Eliminados
Ninguém falava muito no início. Era como se o silêncio fosse o único contrato assinado entre nós, naquele lugar que imitava o mundo, mas tinha cheiro de ferro e eco de jaula. Disseram que era um “experimento”. Que teríamos quartos, comida, liberdade de circular. Mas também disseram, com um sorriso vazio, que a única regra era sobreviver.
Cada um recebeu uma faca de pão. “Para segurança”, diziam. Eu, tolo, acreditei que precisávamos nos defender de algo. Imaginei feras. Algo vindo de fora. Nunca passou pela minha cabeça que o inimigo seria o riso tímido do colega ao lado, a mão suada que apertava a minha no primeiro dia.
Dividimos os mantimentos como deu. Criei laços. Amigos, talvez. Pessoas que ainda acreditavam que dava pra passar por aquilo sem virar bicho. Mas uma a uma, elas começaram a desaparecer. E os corpos — quando apareciam — estavam frios, virados de costas, com olhos arregalados de quem viu a própria humanidade escorrendo pela lâmina.
Foi aí que entendemos. Não era um jogo de resistência. Era de eliminação.
Os que queriam sobreviver sem matar formaram um grupo. Organizamos turnos, criamos regras. Tentamos manter alguma ordem. Mas os outros... os outros se infiltraram. Sorriam com a gente, comiam com a gente, e à noite, enfiavam facas nos pescoços dos sonhadores.
Eu fui atacado no meu terceiro turno de vigília. A lâmina passou rente à minha orelha. O sangue quente do outro sujou minha camiseta quando reagi. Ele tentou gritar, mas fui mais rápido. Depois disso, não hesitei mais.
Na noite da revolta, eu perdi a conta. Lembro dos olhos. De como olhavam antes de morrer. Lembro do barulho da respiração — pesada, molhada, apavorada. E do silêncio depois.
Na manhã seguinte, o sol brilhava forte. Ou o que parecia ser o sol. Um céu limpo, programado. A grama era fofa demais. Artificial. Mas o calor no meu rosto parecia real. Caminhei, trêmulo, até a mesa onde os que sobraram estavam sentados. Me olharam, todos sujos como eu. Um deles estendeu a mão e disse:
— Venha. Estamos te esperando. Separamos um pouco pra você.
Sentei, o sangue ainda fresco no pescoço, e comi. Comi como se aquilo fosse redenção. Ou punição. Ou as duas coisas ao mesmo tempo.
E, por um segundo, esqueci que havia sido um homem um dia.