Diversões Juvenis
Mesmo cheirando a conhaque barato, o homem grisalho ainda pode ver a diversão inconseqüente com clareza.
Uma moça bonita chamada Kristin, munida de uma navalha, abre um talho logo abaixo do mamilo do seu namorado.
O sangue escorre rubro. O corte não é tão profundo para ser fatal e faz apenas com que Hans solte um gemido. Um gemido de prazer.
Logo, uma centena de adolescentes e alguns jovens adultos estão engalfinhados sobre pufes e sofás protegidos por filme plástico.
Bocas coladas a bocas, bocas nas feridas sangrentas abertas com instrumentos cortantes de onde verte sangue aos litros ou as bocas encontram-se em partes mais excitáveis do corpo de outrem.
A tão falada “Noite de Sangue” rapidamente vai descambando para uma suruba bem mundana.
Übber revira os olhos e caminha até a varanda.
Fuma?
O homem grisalho olha com o canto dos olhos e vê um rapaz pálido de cabelos médios cor de baunilha velha.
- “Maldita noite perdida!” – pensa Jürgen.
Se ao menos tivesse a mínima suspeita do fiasco que seria aquela operação, teria ficado em seu apartamento em Berlim.
Há alguns meses, os espiões infiltrados no submundo de Munique, alertaram a organização sobre festas góticas que acontecem nos limites da cidade; ao som de bandas de rock melódico, declamações de poemas macabros e culmina com os integrantes da festa em uma orgia de sangue.
Com 90% de certeza da participação de vampiros.
Vestindo roupas góticas e com o cabelo grisalho em um corte moderno, o caçador Jürgen pouco a pouco penetrou no fechado mundo dos jovens alemães de Munique.
Como fingiu ter gosto por masoquismo e autoflagelação, foi aceito sem muita desconfiança em um grupinho de Satanistas e cultuadores de vampiros.
Em uma noite quente de julho, quando os termômetros marcam 24º convidam-no para participar de uma “Noite de Sangue”. Sendo esta a ocasião que esperava, o caçador dissimula suas armas dentro de um blusão de couro forrado e nos bolsos da calça cargo de sarja.
Em vinte minutos eles chegam a um casarão centenário, da época da primeira grande guerra. Vinte e seis automóveis já ocupam um bom espaço no amplo estacionamento.
O térreo conta com um imenso salão, conectado ao primeiro andar por uma grande escadaria. Do tipo que não se vê mais nos edifícios modernos.
O imóvel tem dois andares e é cheio de peças antigas, misturadas com outras contemporâneas.
Uma T.V de plasma de 102 polegadas da Panasonic exibe o filme, Nosferatu, uma sinfonia de horror ao luar e no som ambiente toca uma musica da banda Nightwhish.
Os freqüentadores daquele grupo parecem ter entre dezesseis e vinte e oito anos.
Eles formam rodinhas onde declamam poesias macabras, cantam ou apenas conversam, bebendo animadamente; formando uma estranha cacofonia com o som do filme e da musica que sai e alto volume pelas caixas de som Bang & Olufsen.
O álcool e as drogas correm soltos.
Derrepente as luzes se apagam, e o som para. A sala é tomada por um silêncio profundo.
Um casal encapuzado entra.
Ele carrega um livro negro, ela, uma grossa vela vermelha.
Uma mesinha no centro da sala é esvaziada de seu conteúdo e o encapuzado sobe nela. O caçador aperta sua faca de prata dentro do blusão.
Sob a luz da vela rubra, o homem começa a recitar palavras cabalísticas em latim entremeadas de outras em alemão medieval.
Os jovens quedam-se parecendo hipnotizados, não perdem uma única palavra ditada.
Fora do casarão, três carros retardatários chegam com os faróis apagados. Três moças e sete rapazes descem.
Pálidos como uma noite de inverno.
Jürgen suspira. O que vê é uma palhaçada sem tamanho.
O rapaz encapuzado pode impressionar a molecada, mas o caçador é fluente em latim e conhece bem sua língua ancestral, para saber que as frases e invocações ao demônio são cópias mal estruturadas de livros bem mais arcanos, esses sim perigosos nas mãos certas.
Os encapuzados são uma fraude! Assim como esta festa juvenil.
- “Meses de trabalho perdido...” – pensa o homem grisalho.
Tira do bolso uma garrafinha de porcelana barata e bebe um gole de forte conhaque caseiro.
Os últimos convidados entram silenciosamente e misturam-se com o restante da multidão.
Apalpando a parede, Jürgen encontra uma maçaneta e abre a porta.
Uma rajada de ar frio o convida para fora. Bebe mais um gole do forte conhaque e sai para a varanda.
Pela janela, ainda pode ver a diversão inconseqüente dos garotos com clareza.
O encapuzado, que se apresenta como Hans, declama um trecho de “Faust” de Goethe e tantoi ele como a moça tira os capuzes.
A garota, chamada Kristin, retira de uma caixa de couro, uma bela navalha de cabo de marfim, muito afiada.
O último convidado a entrar no casarão, nota um tantoi intrigado, os movimentos do caçador.
Seus olhos são de um azul glacial e cabelos quase brancos de tão louros. Seu nome é Odroaco.
Enquanto os jovens cortam-se e começam uma orgia sem limites, o recém-chegado segue os passos do homem grisalho para fora do casarão.
O rapaz magro tem uma leve suspeita e também sai do casarão.
Encontra o homem de meia idade tomando um forte conhaque, encostado no parapeito da varanda.
O frio é forte, mas suportável.
- Fuma? – oferece Odroaco.
O homem grisalho olha com o canto dos olhos e vê um rapaz pálido de cabelos médios cor de baunilha velha.
- Ja! – responde ele aceitando a cigarrilha de canela.
O caçador tateia os bolsos.
- Você não é meio velho para “freqüentar a noite de sangue”?
- É verdade... – Jürgen sorri melancolicamente.
Riscando um fósforo nos dentes, o jovem sorridente o oferece ao homem.
O caçador arregala os olhos. Os caninos do rapaz franzino são ligeiramente maiores que os de um humano comum.
- Schweinefleisch! Você é um maldito sugador! – grita àsperamente em alemão.
Saca a faca com a lâmina de prata, mas não tem tempo de usá-la.
Movendo-se como um raio, o vampiro lhe acerta um soco fraco, que faz com que o homem grisalho dobre seu corpo em dois.
O caçador vomita todo o conteúdo de seu estômago atingido.
- Logo vi que se tratava de um caçador... Encontrará a morte nas mãos de Odroaco, o Hérulo.
As mãos potentes do outrora guerreiro germânico, que testemunharam o fim do Império Romano do Ocidente em 476, apertam o pescoço do caçador como duas tenazes.
Enchendo as mãos com o vômito derramado, Jürgen atira-a contra o peito do filho da escuridão.
Surpreso, e logo irritado, o vampiro o atira contra uma coluna de pedra.
- Schweinefleisch! – ri o ser noturno, limpando a camisa.
Mal o imortal começa a gargalhar, quando sente um súbito ardor no peito.
- O que é isso? – pergunta ele aos gritos tirando a camisa empapada de vômito.
Respirando com dificuldade, Jürgen pega a garrafinha de porcelana vulgar dentro do blusão e esclarece:
- Isso? Era meu jantar... Kassler e Spätzle com muito alho!
O vampiro grunhe de raiva. Seus olhos brilham perigosamente.
A garrafinha atravessa a distância entre os dois espatifando-se contra a testa do filho da noite.
O imortal aspira o cheiro do líquido que escorre pelo seu rosto.
- Conhaque?
- Ja! Destilado com água benzida pelo papa João Paulo I em 75! – sorri o caçador.
O vampiro louro se contorce de agonia.
- Ack!
Na ânsia de se livrar do “conhaque bento”, o ser amaldiçoado se chacoalha violentamente, espalhando mais ainda o líquido.
Atraídos pela barulheira, os jovens interrompem a orgia e se apinham atrás das imensas janelas.
Jürgen tira seu isqueiro Zippo de metal escovado e acende a chama. Dirige suas palavras à jovem platéia assustada:
- Seu desejo é se tornarem vampiros? Pois olhem como eles terminam!
Joga o isqueiro contra o corpo do ser amaldiçoado que se inflama imediatamente.
Um urro de dor toma o ar e o caçador sorri triunfantemente.
Entre a multidão, uma dezena de pares de olhos, se acendem, rubros de ódio.
- Scheiße!
As vidraças explodem de dentro para fora, quando o grupo de imortais avança sobre o caçador.
Jürgen atira uma granada de luz para o alto e imediatamente sucumbe sob uma torrente de golpes vampíricos.
Dois segundos depois, o artefato explode, cegando temporariamente os adolescentes e dizimando as criaturas sinistras.
Apalpando algumas costelas quebradas o homem grisalho levanta, desfazendo os vampiros mortos em pó.
De dentro da bola de fogo que em que Odroaco se transformou, uma mão carbonizada agarra a garganta de Jürgen.
- Maldito! Você acha mesmo que uma bomba de luz acabaria com um senhor da escuridão milenar como eu?
- Ack...
Algumas das pessoas que estão nas janelas vomitam e outras caem desmaiadas ante a visão medonha.
O vampiro cuja carne enegrecida se solta dos ossos aperta ainda mais o pescoço de seu antagonista.
Com a mão direita, o caçador puxa o tecido de sarja da calça, que se abre com o barulho característico do velcro.
Armada junto a sua coxa, uma pequena besta, carregada com uma única estaca de carvalho pontiaguda.
Saca rapidamente a arma e não é detido por uma fração de segundo.
Atingido, o Hérulo voa em direção a um Olmo, onde fica cravado.
Jürgen cai de joelhos e sente sua garganta inchar, mesmo assim sabe que precisa acabar com o vampiro.
Levanta-se com dificuldade e pega a faca de prata no chão.
Paralisado pelo carvalho antigo, é com terror que Odroaco vê seu algoz se aproximar sombriamente.
Com um golpe seco, o caçador decapita o germânico ancestral, enche a boca escancarada de alho e mostra a cabeça para os jovens seminus, que parecem hipnotizados.
- Ainda querem ser sugadores?
Livres do domínio dos imortais, os adolescentes fogem gritando. Em quinze minutos só há três carros no pátio.
Jürgen entra em um deles, mal pode engolir a própria saliva e sente as costelas em fogo.
Sorri.
- Não foi uma noite perdida afinal...
Engata a primeira e dirige para o centro de Munique, implorando por um bom banho e um prato fumegante de Schnitzel.
Fim.