Encontro com a Morte


Era escrava da dor que cultivava. Se auto-infligindo em ritos, as piores provações .

Bulímica, anoréxica e esquálida. Passava os dias, trancada no quarto; evitava a todos, inclusive os pais:- Querida, ligamos para a clínica, imploramos que a aceitassem de volta. Filha, o que vou fazer com você?
- Sair do meu quarto e me deixar em paz. Este maldito  soro engorda, eu não quero ser uma porca gorda.
- Já está tão magrinha, está usando roupas de menina de doze anos.
- Não quero ficar como você, tenho horror a gente obesa, sempre comendo, comendo...
A mãe de Clara, olhos pesados de lágrimas, não sabia o que fazer. Tinham perdido a terceira enfermeira em um mês. A filha tinha apenas dez anos, quando começou a mudar o comportamento. Um concurso de beleza bobo,  pedia  peso e altura compatível, Clara estava dois quilos acima do padrão. Foi excluída.
Acessando sites na internet, aprendeu com outras meninas os truques do emagrecimento rápido. O vício, tornou-se  mais forte com o passar dos meses. A família percebeu que Clara,  exibia a silhueta cada vez mais delgada. Tentaram conversar com a menina, ela respondia  com agressões, completamente transtornada.
 Foi ficando,  cada dia mais isolada.  Perder peso, transformou-se  em uma obsessão. Os pais fizeram tudo que estava ao alcance. Dois anos de agonia, inúmeras internações  e nenhum tratamento eficaz.  Clara,  não queria ajuda, não queria reagir, viver já não interessava.
Restos de comida e sacos de vômito escondidos no fundo das gavetas e armários. Doces, chocolates, biscoitos, potes de geléia e leite condensado. Alimentos que consumia sem controle. Ávida e compulsivamente. Momentos depois,  arrependimento e  medo de engordar...a corrida para o banheiro...

Sentia  enorme prazer em exibir as marcas de gilete que marcavam suas inúmeras internações. Eram tantas que os dois braços inteiros já não bastavam. Depois da comida, o maior desafio era a morte. Já havia tentado o suicídio, várias vezes.
Após entupir a sonda gástrica que a alimentava,  arrancou o soro e ficou bem quieta.  Clara ouviu passos suaves próximos à sua cama. Já estava preparada para gritar com a mãe, quando percebeu a estranha presença.

Um vulto diáfano envolto em véus escuros a observava. A tão ansiada visita da morte, finalmente se apresentava.

Apurou a visão, o rosto era familiar, mas tão apagado...quase não via as feições e muito menos o que o fantasma murmurava. Apesar da fraqueza, tentou enxergar alguma coisa. Mais uma vez reconheceu fragmentos de um espectro débil e quase incolor.

Sentiu o corpo tremer em espasmos. As articulações doíam , as vísceras ressecadas ardiam em pontadas, mal conseguia respirar...

Mais uma vez a figura espectral se aproximou e desta vez uma luz muito fraca iluminou a face cadavérica.
 Horrorizada a menina viu seu próprio rosto, a boca muito aberta tentando emitir algum som. Os dentes haviam caído. Ossinhos, no lugar das mãos, tentavam rasgar a própria pele .

Ela gritou, gritou de horror diante do espelho da Morte. Seu reflexo seria a única companhia,  na longa travessia desejada.

No vale da morte,  almas gemiam em desespero. Abutres aguardavam a carniça, o ar pesado, denso...
Nenhum rosto amigável nem mão estendida. Apenas dor e lamentos. O odor forte e nauseante.

Caminhando por estreitas vielas,  tropeçava em meninas e meninos jogados no chão.. Não falavam nem se moviam. Gemiam baixinho... só tinham o vazio e a desesperança.

Alguns estavam tão desfigurados que nem pareciam serem humanos, eram restos distorcidos, mutilados em fiapos de carne . Um deles, com a ponta do dedo, tocou  o pé de Clara: - Você vai com eles?
- Não sei o que está falando.
- Eles virão. Não vá com eles ou jamais sairá daqui.  Estão vindo te buscar...

Uma menina vinha caminhando apressada, com ela uma legião de crianças barulhentas.
Quando estavam próximos; ela percebeu que não eram crianças e sim adultos e adolescentes. 
Descarnados, alquebrados, numa procissão de horrores sem fim. A ruidosa turba, aproximou-se,  formando o estranho comitê de boas vindas. A mocinha que os liderava;  ao contrário da maioria, parecia saudável e muito receptiva.

Reconheceu antigas amigas de hospitais; abraçaram-se em alegria. Rindo e chorando ao mesmo tempo. Entre os seus, o lugar já não parecia tão inóspito. Clara acompanhou a estranha procissão. Finalmente, estava em casa.


Postado por Giselle Sato às 00:17 em 19/01/2008 no Valedassombrasmemorte.blogspot.com
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 27/01/2008
Reeditado em 13/02/2009
Código do texto: T835354
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