O templo das almas
Dedicatória
Para todas as vozes que sussurram no silêncio… E para quem as escuta, mesmo sem entendê-las!
Capítulo I – O Portão fechado
O Convento da Penitência se escondia no alto da serra como uma cicatriz antiga. Suas paredes grossas de pedra e cal resistiram a mais de duzentos e cinquenta invernos, mas era como se o tempo tivesse desistido de passar por ali.
O portão principal, de ferro forjado com símbolos cristãos, rangia com um gemido cada vez que se abria. Coisa que raramente fazia.
Naquela tarde nublada de janeiro, Helena chegou com uma mala pequena, um rosário herdado da avó e um caderno vazio. Tinha apenas dezenove anos, mas carregava no peito uma dúvida tão velha quanto o crucifixo que pendia do seu pescoço, herdado da avó materna.
Sua vocação, diziam os pais, era evidente. Sempre fora piedosa, discreta, amante do silêncio e dos livros santos. Mas dentro de si, ela sentia que procurava algo que ainda não sabia nomear — talvez um consolo, talvez um sinal.
Ao adentrar o solo sagrado foi recebida pela Irmã Abadessa com um leve aceno de cabeça e olhos cansados, como se ela não dormisse bem há muitos anos.
— Aqui, filha, há exigência de silêncio, disciplina e oração.
— É isso que busco, Madre.
— E é o que Deus exigirá de você.
Naquela noite, enquanto se acomodava na cela simples com uma cama e um crucifixo de madeira ao lado de uma pequena mesa com uma jarra d’água, Helena ouviu o sino das vinte e uma horas. Depois disso mais nenhum som, até que, por volta das três horas da madrugada, acordou sem motivo aparente.
O vento parecia parado. A noite, suspensa. E então ela ouviu passos descalços no corredor seguido de um canto baixo em Latim e o tilintar de um rosário.
Quando abriu a porta para espiar, avistou uma freira muito idosa, de hábito cinzento e véu rasgado que caminhava sem pressa, de costas para onde ela estava, em direção ao fim do corredor.
— Irmã…? Tentou chamá-la.
A figura, porém, sumiu na penumbra, sem virar o rosto para que a jovem pudesse vê-la.
Na manhã seguinte, comentou o ocorrido com a Irmã Clara, uma das mais jovens do convento.
— Hoje eu acordei às três da madrugada e acho que vi alguém andando pelo corredor.
Irmã Clara empalideceu.
— Não se anda entre as três e as quatro horas da madrugada por aqui. É proibido!
__ Por quê? Perguntou a recém-chegada.
__ É a Hora das Almas.
Capítulo II – A Hora das Almas
O convento repousava silencioso à noite há mais de dois séculos. Seus sinos badalavam pontualmente, apenas para marcar as horas canônicas — Laudes, Tércia, Sexta... Mas havia uma hora que não constava no relógio nem nos livros cuja leitura era permitida. Era a hora em que os sinos tocavam sozinhos: às três da madrugada. Chamavam-na de "Hora das Almas". E ninguém falava abertamente sobre o assunto.
A noviça Helena chegou ao Convento no dia anterior, vinda de uma pequena vila provincial. Jovem, ingênua e curiosa. E foi essa curiosidade que a fez questionar o assunto com inocência, mas as irmãs mais velhas sempre desviavam o olhar quando a jovem noviça comentava sobre a razão das três badaladas.
No dia seguinte à sua chegada, ao perguntar sobre a quietude do lugar fora informada que o silêncio sobre o assunto no convento era uma norma. Mas Helena intuiu, quando as irmãs mais velhas desviaram o olhar ao ouvi-la comentar das três badaladas do sino, que aquele silêncio sobre o que acontecia durante a madrugada era outra coisa — talvez um pacto.
Irmã Clara, uma das mais jovens do grupo, percebendo a inocência na curiosidade da jovem apenas murmurou:
— Não se preocupe com o silêncio que sucede as três badaladas, Irmã. Apenas reze.
Mas Helena não conseguia rezar quando sentia aquele peso no peito. Começou então a investigar o fato, discretamente. Em pouco tempo descobriu que a ala oeste do convento, um antigo claustro, estava trancada há décadas e que nenhuma irmã podia entrar ali.
Em uma de suas incursões investigativas conseguiu achar as chaves do portão que isolava a ala proibida das demais. Esperou que todas as irmãs se recolhessem e dirigiu-se ao local em busca de respostas.
Soubera que todos os quartos daquele corredor foram fechados após um surto de peste no Convento. Mas ao abrir algumas celas descobriu que haviam marcas de arranhões nas portas das mesmas — como se alguém que estivera dentro delas tivesse tentado sair mas fora impedido de fazê-lo.
Certa madrugada, investigando mais a fundo uma das salas de penitência que ficava no mesmo corredor do claustro, ouviu vozes sussurradas e soluços angustiados, como se alguém estivesse sofrendo ali.
Olhou todo o ambiente apesar da penumbra, mas não viu sinais de corpos, nem vestígios materiais de que alguém vivo estivesse ali — só ouviu os sons de murmúrios uníssonos que pareciam dizer:
“Domine, miserere nobis...”
E então, por um instante, Helena viu. Eram sete figuras ajoelhadas. De hábitos antigos. Todas de olhos fechados, em oração. Mas nenhuma tinha boca.
Assustada até a alma, a jovem correu para longe daquela visão tenebrosa.
Capítulo III – As Irmãs que calam
O dia seguinte amanheceu pesado, mesmo sob o céu azul. Helena sentia o corpo frio, como se tivesse caminhado pela madrugada inteira — e talvez tivesse mesmo. A frase em Latim escrita na parede, por exemplo, não fora imaginação. Ela sabia o que vira.
Tentou perguntar à Irmã Clara durante a arrumação das hóstias:
— Irmã, o que significa a expressão: “In silentio penitentia vivit”?
Mas, ao ouvir a pergunta a moça empalideceu e, sem querer, deixou cair uma tigela de vidro que se estilhaçou no chão sob o altar.
— Onde você leu isso? Perguntou aflita.
— No claustro. Apareceu na parede depois das três badaladas que lhe falei.
Irmã Clara não respondeu. Apenas fez o sinal da Cruz enquanto recolhia os cacos de vidro. Ela não sabia, mas acabara de manchar de sangue o hábito que vestia, pois, sem perceber, havia cortado a ponta do dedo médio.
Ao deixar a Sacristia Helena foi buscar refúgio na biblioteca do convento. Precisava pensar e o melhor lugar para isso era escondida nos fundos do salão onde livros velhos dormiam como relíquias.
Vasculhou as estantes por horas até encontrar um manuscrito com a história do local. Ali, entre páginas amareladas, estava o nome da fundadora: Madre Elvira de Assis
Segundo o registro, Madre Elvira fundara o convento no século XIX após abandonar sua família abastada e jurar silêncio perpétuo em penitência. Mas havia um trecho rasurado com manchas de tinta e, logo após algumas páginas arrancadas entre os anos de 1894 e 1897. A rasura era formada por uma data repetida várias vezes nas margens do livro: 23 de outubro de 1896.
Quando foi procurar a Irmã Abadessa em busca de explicações, Helena esperava encontrar compreensão. Mas o que ouviu foi apenas negações.
— Madre Superiora, há algo errado aqui. Tenho tido visões estranhas em cantos escuros e agora encontrei esse manuscrito antigo…
— Você está vendo e ouvindo coisas.
— Mas tem registros históricos, datas… Vi freiras chorando à noite!
— Isso não é da sua conta, noviça. Recomponha-se! Lembre-se que o demônio está à espreita e é no silêncio que protegemos a verdadeira fé.
— Madre! O que esse lugar esconde? A Senhora não entende, mas eu preciso saber exatamente para proteger a minha fé!
A Abadessa levantou-se lentamente. Seus olhos eram duros como pedras e sua voz soou ríspida como se falasse com uma pecadora:
— Às vezes, Helena, Deus nos cala por misericórdia. E há verdades que queimam mais que o inferno. Volte para sua cela e só saia de lá quando eu mandar chamá-la.
A conversa terminou ali e Helena não teve outro jeito senão obedecer a ordem recebida.
Mas naquela mesma noite, a vela sobre o nicho voltou a se acender sozinha. E desta vez, duas vozes sussurraram juntas no claustro trancado:
— Perdão… ou condenação.
Capítulo IV – O Claustro fechado
Na manhã seguinte, Helena fingiu uma enxaqueca para escapar das tarefas e receber atenção da Freira Clara. Precisava entender o que estava acontecendo ali. Sabia que o claustro antigo — aquele de onde vinham os sussurros — estava há décadas fechado, mas não sabia se o que vira ali dentro havia sido somente uma projeção criativa do seu medo sem tamanho. Quando a irmã Clara chegasse faria algumas perguntas que estavam martelando em sua mente. Pensou a noviça, cada vez mais ansiosa. Porém, a jovem amiga não a procurou durante toda aquele dia. Talvez estivesse ocupada.
Durante o horário da adoração silenciosa, ela conseguiu escapulir até o corredor oeste. A porta do claustro era de madeira escura, com símbolos gravados em baixo-relevo em forma de espinhos, cruzes e estrelas de oito pontas.
No chão da cela haviam manchas escuras de sangue e uma corrente enferrujada pendia da parede ao fundo. Em sua ponta havia uma espécie de argola de ferro fundido, das que eram usadas para prender escravos descontrolados ou algum tipo de fera. Ao se aproximar do fundo da sala abafada, Helena sentiu um calafrio percorrê-la da nuca aos calcanhares e uma estranha sensação de estar sendo observada, mas ali não havia ninguém.
Pensando em uma forma de iluminar o ambiente, a jovem começou a observar as paredes do cômodo e viu, do lado esquerdo, uma pesada janela, para onde se dirigiu na esperança de abri-la para que a luz da lua pudesse ajudá-la a ver melhor o lugar.
Depois de muito esforço e uma unha rachada Helena conseguiu empurrar uma das partes da estrutura de madeira maciça e, ao fazer isso, ouviu um arrastar estranho na soleira. Olhou com atenção para ver do que se tratava e encontrou um buquê de rosas secas caído do lado de fora.
No instante em que viu o buquê, um sopro de vento gelado atravessou o vão da janela semiaberta. A corrente tilintou apesar do peso dos seus elos e um cheiro de rosas impregnou o ar. Nesse instante a jovem noviça ouviu claramente:
— Volte, filha. Ainda não é a hora.
Assustada, recuou. Mas antes de fechar a janela notou algo entalhado na base da mesma, quase apagado pelo tempo:
“Aqui repousam as penitentes eternas. Que a fé as proteja.”
Helena voltou à própria cela com o coração em disparada. Não dormiu naquela noite. Nem na seguinte. E a cada madrugada, os cânticos em Latim ficavam ainda mais altos. Vozes múltiplas se juntavam a eles. Lamentações e preces femininas, confissões sobre sangue e culpa que, aparentemente, só ela ouvia.
No seu décimo quarto dia de busca por respostas sobre o mistério do Convento, Helena encontrou uma carta escondida entre as páginas da Bíblia Sagrada, como se estivesse ali para demarcar o local exato do Salmo 51.
O papel antigo e a tinta desbotada reforçavam a certeza de que aquela missiva, assinada com letras tremidas, não era recente, mas a mensagem, sem dúvida, era para ela:
“ Não tema Irmã!
Se você chegou até aqui, é porque elas a escolheram.
Só uma alma nova, sem contaminação, pode romper o ciclo do mal.
Mas tenha cuidado!
Elas buscam vingança e punição.
No entanto, a resposta é o perdão.”
— Ir. Benedita, 1922.
Helena permaneceu imóvel. A carta aberta entre os dedos trêmulos e o olhar fixo no Salmo 51. As palavras da Irmã Benedita pulsavam como um eco dentro de sua cabeça:
“só uma alma nova, sem contaminação, pode romper o ciclo do mal”.
O silêncio na biblioteca parecia mais denso do que nunca. Pela primeira vez desde que chegara ao convento, a jovem noviça teve certeza que não estava sozinha — e não se tratava apenas da presença das outras freiras ou das religiosas idosas que habitavam o claustro. Havia algo ancestral. Algo que a observava por detrás das paredes cobertas de cal e orações esquecidas.
Dobrou a carta com cuidado e a guardou no bolso do hábito. Precisava saber quem era a Irmã Benedita e o que significava exatamente a frase: “Elas a escolheram”.
Aquilo tudo parecia maior do que qualquer história que ouvira nos corredores abafados ou nos relatos vagos da Irmã Clara e da Madre superiora.
Na biblioteca silenciosa, procurou registros antigos e encontrou as informações que precisava para montar parte daquele quebra-cabeça. Madre Benedita realmente existira. Fora a única a resistir a um surto de febre que devastara a clausura em 1922 — o mesmo ano da carta. Curiosamente, nenhum documento indicava sua morte ou saída do convento. Era como se ela tivesse desaparecido sem deixar rastros.
Naquela noite, ao se dirigir à capela para rezar o terço, Helena notou que a vela acesa no altar tremeluzia como se alguém tivesse acabado de passar por ali. De repente, um perfume de alfazema, antigo e suave, encheu o ambiente e seu coração acelerou. Com muito medo, ajoelhou-se e começou a recitar baixinho as palavras do Salmo que lera sem querer ao pegar a carta.
“Lava-me completamente da minha culpa e purifica-me do meu pecado…”.
Nesse instante a jovem sentiu a presença de alguém na sala de leitura e um calafrio percorreu seu pescoço. Quando abriu os olhos para escrutinar o ambiente, viu que uma sombra alva se formava junto ao altar.
Era o início das aparições…
Capítulo V – A Madre Fundadora
Quando Helena aprumou a vista reconheceu que estava diante da entidade espiritual que guardava o Convento. Sentiu que se tratava de uma presença ambígua, que despertava nela uma mistura de temor e simpatia. Em parte pela história de penitência, caridade e devoção que seu nome carregava. E em outra, pela carga de mistério que evocava em alusão ao sobrenatural de intenções duvidosas.
Estranhamente o medo que a assolava cedeu lugar ao interesse genuíno. Uma espécie de solidariedade que a impelia a oferecer ajuda. Tentou levantar-se para se aproximar da entidade, mas ao fazer menção de erguer-se, o vulto desapareceu completamente. Era como se nunca tivesse estado ali. Helena ficou de fato aliviada, mas a sua curiosidade estava agora ainda mais desperta...
Sentindo necessidade de companhia a noviça finalmente deixou a sala de orações e se juntou às outras moradoras do convento na sala de refeições, onde permaneceu ouvindo os assuntos corriqueiros até a hora de dormir.
A madrugada do décimo quinto dia chegou sem vento. Nem mesmo o som dos grilos ousava romper aquele silêncio espesso. De olhos abertos na escuridão, Helena sentia que aquela seria uma noite diferente. Às três horas em ponto, como em um ritual, a vela no nicho do corredor central acendeu-se sozinha e, após ela, uma a uma, outras velas surgiram pelo caminho até o claustro proibido, como se a convidassem — ou desafiassem — a seguir sua investigação.
Com o Rosário na mão, a jovem obedeceu àquela estranha vontade de saber o que as paredes daquele templo religioso guardavam e seguiu andando pelo caminho que misteriosamente se iluminava para ela passar.
Ao chegar à porta selada, encontrou a fechadura rompida. Entrou e abriu a janela mais uma vez. Viu que as rosas secas haviam virado pó e que a frase entalhada na base de madeira — “Que a fé as proteja” — agora ardia em uma luz fraca, como se queimasse algum tipo de resina.
Helena empurrou a outra metade da janela devagar e um rangido forte soou no recinto como um lamento contido há séculos. A janela, totalmente aberta, deixou entrar a luz da lua que incidiu sobre um tampo de madeira no chão da cela, bem próximo de onde a corrente fixada na parede pendia.
Helena dirigiu-se ao local e, com algum esforço, conseguiu levantar o objeto que revelou-se ser uma espécie de porta para um porão ainda mais escuro.
Pegando um dos candelabros do corredor, a jovem aventurou-se a descer as escadas daquele cômodo suspeito. Ao alcançar alguns degraus abaixo a luz fraca começou a revelar o interior e a noviça deparou-se com uma pequena capela escondida.
Quando sua visão se acostumou com a pouca luminosidade viu que o lugar, apesar de coberto de poeira e teias de aranha, tinha bancos de madeira posicionados diante de um pequeno e rústico altar, sobre o qual havia uma estátua de Nossa Senhora da Penitência coberta por um véu de renda preta, como se a Santa guardasse luto fechado.
Apesar do tempo em que o claustro fora fechado, a capela ainda guardava um cheiro de cera e incenso queimados que demonstravam sua ocupação recente. Diante do altar Helena ajoelhou-se. Não por medo, mas por respeito. Ela suspeitava que alguém a estava observando, por isso esperou...
Depois de algum tempo que a jovem estava prostrada, ela apareceu.
Madre Elvira de Assis.
Vestia um hábito branco encardido e um véu rendado puído sobre a cabeça. Os olhos, vazios e profundos, não tinham foco — apenas refletiam contemplação. Seu corpo flutuava alguns centímetros do chão e seu rosto, transfigurado… não mostrava crueldade, apenas aflição.
— Finalmente você veio… — Sussurrou o espectro com a voz grave parecendo carregar as vozes de todas as freiras que ali já viveram.
— Eu? — Helena mal conseguia falar.
— A alma nova que escuta. Aquela que reza por quem ninguém mais é capaz de rezar.
A visão se aproximou e Helena sentiu um frio cortante quando as mãos da aparição tocaram seu rosto.
— Nós pecamos Irmã… Não contra Deus. Mas contra a misericórdia e o perdão.
Calamos uma irmã e a deixamos morrer sozinha no jejum eterno.
Disseram-nos que era penitência, mas era castigo.
Uma lágrima escorreu do vazio dos olhos da Madre e ela continuou:
— Desde então, as Horas das Almas não cessam. Oramos sem corpo. Pedimos sem voz.
Mas você… é a única que pode pedir por nós e ser ouvida.
Helena, agora trêmula, apertou o rosário que carregava na mão esquerda.
— E se eu não conseguir a graça que esperam? — sussurrou.
— Então você também ficará presa aqui até que outra alma, pura e piedosa, nos escute.
A vela apagou-se de repente e a visão desapareceu como se fora uma mera projeção ou ilusão de ótica.
Capítulo VI – A verdade em Latim
Helena começava a compreender o que havia acontecido ali. O mistério se revelava e ela já conseguia sentir o verdadeiro peso da penitência.
No dia seguinte o convento despertou como sempre ao soar do sino das Laudes. Mas para Helena, tudo havia mudado. Evitou o olhar das outras irmãs durante o desjejum e observou cada gesto como se procurasse sinais do passado neles. Quem ali sabia da história? Quem carregava, em silêncio, a culpa daquela maldade antiga?
Durante a tarde, voltou à biblioteca. Desta vez, procurava por escritos em Latim — especialmente sobre liturgias esquecidas, rituais de absolvição, exorcismos e bênçãos de reconciliação. Encontrou um Caderno escondido no fundo da estante. O título era formado pela expressão “Orationes pro Spiritibus” — que traduzida significa: Orações para os Espíritos.
Havia uma seção marcada com uma haste seca de trigo. Nela, estava escrita à mão uma oração diferente em Latim e, abaixo dela havia um trecho que dizia:
“Quando a penitência ultrapassa o tempo do corpo e as almas clamam por redenção,
somente uma prece feita com pleno amor poderá romper o véu da repetição.
Ela deve ser pronunciada por quem ainda carrega o dom da dúvida.”
Helena compreendeu claramente que ela era a portadora do dom da dúvida. Era sua incerteza que a tornava humana o suficiente para interceder. Sua alma não estava contaminada ainda, pois, nem estava cega pela fé, nem paralisada pelo medo.
Mas as anotações manuscritas iam mais além:
Esta oração deverá ser feita na Hora das Almas, dentro do claustro, diante da imagem velada de Nossa Senhora da Penitência, e com o coração aberto ao perdão — não apenas das freiras mortas, mas também de si mesma.
A jovem então se deu conta de que estava diante da Oração que poria fim ao que quer que existisse de macabro dentro do Convento. Guardou o Caderno no bolso do hábito e voltou aos seus afazeres de rotina.
Naquela noite, antes de sair para concluir sua missão, Helena deixou um bilhete embaixo da porta da irmã Clara. Seu conteúdo dizia:
“ Se eu não voltar, reze por mim às três da madrugada. Estarei presa no claustro.
Mas se eu conseguir, o sino tocará seis vezes ao amanhecer”.
E assim, quando o relógio bateu três vezes, Helena adentrou o claustro. Desta vez, com o caderno de orações em uma das mãos e o coração cheio de esperança.
Capítulo VII – A Hora Santa
Naquela madrugada Helena não sabia, mas enfrentaria uma verdadeira batalha espiritual.
O interior do claustro estava diferente. Menos sombras, mais presença. As velas acesas voluntariamente formavam um círculo em torno do altar, onde a estátua velada de Nossa Senhora da Penitência parecia pulsar como se respirasse. Helena levava nas mãos o rosário e o caderno de orações que pegara na biblioteca do Convento. Sentia o coração bater como o próprio sino de bronze. O ar estava denso, cheio de murmúrios, como se as paredes falassem em várias vozes:
— Ainda não é hora…
— Ou é tarde demais…
— Liberta-nos…
— Vingue-nos…
— Perdoe-nos…
Helena se ajoelhou diante da estátua. Respirou fundo e iniciou a leitura da oração indicada:
“Domine, audi vocem meam.
Ego non sum iudex nec carcer…
Sed pontem precarium inter vivos et mortuos.
Aperi portas misericordiae tuae…”
No instante em que a Noviça pronunciou as últimas palavras, um estrondo sacudiu o claustro. E a vela central apagou-se. Do altar, uma luz intensa explodiu por trás do véu preto — e a estátua começou a brilhar como ouro em chamas. Ao seu redor, as Irmãs penitentes surgiram.
Freiras espectrais, de hábitos antigos, com os rostos desfigurados pela dor — mas não pela maldade. Algumas tinham os olhos vendados, outras a boca costurada. Todas flutuavam em silêncio, até que uma delas — a mais jovem — estendeu a mão para Helena.
— Você nos viu como somos e não nos temeu. — Agora, veja como éramos.
A luz do altar oscilou. De repente, Helena viu as irmãs ainda vivas. Rindo nos corredores. Tocando harpas, escrevendo cartas… Mas também visualizou a freira castigada com o jejum perpétuo. Enfraquecida. Renegada. Esquecida. Morrendo sozinha em nome de uma penitência distorcida. Ao lado da jovem, Madre Elvira, aos prantos, ajoelhada diante do corpo inerte — reconhecendo que era tarde demais para salvá-la.
Ela não ordenara o castigo, mas consentira com ele ao permanecer em silêncio, por isso era a mais culpada de todas.
De volta ao presente, Helena chorava enquanto pronunciava palavras que não eram suas:
— Eu perdoo vocês e peço que perdoem a si mesmas.
As almas começaram a desaparecer em luzes tênues. Uma por uma. Até que restou apenas a de Madre Elvira.
Ela se ajoelhou diante de Helena, curvou-se até encostar a testa no chão da capela e disse:
— Deus a abençoe minha filha. Você rompeu o tempo e nos devolveu a Hora Santa.
Tocou o rosário de Helena e desapareceu.
Capítulo VIII – O pecado e a condenação
A madrugada caía espessa como o véu que encobria os olhos da fé e, Helena, que já pressentia os passos de alguém que não caminhava mais entre os vivos, decidiu permanecer no antigo claustro, guiada por um senso de dever que não sabia que possuía. Ali, entre as pedras cobertas de musgos e o cheiro acre de incenso queimado há décadas, ela tremia visivelmente, como se uma presença mórbida a puxasse para o outro lado do tempo e a mantivesse envolta por um círculo de silêncio e treva.
De repente viu algo brilhando no peito da Santa e, aproximando-se do altar, percebeu um objeto que parecia ser uma jóia pendurada no pescoço da estátua sob o véu escuro. Ao tocá-lo, descobriu ser um relicário em formato de coração. Dentro dele, havia uma pequena fita de tecido bordada à mão com as seguintes informações:
“Sóror Amábilis, em expiação. ”
Nas páginas ocultas do Caderno que segurava — e que até então se recusara a abrir completamente — surgiram novas anotações reveladoras. À medida que folheava-o, a tinta marchava-lhes os dedos como se as palavras estivessem recém-escrita:
“Ela ousou amar a outro. E, por isso, foi punida.
Pronunciou os votos, mas seu coração não esqueceu o jardineiro.
Quando as flores murcharam e seu ventre cresceu, só restou-me prendê-la no claustro
com a corrente e a condená-la a morrer calada e esquecida. ”
Ao terminar de ler aquelas anotações, Helena estremeceu. O chão parecia resmungar sob seus pés. Na parede à frente, a luz tênue da vela revelou o contorno de uma sombra. Era a figura de uma mulher vestida de hábito, ajoelhada, com o ventre avolumado. Seus olhos baixos pareciam rezar, não por perdão, mas justiça.
Foi então que a jovem noviça compreendeu:
Sóror Amábilis não fora uma mártir. Não defendera uma causa e morrera por ela. Fora uma vítima sentenciada à morte. E aquela corrente não prendera só um corpo. Prendera uma mãe e seu filho.
Ao constatar aquela verdade, Helena chorou. Junto com ela o claustro inteiro soluçava de dor.
De repente, a corrente esticou com violência e, como um eco metálico em movimento, uma voz murmurou:
— “Eu ainda estou aqui…”
O susto foi tão grande que Helena cambaleou. Fechou os olhos para restabelecer o equilibrio, respirou fundo tentando não perder a consciência e rezou agarrada ao terço que segurava junto ao peito assustado.
Depois de instantes que pareceram uma eternidade, o cheiro de cera derretida invadiu-lhe as narinas. E, como se mergulhasse em uma memória que não era sua, Helena caiu de joelhos. Seus olhos se fecharam novamente como se um sono profundo a dominasse, enquanto sua mente se abria para o passado que começava a se revelar...
Capítulo IX - O amor proibido e a punição
O ano era 1894. A pequena comunidade religiosa vivia sob a rígida orientação do Padre Justino de Morais, confessor das noviças e Freiras do Convento da Penitência. Homem austero e temido. Dizia-se que seus sermões eram tão afiados quanto os espinhos da coroa do Cristo que adorava.
Sóror Amábilis, jovem de rosto lívido e olhos argutos, era a mais devota entre as irmãs. Mas seu coração, como todo coração humano, não era de pedra e, por isso, foi tocado.
O jardineiro do convento, Miguel de Cérves, jovem de poucas palavras e mãos calejadas, trazia flores ao altar da Virgem da Penitência todas as manhãs. Com o tempo, passou a trazer também sorrisos. E, por fim, silêncios profundos e demorados entre os muros do jardim. E o que começou com uma troca de olhares, tornou-se conjunção carnal. Um amor genuíno e forte, porém proibido.
Ao perceber os sinais de um ventre que já não podia mais ser ocultado sob o hábito e os olhos marejados de confissões não feitas, Padre Justino convocou Sóror Amábilis à cela da penitência.
Não houve escuta nem perdão. Houve a sentença irrevogável.
— “O corpo que concebe fora da graça deve expiar no escuro.
A alma que trai os votos deve ser silenciada.
Que a pecadora morra, para que a Ordem não pereça. ”
Foi o Padre Justino quem deu a ordem para acorrentar a jovem. Também foi ele quem trancou a porta e jogou a chave no poço do pátio interno, onde dizem que até hoje se ouve um choro comovente nos dias de ventania.
Sóror Amábilis definhou lentamente, de fome, sede, angústia, solidão e saudade. A criança, que nunca chegou a nascer, fez do corpo materno seu túmulo, onde o amor e a fé na humanidade também foram sepultados sem testemunhas às três da madrugada. Desde então os sinos do convento marcavam o Tempus mortis da noviça apaixonada com três badaladas fúnebres.
Helena despertou, em prantos, do que parecia ser uma espécie de transe. Em sua mão, inexplicavelmente, o caderno de anotações estava aberto. Sem saber o que estava fazendo, leu o trecho escrito em voz alta:
“Perdoe-me, Irmã Amábilis.
Não fui a voz da justiça divina, mas da sentença do mal.
Que Deus me cale como calei sua alma.
Mas quero que todos saibam da sua história.
E que se lembrem do que eu vos fiz.
Esse será o meu catigo eterno".
Padre Justino
Nesse instante a corrente caiu no chão. O claustro, por um instante, pareceu respirar aliviado.
Capitulo X - O perdão que liberta
Helena continuou no claustro segurando o relicário de Sóror Amábilis, o caderno de confissões manchado de culpa e seu rosário abençoado. Ela sabia que ainda não estava sozinha pois as paredes pulsavam e o ar estava ainda mais denso. No fundo da capela, o altar antigo começava a emitir um brilho tênue, como se a própria fé oscilasse. Ela então entoou um trecho da oração da misericórdia — versos em Latim entrecortados de lágrimas:
“Domine, lux mea, redde pacem…
Sorori tuae, quae siluit et amavit…”
Ao se calar, as correntes do claustro estalaram. O chão tremeu. E então, uma silhueta surgiu:
Era Soror Amábilis, envolta em luz fria, quase esmaecendo. Seu semblante era de alívio e seus olhos estavam serenos. Ela não falou, mas sua presença era pura gratidão.
Helena ajoelhou-se, ergueu o relicário e murmurou:
— “Você jamais será esquecida. ”
Nesse instante as correntes se dissolveram em poeira. A parede onde seu nome fora riscado reapareceu, agora em letras douradas: Amábilis Veritas.
A alma da noviça, enfim, ascendeu, mas sua ausência, algo estranho inquietou — e não era sagrado.
A capelinha escureceu de repente quando as velas apagaram sozinhas. O vitral da Luz Divina rachou em linha reta, como uma ferida aberta. E detrás do altar, surgiu a figura sinistra de Padre Justino, envolto em sombra, os olhos vazios como as páginas rasgadas do caderno.
— “Essa casa não é sua! ” — vociferou ele, encarando Helena.
— E nem é mais a vossa, Padre. Respondeu a jovem corajosamente.
Entre as paredes ecoaram os gritos abafados das vozes outrora silenciadas. O espírito perturbado tentou se impor, mas o espaço o repelia. Passos ecoavam na nave estreita. Eram as freiras, antes invisíveis, agora almas libertas, o enfrentando.
Helena ergueu o Caderno de anotações - que agora sabia ser do padre - e leu em voz alta o trecho final da confissão.
“Fui o algoz. A mão que trancou o ventre da luz.
Que minha alma pereça sob o templo que profanei. ”
Uma ventania atravessou o cômodo. A sombra do padre foi puxada por entre a fresta do vitral partido. O templo silenciou. E pela primeira vez, em séculos, havia paz ali.
Então, o sino do convento tocou seis vezes. E o dia amanheceu.
Epílogo – O adeus à penitência
Desde aquela noite, o convento passou a respirar de outro modo. As noites são menos espessas. As madrugadas, menos silenciosas. As irmãs voltaram a cantar com leveza, e até a Abadessa sorri ao fim das orações matinais.
Ninguém mais comenta sobre o que aconteceu. Mas todas notaram que, desde que Helena entrara no Claustro, o sino nunca mais tocou às três da madrugada. Como se aquele nó maligno do tempo tivesse, enfim, sido desatado.
Helena foi vista pela última vez caminhando sozinha no jardim, perto de onde está agora a estátua de Nossa Senhora da Penitência, retirada da Capela do porão, sem véu e rodeada de flores frescas.
A Irmã Clara foi a última a vê-la no Convento. E quando perguntaram-lhe, disse ter visto a Noviça tranquila. Com o olhar distante, mas sereno. Como se olhasse para outra dimensão… Talvez, para dentro de si mesma. Mas, dias depois, quando a procuraram, a cela estava vazia. Sobre o travesseiro, repousava o rosário antigo com uma das contas de madeira rachada ao meio. E dentro de seu breviário abandonado, uma folha nova, escrita à mão com letra firme e conhecida:
“Toda alma que escuta carrega um pouco da eternidade. Mas aquelas que se entregam, talvez nunca mais voltem completamente.”
Helena nunca mais retornou ao Convento. Mas, de tempos em tempos, alguma noviça diz ter sentido sua presença durante a oração da madrugada.
Um leve toque no ombro. Um murmúrio em Latim. Uma vela que se acende sozinha… Uma luz que incide sobre a imagem de Nossa Senhora da Penitência…
E quando perguntam à Irmã Clara sobre a Hora das Almas, ela apenas sorri e, com os olhos marejados responde: — Agora, o tempo das almas é… outro.
Adriana Ribeiro