, jogado junto à estação de Ville Roumaine. Havia três anos lotada no Departamento de Caça aos Vampiros da Polícia de Liberté, ela se acostumara à rotina de recolhimento de corpos pálidos pela cidade. A aparentemente frágil policial sabia que casos assim quase sempre acarretavam processos destinados a apodrecer no canto de uma gaveta empoeirada do prédio da Polícia Judiciária, na zona oeste - área onde moravam os nouveaux riches libertenses. Os assassinatos perpetrados por vampiros ficavam sem solução especialmente quando a vítima era negra - praticamente uma regra nesse tipo de crime.
Depois de ordenar aos funcionários do necrotério que retirassem dali os restos mortais do jovem, Ane olhou em volta, à procura de pistas. Mirou o muro da antiga fábrica de chapéus, vasculhou o perímetro do beco no caminho da estação, mas nada encontrou que pudesse indicar a direção do assassino. Sua tarefa era ingrata. Os vampiros não deixavam rastro.
Na verdade, ela nem precisava disso para saber onde se escondiam os meliantes. Bastava dar uma passada pelo distrito industrial. Durante o dia, entretanto, os monstros da noite não se mostravam. Travestidos de trabalhadores da indústria, coexistiam normalmente com a população. Embora todos na cidade soubessem da dupla jornada dos vampiros, aos policiais encarregados de caçá-los cumpria obedecer às leis, instituídas havia pouco mais de 100 anos, segundo as quais só seria possível executar os chupadores de sangue em legítima defesa - ou com a apresentação de provas de autoria de crimes, o que era improvável, para não dizer impossível.
E a inspetora Ane Lafitte, em especial, não podia vilipendiar as normas. Logo ela, que se formara como a primeira da turma da academia poucos anos antes, que fora condecorada pelo menos seis vezes por atos de bravura desde o início da carreira. Ela acreditava que, mesmo com as imperfeições do sistema, a observância da ordem podia conduzir a democrática Liberté a dias melhores. Ainda com a atenção voltada para a cena do crime, Ane não percebeu a aproximação de um estranho. Assustou-se quando notou uma sombra deslocando-se e crescendo no asfalto do beco, na sua direção. Virou-se e viu um homenzarrão de 1,90m, de pele alva, delgado, com cabelos espessos e escuros, os seus 30 anos, vestido com sobretudo azul marinho. Carregava nas costas um grande estojo, dentro do qual havia, provavelmente, uma espada. Na cintura, duas algibeiras, uma de cada lado. Dentro delas, duas pistolas prateadas. Seus traços rudes não causaram boa impressão na policial. Ela não o conhecia. Mas sabia o que ele era.
- Com licença. Sou Christian Van Cruncher. Muito prazer. Preciso lhe falar e vou direto ao assunto. Eu e meus companheiros monitoramos sua atuação há algum tempo e achamos ser a pessoa certa para manter contato aqui em Liberté. Descobrimos algo importante a respeito da cidade - disse o estranho, enigmático, com o pronunciar das palavras carregado de um sotaque estrangeiro.
- Eu sei bem o que você é: um caçador de vampiros. Só que não lido com free lancers. Sou uma agente da lei. Poderia detê-lo, pois sua atividade é ilegal. Mas estou tendo um dia duro e não quero mais transtornos. Recomendo que saia da cidade - retrucou Ane.
A policial estava certa. O forasteiro pertencia à Confederação Independente dos Caçadores de Vampiros. Um grupo internacional que, por conta própria, investigava, perseguia e eliminava os peçonhentos. Ane o distinguiu devido à indumentária. Para matar vampiros, seres virtualmente imortais, só havia um modo: cortar-lhes fora a cabeça. Estacas de madeira cravadas no coração e tiros com projetis de prata apenas provocavam ferimentos. O estrangeiro, portanto, estava pronto para matar vampiros, mas não para convencer a bela, porém brava inspetora.
- Você não entendeu. Há algo errado por aqui e eu vim alertá-la - ainda tentou argumentar o caçador.
- Teoria da conspiração? - a moça deu uma breve e debochada risada. - Faça um favor para nós dois. Fique longe do meu caminho. E não vou avisar de novo.
E saiu, deixando Van Cruncher sem reação. Na volta para a Chefatura de Polícia, Ane fitou as ruas, através da janela da viatura. Mesmo durante o dia, a cidade tinha um ar lúgubre, cinzento, como se padecesse das dores do Mal que a asfixiava.
Os avós dos avós de Ane conheceram outra Liberté. Que nem tinha esse nome, mas o de um santo - que, com a transformação da metrópole numa cidade-estado laica, caíra no olvido. O nome atual era uma homenagem à libertação dos escravos negros, que até 110 anos atrás eram explorados nas lavouras do subúrbio. Libertos, preferiram não trabalhar para os antigos senhores. Passaram, então, a dedicar-se a atividades informais. Concentrados em grandes favelas suburbanas, onde antes havia vastas propriedades rurais, muitos não suportaram as carências da pobreza e se tornaram criminosos. Cometiam pequenos delitos por toda a cidade.
Para não interromper o incipiente desenvolvimento industrial, a solução foi substituir os negros por trabalhadores assalariados de outras localidades. Essa decisão mudaria definitivamente o aspecto da metrópole. Houve a migração em massa de camponeses de um país distante. Eles eram brancos - ou, para ser mais preciso, pálidos. Possuidores de força física assustadoramente incomum, diziam estar fugindo de uma grande fome que assolou sua região. Pouco se sabia a seu respeito, mas logo se descobriu que trouxeram consigo hábitos alimentares nada ortodoxos.
Pouco a pouco, Liberté assistiu à disseminação da praga do vampirismo. Assim que o sol se punha, o terror espalhava-se pelas ruas próximas ao Centro. Os cidadãos de bem evitavam sair à noite. Pela manhã, não foram raros os espetáculos deprimentes de cadáveres empilhados junto às docas, à espera de remoção até a morgue. Posteriormente, constatava-se que lápides do Cemitério Municipal haviam sido violadas e os corpos ali colocados tinham desaparecido. Cumpria-se, então, a maldição dos vampiros. Por essa época, curiosamente, os negros pareciam não ser importunados pela nova peste.
Logo não tardou a adoção de leis antivampiros, que permitiam a execução dos seres da noite, sem, no entanto, prescindir da mão-de-obra dos estrangeiros. Desde então, o número de ataques diminuiu, e os negros passaram a ser as principais vítimas. Vinha sendo assim por 100 anos. Mas, naquela manhã, essa triste rotina causaria enorme desconforto à intemerata policial.
*
À medida que se espalhava a notícia da morte de mais um jovem negro atacado por vampiro, aumentava a revolta nas comunidades pobres no entorno de Liberté. Ao voltar para a Chefatura de Polícia, Ane viu o comandante do Departamento de Caça aos Vampiros altercando com um negro na escadaria de entrada do prédio. Aproximando-se, conseguiu escutar a conversa e reconheceu o oponente do chefe. Tratava-se de Papa Yaoundé, ativista pelos direitos dos negros. Vestido em trajes típicos, o ancião vociferava:
- Não aceitaremos mais sua passividade! Queremos esses malditos vampiros exterminados, para que nossos jovens vivam! É muito estranho o fato de só os negros serem mortos - esbravejou o líder comunitário, cuspindo aos microfones das dezenas de repórteres que acompanhavam a repercussão de mais um crime.
- Agora chega! Guardas, prendam esse homem - decidiu o comandante Henri Cervet, ao mesmo tempo em que explicava aos jornalistas - Ele está preso por desacato a autoridade.
Assim que entrou na Chefatura, Ane abordou o comandante, já mais calmo. Cervet era admirado por sua equipe. Era um sujeito bonachão, com 30 anos de polícia. Homem de gestos econômicos, nunca perdia o controle da situação, a menos que o desafiassem, como ocorrera com Papa Yaoundé. Ane fez um pedido ao chefe. Sabia que a insatisfação dos mais pobres poderia causar uma explosão social.
- Chefe, preciso do seu apoio para descobrir o assassino daquele garoto. Se matarmos o vampiro, a situação se acalma. Essa gente já não se atém diante de tanta impunidade. Necessito de mais peritos e alguns policiais que possam se infiltrar no distrito industrial. Com inteligência, nós...
- Esqueça - interrompeu Cervet. - O prefeito cortou mais 30% da nossa verba. Ane, os negros sempre morreram pelas mãos dos vampiros. Depois, tudo volta ao normal. O prefeito já deixou claro que a solução desses crimes não é prioridade. Lamento.
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Filho da mais tradicional família de políticos de Liberté, Paul Arnoux desde cedo tomara gosto pelo poder. Sua predestinação era se tornar prefeito da cidade em que nasceu. E assim se cumpriu o desígnio. Aos 33 anos, fora eleito com quatro quintos dos votos. Um número expressivo, que ele planejava aumentar no próximo pleito. A campanha da reeleição entrara na reta final, a menos de cinco dias do escrutínio. Nada podia dar errado.
Entretanto, havia uma pedra no caminho do demagogo e populista Arnoux.
A morte de um jovem negro que teve o sangue sorvido por um vampiro, dois dias antes, atormentava o prefeito, devido à crescente tensão social. Paradoxalmente, era daquele fato que ele tiraria o fermento de sua campanha. Para tanto, era necessária habilidade política. Coisa que o prefeito tinha de sobra - até porque, já a encontrou pronta, no berço.
Durante comício na região pobre em torno de Liberté, perto de onde morava o adolescente morto, Arnoux começou a reverter as expectativas. Em cima do palanque, voltava com força a promessa de erradicar a praga do vampirismo - que, por uma dessas coincidências do destino, fora a mesma plataforma da eleição anterior. A seu lado, o prefeito tinha agora Papa Yaoundé, recém-saído da prisão e, por isso mesmo, atrelado a compromissos de gratidão. Dos negros - que representavam 40% do eleitorado de Liberté - dizia-se terem memória curta, além de certa aversão ao claustro - mui provavelmente um trauma dos tempos em que estavam atados aos grilhões.
- Aqui, concidadãos de Liberté, tenho a meu lado Papa Yaoundé, ícone da resistência negra contra os vampiros. Prometo, e vocês podem me cobrar, porque tenho palavra: em dois anos não haverá mais vampiros sobre este solo a aterrorizar nossos filhos. É por isso que preciso do seu voto! - esbravejou Arnoux ao megafone, como num transe, acompanhado em seu delírio por milhares de moradores do bairro negro. Nos fundos do estrado, Papa Yaoundé ouvia tudo cabisbaixo, ensimesmado.
*
Acabrunhada após mais um improdutivo dia de investigações, Ane estava confusa com o que Cervet lhe dissera. As palavras de Papa Yaoundé também ressoavam em sua memória: "É muito estranho o fato de só os negros serem mortos". Agora, mais do que nunca, era corroída pela curiosidade de saber o que Van Cruncher tinha para lhe contar, embora fosse difícil admiti-lo.
Conduziu seu carro até o distrito industrial. Passava pelo lado oposto ao do local da morte do jovem negro quatro dias antes, quando avistou três casais de adolescentes - dois brancos e quatro negros, cena rara numa sociedade marcada pelo apartheid racial - saindo da última sessão de um cinema popular, próximo às docas. A policial observava de longe, de dentro do veículo. Estavam indo para um local ermo.
Sem que nem mesmo Ane pudesse perceber de onde vieram, quatro vampiros cercaram o grupo. Um dos peçonhentos afastou, a chutes, a moça e o rapaz brancos, que caíram desnorteados a cinco metros dos outros. Eram então quatro presas para quatro predadores.
Os vampiros se preparavam para atacar, quando ouviram tiros. Com rápidos disparos de projetis de prata, Ane acertara dois deles, que se ressentiam do golpe. Os outros dois assomaram em linha paralela contra a policial, mas não conseguiram concluir o ataque. Uma cimitarra rasgou a neblina noturna e, num só movimento, arrancou-lhes as cabeças. Ainda afastada, a inspetora viu a silhueta de Van Cruncher contra a meia-luz das docas. Os vampiros feridos à bala investiram contra o caçador. O primeiro teve uma estaca de madeira enfiada no coração por Van Cruncher. Agonizou um pouco mais, até que o forasteiro lhe aplicasse o derradeiro suplício cortante. Já o segundo morreu pela espada providencial de Ane, que chegara de pronto à improvisada arena.
Poucos minutos depois, os casais atacados se recompuseram e tomaram o caminho de casa. Ane interpelou o caçador:
- Impressão minha ou você estava me seguindo?
- Estava sim. Ainda preciso lhe contar um segredo.
Mais desconfiada ainda depois da nítida opção que os vampiros fizeram pelos jovens negros, descartando logo de início os adolescentes brancos, Ane aquiesceu à insistência do homem.
- Há muito tempo seus dirigentes detêm a cura para o Mal que atormenta a cidade. E sei quem pode nos revelar o antídoto.
- Como!? - desnorteada com as palavras de Van Cruncher, a policial deixou-se levar, como um nadador arrastado pela correnteza.
- Venha. Vamos encontrar o Dr. Décombres - disse o estrangeiro, carregando Ane até o carro dela.
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A Secretaria de Ciência e Tecnologia de Liberté se situava na zona norte, a região da cidade de ocupação mais recente. O prédio era de arquitetura simplória, que contrastava com os complexos experimentos conduzidos ali. Decano dos cientistas libertenses, o Dr. Décombres ocupava o cargo de secretário. Na prática, atuava como um subprefeito da área científica, com amplos poderes. Reportava-se somente ao prefeito. Tanta influência se justificava pela gravidade dos segredos que guardava.
No entanto, naquela noite, após o fim do expediente, as relações de poder sofreriam alteração nos corredores escuros da secretaria. O sexagenário doutor não era homem de levar trabalho para casa. Ficava até tarde no edifício, fazendo e refazendo cálculos, cambiando fórmulas, revendo equações.
Quase enfartou quando Van Cruncher encostou a lâmina da cimitarra na altura da testa coberta de cabelos grisalhos. Ane se quedou impassível, à espera do diálogo intimidador que logo seu parceiro começaria a travar com o secretário.
- Onde está o antídoto? - argüiu o caçador.
- Que antídoto? - o cientista se fez de desentendido.
- Não me irrite, velho. Ou você vira comida de morcego.
- Mas eu não sei... - tentou despistar Décombres, sendo interrompido por um soco no rosto que lhe custou dois dentes.
- Só vou falar uma vez! Quero que me conte tudo sobre a fórmula.
O Dr. Décombres pensou em acionar a segurança, mas não teria chance contra aquele brutamontes com uma espada e uma moça que, apesar da aparente passividade, carregava uma pistola. O velho iniciou, então, o relato. Desfiou um enredo recheado de conceitos físico-químicos incompreensíveis para um leigo. Discorreu sobre teorias biológicas, verdades universais, tudo entremeado por observações a respeito do mito dos vampiros. Tanto Van Cruncher quanto a policial não estavam interessados em pormenores. Às filigranas preferiam a quintessência. Que, enfim, foi mencionada pelo doutor.
- Antes da migração dos brancos, já se sabia que muitos deles eram vampiros. Liberté sempre dispôs do antídoto, batizado de Van Helsing, o V.H., por razões óbvias. Trata-se de um composto de alho e prata. Um gás capaz de dizimar populações inteiras de vampiros. Uma vez desenvolvida a fórmula, foi possível trazê-los para o trabalho nas fábricas. Poderíamos usá-lo a qualquer tempo. Existem mecanismos para tanto.
- E por que não o usam!? - cobrou Ane, até então inerte.
- Não sei. Posso supor alguns motivos, mas o fato é que nada decido em relação a isso. Cuido apenas dos desdobramentos científicos da descoberta e da manutenção do sigilo da fórmula. O gás nem está aqui. Ele é armazenado no subsolo da Prefeitura, de onde parte uma rede de canos que se comunicam com todas as unidades do distrito industrial. Só o prefeito pode operá-la.
Antes que Décombres se recobrasse do susto, a dupla de caçadores se embrenhou pelos corredores da secretaria e sumiu nos desvãos da noite.
*
Ane Lafitte passara a noite em claro, numa das salas da Chefatura de Polícia. Queria logo contar a descoberta a Cervet, o único membro do alto escalão do governo municipal em quem ainda confiava. "Com certeza" - pensava - "o comandante dará um jeito de erradicar o vampirismo da cidade. Se existe o antídoto, basta afastar quem o está manipulando e usá-lo". Fora do prédio, Van Cruncher aguardava novidades da nova parceira.
Envolvido com o amplo esquema de segurança para a eleição, Cervet só chegou ao Departamento no início da noite. Ane logo o pôs a par dos acontecimentos. Diferentemente do que imaginava, o chefe não demonstrou iniciativa. Na verdade, empalideceu ante a notícia.
O telefone celular de Cervet tocou. Ane não conseguiu identificar quem estava do outro lado da linha, mesmo porque o comandante se afastou da pupila. Andava de um lado ao outro da sala, num ritmo frenético. Tenso, despediu-se secamente da inspetora e se retirou, sem mais explicações. Ane foi atrás. Já na rua, fez sinal para Van Cruncher. E saíram seguindo o chefe pelas vias da zona oeste.
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No gabinete do prefeito, a festa pela garantida reeleição fora eclipsada pelos eventos na Secretaria de Ciência e Tecnologia na noite anterior. Os presentes aguardavam ansiosos Cervet, convocado minutos antes por Arnoux para uma reunião emergencial.
Não muito depois que Cervet adentrou a Prefeitura - situada no centro geográfico de Liberté - a dupla de caçadores conseguiu ludibriar a segurança do prédio e continuou a seguir o comandante. Ao chegarem ao centésimo e último andar, onde ficava o gabinete de Arnoux, lograram acesso a uma saleta vicinal, a partir da qual tinham uma visão parcial dos domínios do alcaide, sem serem percebidos.
Ane e Van Cruncher olhavam estarrecidos para a oblonga mesa de reuniões. Distinguiram o prefeito, o comandante e mais duas autoridades: o secretário de Segurança e o juiz-mor. Em volta do grupo, distribuídos pelo recinto, havia seis guardas armados até os dentes. Chamava a atenção o fato de eles, mesmo não pertencendo ao Departamento de Caça aos Vampiros, portarem sabres reluzentes.
Num canto mal iluminado, sentada a uma das pontas da mesa, havia uma figura tão sinistra quanto indecifrável. Protegida pela penumbra, não se deixava identificar. Apenas era possível perceber traços de sua vestimenta: um terno preto, de corte bem antigo; um broche dourado na lapela; um lenço vermelho no bolso do paletó. Enquanto o prefeito iniciava o colóquio, o tétrico visitante se levantou e se dirigiu ao centro da sala.
- Sim, fui reeleito. E justo agora aparece essa dor de cabeça. O pessoal da confederação arranjar problema não é novidade. Mas o néscio do Décombres entregou a história toda e, como punição, já não está mais entre nós. E você, Cervet, terá de fazer o mesmo com a sua comandada. Ninguém pode saber como a elite de Liberté manipula os habitantes desta cidade há mais de um século. Tenho o antídoto para matar os vampiros. Mas por que o faria, se posso chantageá-los? Se posso fazer com que matem negros, etnia da qual provêm, na maior parte, os criminosos que lesam cidadãos de bem? Se esses mesmos cidadãos votam em mim por causa disso? Se os negros, sempre esperançados com a vã promessa de extermínio dos vampiros, também me apóiam? E sabe por quê? Porque não minto quando digo que posso acabar com os vampiros. Posso. Mas não vou. É a força dos sobre-humanos que pavimenta o progresso de Liberté. Necessitamos dos vampiros. Que, por sua vez, precisam se alimentar. E eu preciso de votos, não é mesmo, Conde René?
Saindo das sombras, revelou-se o macabro conviva. Com um tímido movimento de cabeça, assentiu. E acrescentou, deixando à mostra os caninos pontiagudos à medida que falava:
- De fato. Como um dos últimos vampiros autóctones, pergunto: se o prefeito pode nos destruir, por que afrontá-lo?
A cínica sanguessuga interrompeu o discurso, devido a um breve pensamento que lhe ocorreu: "Por que combatê-lo, se o tempo trata de enfraquecê-lo, sem que ele se dê conta? Pobres mortais. Vou refugar agora, para depois dançar sobre seus túmulos." Em seguida, observou:
- O sangue dos negros muito nos vale. São jovens vigorosos, cheios de vida. Saciam a nossa fome de sangue. E a sua fome de votos - enfatizou sordidamente, com sádico prazer, fuzilando o prefeito com os olhos que a terra nunca haverá de comer.
*
Ferida na alma, Ane pensou em invadir a sala e obrigar o prefeito a usar o gás V. H. contra os vampiros. Queria também decapitar o conde. Van Cruncher a conteve. Não valia a pena. Os guardas a matariam facilmente. Ainda mais agora que ela era procurada e sua cabeça estava a prêmio. Ela concordou com o novo amigo. Retirou o distintivo da Polícia Judiciária do traje e atirou-o ao solo.
- O que vai fazer agora? - perguntou o caçador.
Laconicamente, a ex-inspetora respondeu:
- Não sei. Você estava certo. Agora, sigamos suas regras.