Asas Escuras

No chão da cela fria e áustera do convento, Lourdes se contorcia, como que transpassada por um vergalhão. Urrou e gemeu com as mãos na boca, cravando as unhas nas bochechas, ela sentia a pele de suas costas rasgando com dor indescritível e rezava para que a Madre superiora não escutasse seus lamentos.

Estava nua, mas não se importava, não poderia sujar suas roupas com o sangue que lhe brotava às costas. Sentiu algo que crescia, sugando lhe a vida e a energia como uma erva-daninha. Eram asas tão negras quanto as asas de um corvo ou seu hábito de freira.

Seus cabelos castanhos e curtos colavam-se à sua testa suada e febril. Levantou cambaleante e cobriu a nudez com um velho lençol branco, amarrado à nuca e ao quadril, de modo a cair como um vestido que deixa as costas livres para as asas.

Dedicara sua vida a Deus e no entanto não havia recebido o perdão tão desejado. Se é que havia algum a receber. Chega de culpas. Não era um anjo, tampouco demônio... Lourdes - nome humano que adotou - estava muito além desses parcialismos. Talvez estivesse apenas procurando a Deus em uma fonte tão seca e estéril quanto a Madre superiora. Não poderia acreditar sem duvidar e tampouco duvidar sem acreditar um pouco.

O convento estava silencioso e adormecido e Lourdes desceu até o jardim, que não possuia um teto, e dali, com suas enormes asas, voou até uma torre próxima.

Ali de cima, com olhos tristes ela observou que jamais poderia ser como aquele jardim repleto de cor, alheio a dor e preocupações. Talvez algum dia, mas não naquele momento.

Quando os pássaros anunciaram a aurora, pendeu o corpo como suicida e mergulhou, abrindo as asas e indo para algures, onde pudesse dormir até o manto da noite cair novamente.