A felicidade segundo o diabo
Entrou sorrateiro o diabo. Tão repentinamente que o anfitrião se surpreendeu com sua presença, embora o aguardasse ansioso. O tinhoso sentou-se em uma cadeira num canto escuro do cômodo, repleto de pilhas de livros e papéis que evocavam sínodos sinistros de outrora, crepúsculos de deuses arcanos e maldições ancestrais.
Não era bem a imagem que ele fazia do diabo. O que tinha diante de si era um sujeito feio, baixo, barrigudo, vestido em farrapos, barba por fazer. Uma figura débil, que não impunha qualquer respeito. Nada de tridentes, olhar fumegante, músculos reluzentes ou cabelos louros. Se na rua estivesse, passaria facilmente por mendigo. O odor, no entanto, não deixava dúvidas: o cheiro de enxofre se espraiava pelo quarto.
— Me chamaste? — perguntou o príncipe das trevas eternas, ao mesmo tempo em que ensaiava um sorriso malicioso, por constatar com cínica curiosidade a variedade dos estudos profanos desenvolvidos por seu interlocutor.
O sombrio estudioso realmente o havia evocado. Depois de anos de dedicação a leituras ignominiosas; de afastamento das pessoas que o amavam; de negligência a qualquer atividade mais mentalmente sadia, agora, ao completar cinco décadas de vida, sentia um profundo arrependimento. Queria recuperar o tempo perdido, voltar a viver, encontrar alegria. Dos textos veio a solução:
— Quero ser feliz! Façamos um pacto?
— Hum... tua alma pela felicidade? Não sei, não é tão fácil assim – despistou o diabo, tão reticente quanto maquiavélico.
— Ora, mas você não é aquele que tudo pode? – provocou o homem, com fina ironia.
— A dificuldade dessa empresa é simples: um ser humano só alcança realmente a felicidade quando aproveita de si o que tem de melhor. Posso fazer-te feliz, mas não te transformar em outra pessoa.
O raciocínio demasiadamente simplório do demônio irritou aquele que o convocara. Onde estariam as charadas monumentais, os enigmas quase insolúveis que somente a verve diabólica seria capaz de formular?
— Que embuste é este? Você não pode ser o imperador dos abismos infinitos! – disse, afrontando, incisivo, seu oponente.
— Aquieta-te. Se é o que queres, vamos aos trabalhos. Mas nada de pactos. Quero propor um jogo...
“Um jogo? Disputaremos uma partida de xadrez?”, especulou para si o homem, já imaginando a vantagem que levaria, por ser um exímio estrategista de tabuleiro.
— Vamos jogar o quê? Xadrez? – antecipou-se, na tentativa de decidir qual o teatro de operações do embate.
— Não. Porrinha – surpreendeu o demo.
“Porrinha? Minha alma oferecida numa partida de porrinha?”, indignou-se o homem. Mas não havia alternativa. Eram as regras do diabo, que retirou do bolso do seu arremedo de casaco uma caixa de fósforos. Partiu em três dois palitos de madeira e entregou metade dos pedaços ao adversário.
— Creio que já saibas as condições do jogo. Tu ganhas, e terás a felicidade que tanto queres. Eu ganho, e levarei tua alma. De acordo?
— Certamente.
— Que número escolhes?
O homem pensou, e como sua mão estava vazia, imaginou que a do diabo também pudesse estar. Afinal, o vazio é um terreno por onde o mestre da mentira transita desenvolto, à vontade como uma criança no colo da mãe.
— Zero.
Com um esgar de decepção, o diabo revelou sua mão. Nada havia dentro dela. O oponente gargalhou com a alegria da vitória, reforçada pela vaidade de ter sobrepujado o lazarento. O demônio parecia não acreditar na derrota. Cabisbaixo, levantou-se da cadeira e dirigiu-se às sombras, insinuando uma saída pouco honrosa.
— Onde pensa que vai? Pare! Não vai cumprir sua parte no acordo?
Olhando para trás, o diabo desdenhou:
— Nada posso fazer. Tua felicidade só depende de ti.
As palavras da sinistra entidade encolerizaram o vencedor. O que aquela figura canhestra, inexpressiva pensava que era? O diabo? Ora, mas o demo nem sequer foi capaz de engendrar um ardil eficiente para suplantá-lo. Se “aquilo” podia ser o diabo, ter tanto poder... por que não ele próprio? Com uma ira transbordante, assomou contra o vencido, agarrando-lhe pelo pescoço.
— Não vai sair daqui sem cumprir o prometido. Senão, acabo com você.
Dominado e surpreendentemente sem forças para reagir, o diabo resignou-se:
— Eu já devia saber... – disse, encostando a mão esquerda na testa de seu agressor, que sentiu a pele queimar como se exposta a um calor de mil graus. E à medida que sua tez ia sendo lacerada, o diabo se esvanecia, como uma nuvem de enxofre. Antes de desaparecer, deixou ao vento suas últimas palavras:
— Aproveita, então, o que há de melhor em ti, tua felicidade possível. Hoje, eu não mais serei, e tu serás o que eu fui, para todo o sempre, ou até que um mal maior ascenda. Não querias a felicidade suprema? Atingiste-a. Regozije-se, frua-a. Regras são regras. O trato foi cumprido, Lúcifer!