Aconteceu muito rápido: o anúncio do assalto, os gritos, a pancada forte na cabeça, e então tudo flutuou: as pessoas, seus rostos de bocas escancaradas. O mundo ficou vermelho e foi sumindo.
Queria se levantar, mas não sentia o próprio corpo, ninguém ouvia o que se esforçava para falar. Não sabia se era dia ou noite.
Quando acordou da inconsciência, o primeiro registro de seus olhos foi um jaleco bem próximo da sua mão. tentou tocar no tecido brilhoso, sentir a textura firme da gabardine branca.
Estendeu a mão, os dedos roçaram na costura. Em pouco tempo o quarto se encheu de médicos movendo-se freneticamente para desentubá-lo, fazer os exames de praxe e uma infinidade de perguntas que ele não conseguia responder.
Voltou rapidamente do torpor onde seu cérebro esteve aprisionado, mas a memória, infelizmente, havia sido comprometida.
Não conseguia lembrar nem do próprio nome, mas tinha lampejos de lembranças recortadas. Assim que conseguiu caminhar, saiu do local sem avisar a ninguém. Esperou que anoitecesse e foi se esgueirando até encontrar uma saída.
Não sabia explicar o motivo, mas se sentia desprotegido entre aquelas pessoas.
No bolso da calça jeans que vestira no dia do incidente encontrou uma carteira com dinheiro e uma chave com um símbolo gravado, o desenho em alto relevo de um ser mitológico assustador.
- Por que levaram os meus documentos e deixaram o dinheiro? Pensou, intrigado.
Depois de liberado, chamou um táxi e ficou rodando pela cidade, tentando encontrar alguma referência de seu passado recente. Sentiu-se perdido como se estivesse em terra estrangeira até que, ao dobrar em uma esquina, viu um prédio antigo que lhe chamou a atenção.
O seu hotel estava lá. Reconheceu pelas janelas vitorianas com cortinas leves azuis. O porteiro sorriu e lhe entregou um cartão magnético. Decerto ele era hóspede antigo. Dentro do quarto, olhou ao redor e passou a mão em alguns objetos tentando recordar partes da sua vida. Também não achou documentos, fotos, anotações. Nada sobre amigos, parentes, lembranças de infância. Saiu caminhando pela calçada e entrou na padaria.
A atendente lhe deu bom dia e entregou um cardápio em sua mesa.
- Como vai, senhor? Faz tempo que não vem aqui. Está tudo bem?
Levantou a cabeça para responder e não acreditou no que via. Conhecia aquela mulher, mas agora ela parecia uma outra coisa, algo menos humano que o observava com olhos escuros e redondos como os de uma coruja. Sua boca tinha uma projeção estranha para frente, assemelhando-se a um bico que tremia levemente quando ela falava:
— O de sempre, Senhor Renato?
Então era este o seu nome! Ele não respondeu de imediato. Ficou observando as outras mesas, as outras pessoas. Quando a olhou novamente, o rosto dela havia voltado ao normal.
Imaginou que, talvez, aquelas alucinações que vinham e iam embora fossem o resultado de alguma sequela da pancada na cabeça, ou algum tipo de efeito colateral dos remédios que lhe haviam ministrado por todos aqueles dias. Na rua, um homem de terno e pasta cruzou com ele. Tinha o focinho comprido de um cão, com os lábios puxados para trás, expondo dentes amarelos.
O homem virou a cabeça para ele e latiu alto. Um latido agudo e seco e depois se afastou rapidamente como se estivesse com medo.
Renato correu até chegar ao hotel, sem olhar para trás. Trancou a porta, cerrou as janelas e fechou os olhos. No espelho, às vezes, via seu próprio reflexo com olhos grandes e longos chifres que saíam lateralmente de sua cabeça. Certa noite, no banheiro, viu que seu nariz engrossava e se alongava se assemelhando a um focinho. Vomitou na pia, ofegante, mas quando ergueu a cabeça novamente era só ele ali. Pálido, assustado e ainda humano.
Mais tarde, ao sair para a rua, viu um grupo reunido do lado de fora. Uns tinham rostos de corvos, outros de morcegos. Ficavam parados, apenas observando, como se esperassem por algo. Apressou o passo, precisava resolver o mais rápido possível aquele problema, conseguir mais informações sobre sua vida, retomar a normalidade com trabalho, parentes, rotina.
A noite já ia alta e a maior parte dos estabelecimentos comerciais já havia descido a porta. Nenhum transeunte ao longo de vários quarteirões. Ainda que não visse ninguém, tinha a nítida sensação de estar sendo observado e seguido, e percebeu que mais daqueles estranhos seres vinham surgindo à medida que ele avançava pela calçada.
Uma onda de desespero o dominou, começou a correr olhando para trás de vez em quando. As criaturas não alteraram a velocidade, mas já havia uma multidão apavorante com suas cabeças animalescas olhando diretamente para ele.
Viu um táxi que passava e o pegou, deu o endereço do local onde havia sido atendido e partiram velozmente para lá. Chegaram ao local mas a clínica não estava lá. Já estava de noite e tudo o que havia ali era um terreno baldio com algumas paredes que haviam restado da antiga construção.
Desceu do táxi e saiu caminhando sem entender o que acontecia. Uns trezentos metros de onde pessoas se aproximavam olhando de maneira beligerante para ele.
Ia correr novamente quando sentiu um puxão firme em seu braço e viu que era uma mulher. Uma senhora de meia idade que o levou para dentro do mato alto no terreno. Ficaram em silêncio por um tempo. Então entraram em um carro luxuoso e ela o conduziu por outras ruas até uma casa modesta, mas limpa e confortável. Enquanto ele observava tudo ao redor, ela pegou algumas ervas e as ia colocando em uma chávena com água quente.
- Para que isso?
- Não se preocupe, logo tudo voltará ao normal. Você não está me reconhecendo mesmo, não é? Falou isso e pegou uma seringa de dentro da bolsa, então aplicou o conteúdo no braço dele.
Renato nem tentou resistir. Não se sentia ameaçado por ela, tanto que quando a mulher lhe entregou a xícara com a bebida quente e turva, ele a sorveu sem tentar recusar.
Mal teve tempo de sentir o amargo daquelas folhas maceradas, seu corpo foi ficando dormente e as pernas amoleceram.
Acordou tranquilo. Sentia-se bem, forte e revigorado. A mulher aguardava silenciosa.
- Filho! -Falou ela, beijando sua testa.
- Mãe! - Sorriu Renato, que enfim sabia exatamente quem era.
Lembrara de tudo: da própria aparência, do motivo de ter sido atacado, da clínica improvisada onde alteraram suas lembranças, e do motivo de o estarem seguindo.
Olhou-se no espelho e viu sua própria imagem ir se alterando até que se parecesse exatamente como o ser mitológico retratado em seu chaveiro: um grande predador, um líder temido e odiado.
Agora via tudo com plena lucidez e sabia exatamente o que precisava fazer. Soltou um forte urro que estremeceu o chão e então saiu para caçar.