O Nascido
--- Tobias ---
O chão da taberna estava coberto de migalhas de pão. Manchas de cerveja secavam entre pegadas lamacentas. O cheiro de fumaça de velas e carne assada ainda pairava no ar, misturado ao aroma acre de suor e bebida barata. Tobias, o dono do lugar — um homem de barriga proeminente, braços grossos e um rosto sempre corado — suspirou enquanto empurrava a vassoura entre as mesas de madeira rachada.
— Maldita resistência — pensou, cuspindo no canto. Eles pagavam bem, é verdade, mas deixavam o local feito um estábulo. Tobias não se importava com as causas deles — liberdade, justiça, blá-blá-blá —, só queria o dinheiro para manter o telhado furado sobre sua cabeça.
A noite estava quieta demais. A lua cheia pendia como um olho pálido no céu, iluminando fracamente os campos além da estrada. Tobias olhou pela janela embaçada e viu apenas sombras esguias das árvores balançando ao vento. Algumas pareciam se torcer em formas humanoides, braços esticados como se quisessem agarrar algo. Ele sentiu um calafrio.
— É só o vento — murmurou, limpando a testa suada.
Mas então, entre os vultos, algo se destacou. Uma sombra parada. Erguida como um poste, imóvel. Tobias apertou os olhos. Era um homem? Não se mexia, não se escondia — apenas observava. A respiração de Tobias ficou presa. Ele virou as costas, fingindo não ver, e concentrou-se em recolher um caco de vidro quebrado. Seguiu varrendo, atento aos sons da noite. Só havia o silêncio. Um galho se partiu ao longe, como pisado por alguém.Não olharia, não olharia pela janela.
Tobias apertou os dedos no cabo da vassoura, tentando afastar o medo que lhe subia pela nuca. — Se ao menos Mordecai estivesse aqui — pensou. O líder da resistência era um brutamontes de coragem inabalável — o tipo de homem que encarava soldados armados com nada além de um machado e um sorriso de escárnio. Partira há dias, tentaria usar sua influência para libertar um prisioneiro da “República”, segundo ele alguém importante para o movimento nacional. — Ele já deveria ter voltado… Tobias não quis completar o pensamento. Se até Mordecai, com seu sangue quente e suas histórias de batalhas impossíveis, tinha caído, então o que restava para gente como ele? Um taberneiro gordo e covarde?
Foi quando ouviu o toque.
Alguém batera na vidraça com força.
Tobias ergueu o olhar e viu. Um homem esquelético, a pele coberta de lama seca, os lábios rachados de sede. Seus olhos eram dois buracos fundos, quase sem vida. A roupa — se é que podia ser chamada assim — eram trapos ensopados de algo escuro. Sangue? Terra?
— Água... — a voz do estranho foi um gemido rouco, como se saísse de um túmulo.
Tobias engoliu seco. A mão dele tremia ao segurar a vassoura. Algo estava terrivelmente errado. Aquele não era um mendigo comum. E, pior: ele não vinha da estrada.
Vinha da floresta.
Onde nada de bom vagava após o pôr do sol.
O estranho — aquele homem que não devia estar ali — pressionou a palma da mão contra o vidro, deixando uma marca enlameada. Seus dedos eram finos demais, longos demais.
— Água... — repetiu, e agora Tobias ouviu o som de dentes batendo.
E então percebeu: o que escorria do corpo do estranho não era apenas lama.
Era terra.
Terra úmida.
Terra fresca.
Como se ele tivesse cavado para sair de algum lugar.
--- A Varanda ---
Ele acordou com o cheiro de enxofre queimando suas narinas. A escuridão era espessa, grudenta, como se o ar fosse feito de fuligem. Quando tentou respirar, a fumaça cortou sua garganta, e o calor — um calor que não vinha de um fogo distante, mas da própria carne, dos ossos, da terra sob seus pés — fez seu suor evaporar antes mesmo de escorrer.
— Onde…? — Sua voz sumiu no vazio, engolida como um gemido afogado. Mas ele sabia. Não precisava de explicações. A memória da morte ainda estava fresca — os gritos, a dor, o escuro — e agora isso aqui. O lugar.
O chão era irregular, pedras negras e afiadas que cortavam suas mãos quando ele tentou se levantar. Não havia luz, mas mesmo assim ele via, como se seus olhos tivessem se adaptado à escuridão eterna. Túneis se abriam à sua frente, estreitos, sufocantes, paredes de rocha negra que pareciam respirar, contraindo-se como um intestino gigantesco.
— Isso não pode ser real — pensou, mas o cheiro de carne queimada, o gosto de metal amargoso na língua, o som distante de gritos — não de dor, mas de algo pior, de desespero, sem esperança — tudo confirmava: ele estava no Inferno. E pior, ele sabia que merecia.
Apertando os dentes, começou a rastejar por um dos túneis. O calor aumentava a cada centímetro, o ar tão denso que parecia líquido. Suas mãos escorregavam em algo úmido — suor? Sangue? — e, de repente, o túnel se abriu em um vazio mais vasto.
Lá embaixo, muito abaixo, havia um rio de fogo, torções de corpos se contorcendo nas chamas, vozes chorando em uma língua que doía nos ouvidos. E no meio do caos, uma sombra se movia — algo esguio, distorcido, parecia nadar pelas chamas em direção aos corpos, sentiu em seu coração que aquilo era pior que o fogo.
Ele engoliu. O verdadeiro horror estava mais abaixo. E ele sabia, com um frio que nem o calor do Inferno conseguia dissipar, que logo chegaria a sua vez.
Foi então que levantou os olhos.
Ao longe, além do abismo negro que o separava de tudo que um dia foi bom, estava o céu. Não um céu de fogo ou tormenta, mas de uma serenidade que cortava a alma. Pradarias verdes se estendiam até onde a vista alcançava, campos de trigo dançavam ao sabor de uma brisa que ele não podia sentir. Árvores frondosas balançavam, prometendo sombra e frescor.
Mais distante quase como uma miragem suspensa sobre a planície dourada, erguiam-se muralhas de mármore branco, altas demais para olhos humanos. As torres cintilavam sob um sol que ele não podia compreender. Mas não havia vozes. Nenhuma música. Apenas o silêncio — um silêncio absoluto, que dizia sem palavras: aqui não é para você.
Pelo portão da muralha teve um rápido vislumbre de ruas de ouro e casas majestosas. E entre as casas, ele viu. O velho portão de madeira da casa onde cresceu. A varanda onde sua mãe assava pão nas tardes de outono. Teve a impressão de ver a silhueta de um menino acenando para ele da varanda.
E então, como se Deus tivesse se compadecido por um único instante, um vento cruzou o abismo. Um sopro puro, carregado do cheiro de trigo maduro e pão quentinho saindo do forno. Ele fechou os olhos, e por um segundo, não estava mais no Inferno. Estava vivo. Havia paz. Havia esperança.
E foi então que um pensamento atravessou sua mente — se pudesse permanecer ali, naquele platô, apenas sentindo, de tempos em tempos, a visita tímida daquele ar celestial... isso já seria o suficiente. Isso já seria o próprio céu.
Mas o coração já sabia a verdade antes mesmo que a mente aceitasse. Aquilo não era misericórdia — era apenas um lembrete da condenação. Um vislumbre do que jamais seria seu. O céu não se abria para ele. O vento não voltava.
O chão tremeu. Rachaduras serpentearam sob seus pés, negras como o pecado que o trouxera até ali. Ele tentou se agarrar, mas não havia como escapar. A terra se abriu, e ele desceu. Mais fundo. Mais quente. Mais só.
O Sheol o engoliu, e o último pensamento que lhe restou foi aquele cheiro de pão — que agora só existia como uma tortura, a prova de que o Paraíso estivera ali, tão perto, e ainda assim, para sempre inalcançável
--- Demétrio ---
A taberna estava mais fria agora, como se a presença do estranho tivesse sugado o calor do ambiente. Tobias cruzou os braços sobre o avental manchado, observando o homem sentado à mesa. Ele não se mexia. Nem mesmo quando o copo de água foi colocado em suas mãos — a superfície da água permanecia imóvel, sem um único tremor para denunciar vida.
O amigo de Tobias, Demétrio, um caçador de javalis com ombros largos e uma cicatriz que lhe cortava o lábio inferior, inclinou-se sobre a mesa.
— Então... foi você que deixou ele entrar? — perguntou, baixando a voz como se temesse perturbar o silêncio pesado que pairava sobre o estranho.
Tobias assentiu, esfregando as mãos nervosamente.
— Não tive escolha. Ele estava... diferente.
Demétrio franziu a testa. Diferente nem começava a descrever. O forasteiro parecia ter sido esculpido em madeira velha — pálido, seco, os olhos fixos em algo além da parede, além do tempo. Suas mãos, estáticas, segurando o copo de água, estavam cobertas de cortes rasos, como se tivesse cavado através de pedras
— Ei, amigo. — Demétrio puxou uma cadeira e sentou-se em frente a ele. — Qual é o seu nome?
O homem levantou o olhar devagar, como se estivesse saindo de um transe.
— Não... sei.
— Não sabe?
— Eu... — Ele parou, os dedos contraindo sobre o copo como se tentasse agarrar uma memória escorregadia. — Estava na floresta. Andando. Fazia tanto tempo que eu...
A voz sumiu. Ele olhou para as próprias mãos, surpreso, como se não as reconhecesse, como se nunca tivesse visto um copo.
— Você veio de onde? Algum vilarejo próximo? — Demétrio insistiu.
O estranho abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Em vez disso, um leve tremor percorreu seu corpo.
— Sede... — ele murmurou, finalmente. — Tanta sede.
Tobias empurrou o copo novamente.
— Beba, então.
O homem olhou para a água, depois para Tobias, e então, com movimentos lentos e incertos, Levou-o aos lábios. Bebeu.
E nada mudou.
Seus olhos ainda estavam vazios. A sede ainda estava lá.
Demétrio e Tobias trocaram um olhar.
— Você não lembra de mais nada? — Demétrio perguntou, mais suave desta vez. — Nenhum nome? Nenhum rosto?
O estranho fechou os olhos, tentando se agarrar a algo na escuridão de sua própria mente.
— Havia... árvores. E escuridão. E... — Ele parou. Algo lhe atravessou o rosto, um lampejo de pânico. — Alguém estava me esperando.
— Esperando?
— Disse que demorei. — Ele apertou os olhos com força, como se tentasse bloquear uma dor. — Mas eu não devia ter ouvido.
O silêncio caiu sobre a mesa. Fora, o vento assobiava entre as árvores, carregando consigo um cheiro úmido, de terra revirada.
Demétrio hesitou antes da próxima pergunta.
— E por que você estava na floresta?
O estranho abriu os olhos.
— Eu tinha uma missão, mas ele me pegou.
— Como assim?
— Eu... — Ele olhou para as mãos novamente, para as unhas sujas de terra. — Eu não deveria estar aqui.
E então, como se a própria admissão lhe tivesse custado o último resto de força, seu corpo fraquejou. Ele cambaleou para frente, os braços tremendo, e Tobias e Demétrio se apressaram para segurá-lo antes que caísse da cadeira.
— Raca — Tobias resmungou. — Ele está gelado.
Demétrio olhou para a janela. A noite estava quieta demais. Nenhum som de insetos, nenhum farfalhar de folhas. Apenas aquele vento morno, persistente, como um suspiro vindo de um lugar que não deveria existir.
— Tobias... — Demétrio falou devagar. — Acho que ele não veio através da floresta.
— O que?
— Acho que ele veio debaixo dela.
--- O Verme ---
Ele caiu.
O túnel estreito de pedra em brasa rasgava-lhe a pele, deixando sulcos fumegantes na carne. O ar cheirava a enxofre e carne queimada, e cada batida do coração apenas acelerava a queda. Quando finalmente atingiu o fundo, o impacto não veio como um golpe, mas como um afundamento — como se o próprio Inferno o sugasse de volta para si.
Diante dele, o Rio de Fogo rugia: um mar de chamas líquidas, onde ondas se erguiam como garras e se quebravam em fúria sobre rochas pontiagudas. A água não era água — era dor em estado bruto, fogo que não consumia, apenas torturava. E no fundo, sob a superfície incandescente, algo se movia.
Uma sombra. Enorme. Serpentina.
Ele tentou recuar, mas as pernas não obedeciam. A carne das coxas estava grudada à pedra negra, fundida à rocha pelo calor. Gritou, mas o som se perdeu no rugido do rio.
Então, as águas de fogo se separaram.
O verme ergueu-se.
Não era um animal. Nem uma criatura. Era uma coisa. Escamas negras e brilhantes. Um corpo tão largo quanto uma torre. Sem olhos, sem rosto — apenas um anel de dentes afiados, girando como um moedor de carne. Sua pele pulsava com veias incandescentes, brasas vivas sob a superfície.
E pior: ela cantava.
Uma voz baixa, rouca, ecoava de dentro de sua pele, como se mil almas estivessem presas em seu ventre, gemendo em uníssono.
— Você demorou.
Ele não respondeu. Os lábios estavam colados pelo calor.
O verme deslizou para fora do rio, seu corpo escorrendo lava e fuligem. A cada movimento, o chão tremia.
— Guardo este rio há eras — disse a voz novamente, agora mais clara, como se a criatura estivesse aprendendo a falar com ele. — Nenhum dos que caem aqui escapa.
Ele tentou falar, mas só um gemido escapou.
O verme se arqueou — corpo curvado como uma serpente pronta para o bote. Os dentes giratórios cessaram. Por um instante, o silêncio.
— Abandonai toda esperança, vós que entrais aqui — sussurrou a criatura, abrindo a boca.
E então ele entendeu.
Não estava no Inferno. Ainda não.
Aquilo era apenas a recepção, uma antes sala, o inferno verdadeiro estava a sua frente
E o verme... era a porta.
--- O Sino ---
Demétrio correu até a janela.
— Socorro! Alguém, rápido! — berrou, a voz cortando o ar abafado da noite. — Tem um homem desmaiado aqui!
Do outro lado da rua, alguns lojistas ouviram o chamado e vieram correndo. Em segundos, dois deles atravessaram a soleira da porta — e, ao fazê-lo, o sino pendurado na entrada tilintou.
Tilin.
O som curto e metálico foi como um estalo no ar.
O homem abriu os olhos.
De súbito, como se a realidade voltasse em um jorro, ele ergueu o tronco e arfou. Os olhos selvagens varreram o ambiente.
— Ele acordou! — gritou um dos lojistas.
Eles avançaram, talvez com a intenção de segurá-lo. Mas o homem reagiu antes.
Em um movimento rápido, torceu o braço do primeiro e o jogou contra a parede. O segundo tentou agarrá-lo pela cintura, mas foi derrubado com um golpe limpo, direto. Um chute afastou Tobias que apenas observava. Não era força bruta — era precisão. Técnica.
Demétrio hesitou, depois sacou a faca de caça que guardava sob a roupa.
— Chega! — avançou, mirando o peito do homem.
Mas o forasteiro desviou com agilidade e, num único movimento fluido, arrancou a faca da mão de Demétrio e a pressionou contra a garganta dele — o fio gelado encostando na pele suada.
Silêncio.
Todos congelaram.
Demétrio tremia. O homem também. Seus olhos estavam arregalados — não de raiva, mas de terror.
Lentamente, ele afastou a faca. Seus dedos a soltaram como se queimassem.
— O que eu... — murmurou, recuando passo a passo.
Ele tropeçou em uma cadeira, olhou ao redor como se não reconhecesse o lugar — ou a si mesmo — e se encostou na parede. As mãos tremiam.
Ninguém ousava se mover. Até o sino da porta parecia ter medo de balançar de novo.
--- O Arauto ---
Ele sabia.
Sabia que estava perdido.
Que não havia mais escapatória.
Ali, no ventre do tormento, conheceria o verdadeiro horror.
O Verme se aproximava, ondulando no ar pútrido como uma serpente ancestral.
Sua boca era um vórtice de trevas, e sua fome — eterna.
Mas então…
Um som rompeu os gritos e lamentos do abismo.
Um sino.
Não um sino do inferno.
Mas um som puro, limpo, como se cada badalada lavasse o ar corrompido.
Era um som que fazia o espírito lembrar do que era ser livre.
O Verme hesitou.
E rugiu com ódio ao sentir a presença que se aproximava.
O chão tremeu.
As chamas se curvaram.
E do alto, atravessando os céus do inferno, desceu um ser de luz.
Ele não caminhava — voava.
Flutuava como a alvorada sobre um campo esquecido.
Seu rosto era jovem, mas sua expressão carregava séculos de sabedoria e compaixão.
Trazia a serenidade dos justos e o olhar firme dos que conhecem o Juízo.
Sua armadura era feita de ouro vivo, entrelaçado com raios de sol.
Cada peça cintilava como se o próprio dia estivesse preso ali.
E de suas costas brotavam asas imensas, brancas como neve intocada, abertas como muralhas de paz.
Quando ele tocou o solo enegrecido, o próprio inferno estremeceu.
E o ar se encheu da brisa suave do céu — algo impossível naquele lugar.
O Verme se retorceu, gritando com todas as vozes presas em seu ventre:
— Ele me pertence! Você não tem essa autoridade!
O ser de luz não respondeu.
Sacou a espada.
Não era apenas uma arma — era um símbolo.
A lâmina era feita de fogo santo, não queimava com fúria, mas consumia o pecado.
Brilhava com um calor que acolhia, como o abraço de um lar esquecido.
Era o fogo que purifica.
O fogo que cura.
Ele girou o punho com precisão, e assumiu a posição de batalha.
Pernas firmes, joelhos levemente flexionados, asas erguidas como estandartes.
Sua espada apontava na direção da besta, o braço estendido, pronto para cortar o mal.
Era a postura de quem luta pelo Céu.
De quem representa um Reino que jamais será vencido.
O Verme recuou.
Gritou.
Se ergueu em desespero, ameaçando com sua enormidade.
— Não é justo! Ao homem está ordenado morrer uma só vez — e depois disso, vem o juízo!
O guerreiro permaneceu em silêncio.
Mas a luz que o cercava respondeu por ele.
Então o Verme gritou uma última vez e se lançou de volta ao lago de fogo, como um cão expulso pelo dono.
Ele guardou a espada com reverência.
A luz ao seu redor se suavizou.
Voltou-se para o homem.
Estendeu-lhe a mão.
E o homem — tremendo, exausto, mas ainda vivo — segurou.
Ao tocar aquela pele santa, algo dentro dele se acendeu.
Ele não compreendia como ou por que — mas sabia:
Recebera uma nova chance.
O anjo o ergueu em voo.
Não para o Céu — ainda não.
Mas de volta…
à vida.
--- Reencontro ---
O silêncio reinava na taberna, como se ninguém ousasse respirar após o que havia acontecido. Os cacos de cadeiras quebradas, os copos no chão, o espanto nos olhares — tudo estava suspenso na mesma tensão.
Então, mais uma vez, o sino da porta tocou
Tilin.
Entrou um homem. Os ombros curvados pelo peso da derrota, o manto coberto pela poeira da estrada, os olhos sombreados por uma tristeza que não se media em palavras. Era o chefe da resistência.
Sua voz saiu como um sussurro ferido:
— Não consegui salvá-lo... Pilatos já o havia...
Mas a frase morreu em sua garganta.
Os olhos percorreram o salão — o caos, o medo, as mesas viradas, a iminência da violência prestes a recomeçar — e seu instinto de guerra, forjado em anos de batalha, falou mais alto. Num só movimento, sacou o gládio e se pôs em posição de combate, firme, atento.
Do outro lado da sala, sentado e perdido em sua própria tempestade de memórias, o forasteiro levantou os olhos. As imagens ainda giravam em sua mente, desalinhadas, partidas. Mas quando viu Mordecai entrar e sacar a arma, algo despertou. Num salto, ficou de pé. Não havia tempo para pensar — apenas para reagir. Rolou pelo chão apanhando a faca caída a frente e se posicionou novamente de pé: punho esquerdo à frente, braço levemente flexionado, pés bem plantados, a mão direita buscando, por reflexo, o lugar onde deveria estar seu gládio.
Mordecai congelou.
Aquele giro. Aquele gesto. A precisão da postura. A técnica.
Seus olhos se arregalaram. O tempo parou. Voltou para Trácia, quando ainda era um jovem soldado.
Era impossível, mas inquestionável. Ele estava ali, ele estava Vivo.
O gládio escapou de sua mão e caiu com um som seco no chão de madeira. Sua voz saiu baixa, embargada:
— Rufos... meu amigo...
O forasteiro também o viu. E, em seu olhar fatigado, uma faísca se acendeu. Uma lembrança antiga. Familiar. Um turbilhão de memórias o atingiu, começara a recordar.
— Rufos, eu... Eu vi você morrer.
Atrás deles, ainda confuso, Tobias quebrou o silêncio:
— Você conhece... Mordecai?
O forasteiro franziu o cenho. Mordecai? Aquilo soava estranho, como uma mentira pronunciada em meio à verdade. Mas então, o homem diante dele fez um gesto sutil. Um sinal. Pequeno, mas carregado de memória. Um código antigo, reconhecido apenas por quem esteve lado a lado no campo de batalha
Ele entendeu.
E assentiu com a cabeça.
Rufos — sim, agora ele sabia que era esse seu nome — se aproximou. Não hesitou. O abraço foi forte, quase desesperado. Como se, ao apertar o outro, pudesse segurar o tempo e desfazer o abismo de distância e ausência. Um abraço de confusão, saudade e alívio.
— Decano... Mordecai... — corrigiu-se, num sussurro. — O que… O que está acontecendo? A última coisa que lembro... é de ser mordido.
— Venha, meu amigo — disse Mordecai, com um sorriso cansado, ainda sem acreditar no que via. — Tome um banho. Coma algo. Temos muito o que conversar.
E enquanto a taberna aos poucos retomava seu ritmo, os dois homens desapareceram na noite, deixando atrás de si o caos e uma sala cheia de perguntas sem voz.
--- Epílogo ---
A mesa estava posta. Era uma refeição simples — pão, azeite, ervas, tâmaras secas — mas o ar estava carregado de algo sagrado, como se cada mordida celebrasse o milagre da permanência.
O jovem João Marcos permanecia atento, os olhos vivos, o coração acelerado. Tentava gravar cada palavra dita pelo antigo líder dos zelotes. Sua pena descansava ao lado do pergaminho, mas a alma já escrevia. Em sua curta vida, conhecera poucos prosélitos… e jamais alguém como Mordecai e Benjamin.
Lembrava-se de ouvir, diretamente de Cefas, o relato dos endemoniados libertos em Gadara. Aquilo parecia lenda. Agora, à sua frente, estava um deles — de carne, osso e repleto de histórias.
Enquanto o Decano falava, Benjamin permanecia calado, mal tocava a comida. Ouvia a história contada pela voz de seu amigo. As mãos sobre a mesa, entrelaçadas, tremiam levemente. Os olhos, embaçados, perdiam-se entre o presente e ecos do passado. Já se iam quase 15 anos desde aquela noite na Taberna, 15 anos que o Mestre fora crucificado, 15 anos que nascera de novo. Agora, os cabelos grisalhos e a expressão mais serena revelavam um homem diferente — mais sábio, moldado pelo tempo e pela fé.
Foi então que João, com os olhos acesos pela inquietação de quem ainda tem mais perguntas do que respostas, se inclinou um pouco à frente:
— Benjamim… como é? Do outro lado, quero dizer. O que viu… quando estava morto?
A pergunta cortou o ar como um sopro de vento fresco numa sala fechada.
Benjamim olhou para o rapaz por um momento, quase sorrindo. Nele, viu o que já fora um dia: impetuoso, cheio de perguntas, com sede de tudo o que ainda estava por vir — quando a vida ainda parecia prometer todas as respostas.
A voz saiu baixa, como se não tivesse certeza das palavras.
— Entre a mordida e a taberna… só tenho recortes. Um braço que me puxava. Uma luz estranha. E… — ele sorriu, confuso, quase infantil — …e o cheiro de pão quentinho.
Simão, o Cananeu, permanecia em silêncio. Seus olhos, no entanto, estavam cheios. Assentia com a cabeça, os lábios cerrados. Quando falou, sua voz era grave, como se cavada na rocha.
— Você não foi o único, Rufos. Com a morte do Mestre… muitos voltaram. Vi isso com meus próprios olhos. Mas você… — ele se inclinou levemente, com o olhar cravado no rosto do amigo — …você é o único gentio de quem ouvi falar. Isso… isso muda tudo.
Ele se recostou na cadeira, respirou fundo, e disse com pesar e propósito:
— Na próxima semana, estarei em Jerusalém. Um concílio com os outros apóstolos. Se me permitir… levarei seu relato. Eles precisam ouvir.
O silêncio caiu por alguns instantes, só interrompido pelo barulho das mãos de João Marcos ajustando o pergaminho, ansioso.
A refeição seguiu entre pequenas risadas, memórias compartilhadas e o calor de uma fraternidade que sobrevivia ao tempo. Quando os primeiros se levantaram, João se adiantou. Correu até Rufos, puxando-o gentilmente pela manga.
— Senhor Benjamin… então o senhor e Mordecai… vão com Simão?
Rufos assentiu. O rosto sério, mas terno.
— Sim. Há uma grande obra para além do mar da Cicília. Há muitas almas que nos esperam… Elas precisam ouvir sobre o Mestre.
João hesitou, mordeu o lábio inferior e falou quase num sussurro:
— Talvez… talvez eu precise falar com o senhor de novo. Sabe… sobre o que estou escrevendo; o próprio Mateus disse que quer ler meus rascunhos. — Um leve brilho de orgulho lhe subiu ao rosto, quase imperceptível, mas sincero.
Rufos se inclinou com carinho, passou a mão nos cabelos do rapaz, bagunçando-os levemente.
— E com razão. — disse com um sorriso afetuoso. — Vamos manter contato, João. Eu prometo.
Ele então se afastou da mesa, pegando o manto já gasto pelo tempo e pelas viagens. Antes de sair, olhou por sobre o ombro:
— Estou indo para Tipasa. Há… alguém que preciso encontrar.
Ficaram apenas João e Simão na sala. O velho apóstolo fechou os olhos por um instante, como quem ora em silêncio. João não ousou interromper — e o acompanhou.
✤ ✤ ✤
Havia uma lembrança que Rufos nunca dividira com ninguém — nem com os amigos da sinagoga, nem com seu velho irmão de armas.
Era um segredo guardado como uma oração não dita.
Lembrava-se de estar ali, entre o limiar da morte e da vida, e de ver uma varanda. Lembrava da silhueta de um menino acenando para ele daquele lugar. E de ouvir — não com os ouvidos, mas com o coração — a voz daquele menino, doce, alegre, inesquecível:
— Vem ver, vó… aquele é o meu pai!
Ele nunca deixou de pensar nela. Nunca soube que ela estava grávida. Nunca soube que a criança se perdera.
Mas agora… agora garantiria que ela e o filho partilhassem daquele pão.
Juntos com ele.
No Reino dos Céus.
✤ ✤ ✤
E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras; E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.
Evangelho de Mateus — Baseado nas anotações de João Marcos.
Nota do Autor: Se você chegou até aqui, talvez goste de saber que esse conto faz parte do universo de outro já escrito aqui. Tanto Rufos/Benjamin quanto o Decano/Mordecai, já possuem um passado juntos descrito nesse outro conto abaixo.
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