Eles Estão Lá Embaixo
Eles Estão Lá Embaixo
Por Marcelo Santoro
I
- Continuarei insistindo até que consiga falar com ele. Não admito não como resposta. Sei que ele pode me atender. Desta vez falo sério.
Um resmungo entre dentes chegou até o ouvido do Primeiro-tenente Angelo Castro vindo do outro lado da linha. Uma mensagem gravada onde a Marinha do Brasil agradecia a ligação voltou a buzinar no alto falante do telefone enquanto a secretária, cheia de contragosto, deveria estar tentando convencer o Capitão Corrêa a atender o telefonema impertinente. Durante o último ano Castro havia tentado falar com seu superior algumas vezes, contudo, nesta última semana, ligava diariamente. Teresa sentia-se como o marisco, espremida entre um e outro. O capitão jamais atendera essas ligações e tudo indicava que a coisa não se alteraria desta vez. Por outro lado o Tenente Castro parecia mais resoluto do que nunca.
A televisão faiscava imagens pálidas, que se refletiam nas paredes do apartamento do Tenente Castro, quase tão ausentes de cor quanto o rosto do militar. Não passava muito do meio dia, entretanto as cortinas obedientemente cerradas não permitiam que a luz de um dia de sol quente penetrassem ali dentro. A atmosfera decadente e doentia dava a impressão de se agravar quando o dia lá fora apresentava-se particularmente bonito.
A câmera desviou-se do rosto bonito e asséptico da repórter, procurando uma tomada do equipamento moderno que estava logo atrás dela, dentro do mar. Boiava indolente, obedecendo à maré tranqüila. Ela continuava a declamar o texto que havia decorado, elogiando o trabalho da Marinha e como, em pouco tempo, o país saltara da obscuridade e subserviência para um patamar nobre de pesquisa e desenvolvimento. Todo o trabalho de dois anos atrás não seria abandonado, as pesquisas prosseguiriam normalmente. É claro que o incentivo do Governo Federal havia sido vital e blá, blá, blá. O câmera buscava os detalhes mais curiosos do submarino, que era na realidade algo entre um submarino propriamente dito e um batiscafo, para servir de pano de fundo para o discurso da repórter. Castro perdeu completamente a calma, enquanto fitava a pequena torre do submersível na tela da televisão.
- E então, sua cadela? Não me ouviu? Ponha o Capitão na linha agora mesmo. Exijo falar com ele neste instante. Está me ouvindo? Pois bem, diga a ele que se não me atender será pior para todos, vou procurar a imprensa e eles se verão comigo.
Do outro lado da linha apenas a gravação eletrônica. Teresa não estava ali para ouvir os impropérios que o tenente Castro bradava junto com uma nuvem de perdigotos. Permaneceria assim até que a ligação caísse e o homem, por fim, desistisse até o dia seguinte.
A imagem na televisão retornou lentamente, abandonando o submarino para focar a repórter em primeiro plano.
- As pesquisas em grandes profundidades, no âmbito das águas territoriais do Brasil estão...
- Cadela! – Castro urrou e desta vez em direção à tela. Bateu o telefone com tanta força que conseguiu mais algumas rachaduras em sua estrutura plástica. Elas acumulavam aos poucos, conforme as ligações frustradas para tentar falar com seu superior também aumentavam. Neste momento a campainha soou alto, sobressaltando o Tenente. Fazia tempo que ninguém a tocava. Não havia visitas. Encaminhou-se desconfiado na direção da porta, resmungando baixinho uma vez mais:
- Cadelas!
II
O espectro que abriu a porta era o de alguém muito doente, na visão de Reinaldo Lima. De aparência gasta, pele amarelada como a página de um jornal antigo, Castro mostrou dentes mal cuidados quando abriu a boca de surpresa ao encarar o antigo amigo. Não era um sorriso, nem satisfação. Imitava o gesto de um velho que deseja falar, mas simplesmente não é mais capaz. O ambiente dentro do apartamento não convidava ninguém a entrar e havia algo além da obscuridade ali. Alguma coisa que Reinaldo Lima captava, entretanto não era capaz de decodificar. Encaram-se durante algum tempo de forma desconcertada antes de Reinaldo falar:
- Sei que visitas inesperadas não são a coisa mais agradável do mundo, mas espero que me convide para entrar.
Tenente Castro não pareceu comovido. Não esperava aquilo e tinha os nervos em frangalhos. Não podia receber ninguém, tinha certeza absoluta disso, porém na porção mais profunda de seu cérebro sofrido, algo lhe dizia que aquele era um bom sinal. Um velho amigo que aparece do nada. Coisas assim podem ser a diferença entre passar o resto da vida num sanatório ou conseguir uma recuperação inesperada. Na realidade não sabia se ainda eram amigos e também não conseguia raciocinar adequadamente. O pensamento voava confuso.
- Por que quer entrar? Por que diabos eu deveria recebê-lo, afinal? – Castro indagou por fim.
- Somos amigos. Este é o motivo.
A resposta foi rápida e firme. Deixou a cabeça do Tenente ainda mais baralhada.
- Não posso. Simplesmente não posso. – Num gesto, Castro ameaçou fechar a porta, deixando o amigo do lado de fora. Reinaldo Lima precipitou-se, lançando a ponta do sapato de encontro a porta.
- Eles me ligaram. Telefonaram-me hoje cedo pela manhã. Pediram que viesse até aqui.
- Não falam comigo, no entanto pedem que amigos venham até aqui. – Castro mostrava-se confuso e irritado. - O que te contaram?
Reinaldo Lima forçou com suavidade o corpo de encontro à porta e o tenente não impôs resistência desta vez. No segundo posterior estava no meio da sala lúgubre. Sentiu-se na ante-sala de um cinema velho, bolorento e decadente. A sensação estranha cresceu e cutucou-lhe o peito, uma impressão indistinta e pavorosa.
- Acho que agora podemos conversar – disse Reinaldo.
III
- E então, por que veio até aqui? – Castro era lacônico e desajeitado. Não combinava com um militar. As mãos perdidas, quase frenéticas. O desconforto por ter o amigo no apartamento era visível.
- Apenas por que me ligaram. Pediram que viesse.
- O que te contaram?
- Não me contaram coisa alguma. Existe algo que eu deva saber? Na verdade me disseram que precisava de ajuda, que este não é seu melhor momento. Passa por uma crise de depressão, tem os nervos abalados. É tudo o que sei. Já procurou algum tipo de ajuda? – Impossível saber se Reinaldo mentira. O tenente tentou perscrutá-lo sem sucesso. Impassível, o rosto não mostrava nenhum tipo de emoção. Por dentro estava aflito e já questionava o que fazia ali. O aspecto geral da coisa era angustiante.
- Não há nada que você deva saber, bem como não procurei nenhum tipo de ajuda. Não preciso disso. – Castro percebeu, pelo olhar de Reinaldo, o que ele pensava e era algo mais ou menos como: “rapaz, é claro que você precisa de ajuda. E urgente”.
- Por que não procura um médico?
- Não...
Estavam ambos de pé no meio da sala escura. O televisor continuava a faiscar, lançando borrões nas paredes pálidas e a reportagem com a Marinha e suas pesquisas submarinas havia dado lugar a um programa de variedades tolo. Castro finalmente sentou-se e, num gesto da cabeça, convidou o amigo inesperado a fazer o mesmo.
- Não preciso de médico. – Castro terminou finalmente a frase.
- Seu chefe disse que está afastado há um ano por problemas psicológicos ou coisa que o valha. Deveria levar isto a sério. Cuidar-se mais dignamente. – Reinaldo falou isso fitando o apartamento desgrenhado.
- Sou um militar, não posso me dar ao luxo de conviver com problemas psicológicos. Meu caro Reinaldo, a Marinha mente. Não passo por nenhum tipo de problema psicológico. Me conhece suficientemente bem. Querem me tirar do caminho, te acharam em algum canto e agora está aqui, querendo que eu vá conversar com um médico, que tome calmantes nos horários corretos e tire férias em alguma praia deserta. Não é a questão. Creia.
- O que há, Castro? O que há, afinal?
O tenente avaliou se a pergunta merecia realmente uma resposta. Se ele estava naquela situação e a Marinha, ainda assim, decidira ignorá-lo, fingindo que evaporara do mundo dos vivos ou jamais havia existido, não era problema nenhum dar com a língua nos dentes. Ademais, conviver solitariamente com um segredo mortal é muito mais difícil do que compartilhá-lo com alguém em quem se possa confiar. Simplesmente não suportava mais aquilo. Todavia, acreditava piamente que sua vida corria perigo. Talvez a de Reinaldo Lima também passasse a ser ameaçada, se castro falasse algo para ele. Estava no meio desta reflexão, quando o amigo insistiu:
- Sabe que pode confiar em mim e sabe que precisa de alguém que o ajude. O que há Castro?
- Pois bem, talvez esteja certo. – Castro concordou enquanto acendia um Marlboro.
IV
Uma nuvem de fumaça branco-azulada foi expulsa para o ar, na direção do televisor e ficou por ali, dançando lentamente, poluindo ainda mais o ambiente pouco saudável. Reinaldo Lima agora estava convicto de que algo, além da fumaça de um Marlboro, flutuava ao redor deles. Era um pensamento desvairado, contudo tão real que não deixava dúvidas.
- Tem acompanhado o noticiário na TV? Principalmente o que diz respeito ao trabalho da Marinha? – Indagou finalmente o Tenente Castro.
- Tanto quanto ao resto das baboseiras diárias. É algo sobre aquele submarino, não é?
- Vão retomar as pesquisas em grandes profundidades em nosso litoral. Colocaram o equipamento funcional novamente. Semana que vem deverão fazer a próxima incursão. – As mãos do Tenente estavam menos frenéticas, no entanto, o rosto mais pálido. O cigarro o acalmava. – Uma completa irresponsabilidade. – Fez uma pausa longa, fitou a ponta do cigarro, onde a brasa brilhava um vermelho-alaranjado quase hipnótico. Repetiu: - Uma grande irresponsabilidade.
- É por isso que você está deste jeito? O equipamento não é confiável, acha que alguém corre perigo ou a coisa está sendo feita de qualquer maneira?
- Fui o primeiro a fazer uma incursão em grande profundidade no Brasil e o primeiro em todo o mundo a ir além dos 4 mil metros. – Castro não deu atenção à pergunta de Reinaldo Lima, estava imerso numa reflexão e procurava palavras para expressar suas idéias. Um modo de falar ao amigo o que desejava falar. – Isso aconteceu há dois anos atrás. Permaneci ainda um ano na Marinha depois disso, tentava sabotar qualquer outra tentativa de colocarem aquela coisa para o fundo do mar novamente. Então me licenciaram. A despeito de tudo, querem prosseguir com o trabalho, não fazem idéia do que poderá acontecer. Colocam todos em perigo de uma forma vil e irresponsável. Mesmo a ciência não pode pagar qualquer preço, para tudo há limites. A única pessoa que poderia atrapalhar foi colocada de fora do caminho e nem mesmo atendem seus telefonemas. Este sou eu.
- Hummm... Não fazia idéia de que estava envolvido com este trabalho. Nenhuma idéia. O que aconteceu para que desistisse de participar do projeto, algum acidente? Houve alguma pane séria no equipamento? De qualquer forma, algo assim ocorreu há dois anos atrás, o submarino deve ter sido remodelado, o projeto repensado. Não é hora de baixar a guarda e procurar ajuda?
- Eles só contariam com uma escolha: abandonar a coisa toda. – Tenente Castro não deu ouvidos ao questionamento do amigo. Era como se estivesse sozinho na sala do apartamento, agora. – É de uma grande irresponsabilidade o que estão fazendo e isso trará conseqüências verdadeiramente malignas a todos. Desafiam algo que está além do nosso conhecimento, arriscam romper com a tênue barreira da sanidade dos homens. Todos nós, meu caro Reinaldo Lima, e isso inclui a sua querida família e todos os que você conheceu até hoje, correm perigo. Um grande e terrível perigo.
Reinaldo Lima avaliou o que acabara de ouvir. A conclusão de que o Tenente Castro falara seriamente foi óbvia, ele não estava brincando. Era eloqüente e profundamente preocupado. Acontece que os loucos acreditam plenamente nas próprias estórias e levam sua imaginação desajuizada completamente a sério. De que caso se tratava aqui, Reinaldo ainda não saberia dizer. Tentou não se mostrar desconcertado com o que ouvira e isso não era tarefa exatamente fácil. Disse por fim:
- Prefiro aguardar o desfecho, acho que ainda não terminou. Não há nada que eu possa dizer, por enquanto.
- Não me importa o que as pessoas pensarão de mim, nem mesmo dou a mínima para o que você pode estar achando, a despeito de prezá-lo como amigo. Não vou fingir que não sei de coisa alguma apenas para que evitar que as pessoas pensem que enlouqueci. Apesar de tudo, prossigo são. – Tenente Castro falou isso fitando a fumaça que bailava diante da TV. Inclinou o corpo em direção à Reinaldo Lima, que sentava na poltrona a sua frente e tocou pela primeira vez o corpo do amigo. Apertou-lhe o antebraço entre os dedos e os olhos ganharam um brilho intenso e decidido. Falou enquanto parecia querer hipnotizar Reinaldo, olhando dentro dos olhos do outro, agora:
- Eu estive lá. Retornei, talvez por obra de algum tipo de milagre, mas fui o primeiro e, por enquanto, o único a ultrapassar limites que deveriam ser respeitados. É claro que me arrependo e será assim até o fim da minha vida, acho que nada se pode fazer quanto a isso, mas é meu dever evitar o pior. Tenho a obrigação de tentar impedir que isso se repita e que paguemos um preço alto demais. O equipamento sempre esteve em ótimas condições, comportou-se bem, talvez bem demais. Entretanto, não deve ser usado nunca mais.
Reinaldo Lima encarou a mão de Castro que ainda apertava seu braço. A pressão foi aliviando até que o Tenente o largasse.
- Meus Deus, do que é que está falando? Meu Santo Deus, Castro, quase não te reconheço. Do que se trata tudo isso, afinal? – Instou Reinaldo.
- Eles estão lá embaixo.
Reinaldo prosseguiu fitando o amigo e o modo como Castro falara aquilo fez com que um calafrio desconhecido tomasse conta de seu plexo solar. A sensação ruim que jamais o abandonara, desde que colocara os pés dentro do apartamento, aumentou e, agora, quase o engolia. Era como se estivesse dentro do pesadelo de alguém. Não falou nada.
- Eles estão lá embaixo – repetiu Castro. Arrancou outro Marlboro de dentro do maço e o acendeu na ponta do que já estava acabando. Deu uma longa tragada, antes de continuar: - Esqueça tudo o quanto falam sobre céu, inferno, fantasmas no sótão, bruxas e extraterrestres. Eles não vêm do céu, não têm discos voadores. Por tudo o que sempre acreditei, por Deus. Eu estive lá, estive lá com eles. E eles não gostam de nós. Sei disso. Pisei na terra deles com meus próprios pés, sei que são tantos quanto a areia do deserto e são diferentes. São como demônios e não gostam de nós.
Reinaldo prosseguiu calado e agora a sensação ruim que lhe comprimia o peito tornou-se medo. Medo de estar diante de um amigo lunático, medo daquele diálogo absurdo. Temia por ele, pelo amigo e, bem no fundo, temia descobrir a verdade, fosse ela qual fosse. Agora estava completamente arrependido de ter ido até ali e não sabia como sair desta enrascada.
- Sabe que não enlouqueci – disse Castro – me conhece há muito tempo e tem absoluta certeza de que isso não aconteceria comigo. Fui treinado para enfrentar condições adversas de todos os tipos, entrar numa guerra e sair dela vivo. Entretanto não desejo o fim da humanidade nem de todos que amo. Pisei o solo do inferno e ele fica sob o mar, a mais de quatro mil metros de profundidade. Eles estavam lá, me aguardavam, como quem aguarda um visitante mórbido. Fizeram com que eu enxergasse como eles enxergam, com que eu pensasse como eles, meu corpo e minha mente foram tomados como um pai de santo quando recebe uma entidade. E eu vi. Senti. Nem o mais terrível dos pesadelos se aproxima do que passei enquanto estava na terra deles. Fui um deles durante o tempo que estive por lá e não há palavras que possam expressar tudo o que vi. Eles nos odeiam e corremos grande, enorme perigo.
Castro se preparava para acender o terceiro cigarro seguido e suava. Um odor ácido recendia do corpo dele, misturava temor, angústia e ausência de banho. O apartamento parecia estar ainda mais obscuro. Reinaldo Lima perdera a noção da hora e, para ele, já poderia ter anoitecido ou menos de dez minutos haviam se passado, dava tudo no mesmo. Aquilo que acabara de ouvir era algo tão improvável quanto medonho, em todo e qualquer sentido, e agora estava completamente desconcertado. A fumaça que empestava o ambiente ganhava tons e formas funestas, quase ganhava vida. Reinaldo tinha a garganta como que forrada por carpete, seca e dolorida. E tinha medo. Muito medo.
- Castro, não posso crer nisso. Acho que deveria procurar ajuda, um médico. Por que não? Faça isso por você, ainda há tempo. Olhe bem isso aqui – com gestos eloqüentes, Reinaldo Lima apontava ao redor - olhe a sua volta, nada disso está certo, por Deus!
- Eles não podem voltar lá – disse Castro, ignorando o amigo – não podem e bem o sabem. Conhecem a história e viram o que aconteceu tanto quanto eu. Não vou permitir que voltem a mergulhar aquela coisa no mar. Aqueles demônios nos odeiam, contudo não podem chegar até nós. Necessitam de algo que os traga de lá das profundezas obscuras e essa máquina é tudo o quanto precisam. A Marinha sabe disso, é o que mais me assusta.
A sensação indelével de insegurança aumentou dentro do corpo de Reinaldo junto com o odor que recendia à sua volta. Não era apenas a fumaça de vários Marlboros e o suor de um amigo desvairado. Havia algo mais. Estava lá, quase o tocava, agora. “Meu corpo e minha mente foram tomados como um pai de santo quando recebe uma entidade”. A frase ressoava dentro da cabeça, como um mantra. Uma reza maldita. Tenente Castro levantou-se da poltrona onde estava sentado e deu um passo em direção ao amigo. Reinaldo o imitou, também ficou de pé. Estavam a alguns centímetros de distância, agora, e Reinaldo pode sentir o hálito quente do amigo enquanto ele respirava alienadamente.
- Não podem, compreende o que digo, meu caro Reinaldo? Seria o fim, o apocalipse. Os cavaleiros do apocalipse galoparão a partir das profundezas, sei disso agora. – Enquanto falava, aproximava o rosto contra o de Reinaldo Lima, como um bêbado o faria. Um ruído, imitando um urro doentio, chegou aos ouvidos de Reinaldo e vinha de algum lugar dentro daquele mesmo apartamento. Castro segurou novamente o braço do amigo, mas agora tinha os dedos gelados e pegajosos, como tentáculos de um polvo-monstro. – O apocalipse pode estar muito próximo, encontraremos nossos algozes se aquela coisa voltar a mergulhar. Ouça o que digo! Ouça! – castro gritava e parecia realmente enlouquecido. Reinaldo se afastou em direção a porta e a abriu. Manteve-se sob o umbral, fitando o amigo. Pensou em correr, sair dali o mais rápido possível, entretanto não o fez. Escutou passos, vinham do quarto do tenente em direção à sala. Eram passos incertos, talvez alguém muito doente que não era capaz de andar, mas se arrastava. O odor aumentou tornando-se inteiro e real. Castro engolira o cigarro que estava pendurado na própria boca, mastigando-o. O ruído aumentou e o que quer que se arrastava pelo corredor da casa estava muito próximo da sala agora. Reinaldo deu dois passos para fora do apartamento, postando-se no corredor do prédio. Tremia. Perdera totalmente o senso. Os gestos eram mecânicos.
- E tem mais uma coisa – Reinaldo escutou Castro falar do centro de sua sala maldita e a voz chegava ao corredor como um grito hediondo e desconhecido – alguns vieram comigo. Sim, estão aqui. Esperam pelos próximos, mas já estão aqui. São horríveis e nos odeiam, não posso mais conviver com isso, é impossível sentir e ver como eles. Ninguém é capaz de suportar.
Castro continuava a urrar loucamente e aquilo que se arrastava deveria estar ao lado dele na sala, agora.
Ainda que mecanicamente, Reinaldo correu. Como nunca antes. Desceu as escadas e deixou a portaria para trás como um atleta o faria, mais rápido que seu pensamento podia funcionar naquele instante. E percebeu, ainda durante a corrida, que o odor que tomava o apartamento do tenente Castro e depois todo o terceiro andar do prédio era de água. Água do mar.