Os Cobradores da Noite (Parte 2 de 4)
II
13 anos antes
Ouvia-se muito falar das desgraças da peste, sempre que um forasteiro chegava à vila pelas ruelas enlameadas passava novas atualizações sobre como reinos inteiros estavam ruindo de dentro para fora com essa doença. Mas na vila demorou muito tempo para que a praga chegasse, talvez por ser isolada, uma pequena região protegida pelo Barão Florêncio, um dos menores barões do reino e o primeiro morador do castelo no alto da colina.
Até que um belo dia, seu isolamento deixou de ser uma desvantagem e se tornou um trunfo do povoado. Por entre a névoa invernal, as árvores secas e as casas pobres escondiam uma riqueza invisível, mas estonteante: a saúde. O barão recebia pombos correios de diversos pontos do reino, um conde que morria, um marquês encamado, o próprio rei perdera seu segundo filho para a Peste Negra. E suas notícias sempre iguais: nossa pequena vila segue sem casos da doença.
Até que com o passar dos meses o rei enviou um mensageiro e deixou a vila ciente: preparem os aposentos, uma comitiva real passará os próximos meses na sua vila. Naturalmente foi uma grande euforia por ali, todos se encheram de orgulho e excitação, sem se atinar ao fato de que o rei só fazia aquilo para se manter saudável, estava fugindo da capital que definhava e esperaria ali até que a doença enfim partisse, levando consigo o cortejo de almas.
A principal fonte de renda da vila era o plantio de arroz, as terras alagadas, quase pantanosas da região ajudavam na qualidade dos grãos e o povo geralmente tinha bastante alimento, mas não naquela temporada. Uma grande parte das plantações ia direto ao castelo, em preparativos para a chegada do rei. E quando ele chegou, junto da sua comitiva com dezenas de charretes adornadas, houve grande festa no castelo. O povo da vila acompanhava abismado as luzes todas acesas, a música alta que às vezes desafinava quando algum clarinetista estava embriagado demais para achar a nota. Na primeira noite, a população se juntou na praça, esperando que o rei fosse discursar sobre a sua chegada, mas não houve o menor contato.
O castelo, luz. A vila, neblina.
E o padre comentou em voz baixa que aquela luxúria toda não era um bom sinal, profetizando o mau presságio que não demorou a se concretizar.
Era de se esperar que em uma comitiva tão grande alguém estava saudável apenas externamente enquanto por dentro a doença fermentava em silêncio.
O primeiro a cair de cama foi um senhor idoso, acompanhante do rei; o segundo foi um servo do castelo, nascido na vila mas que vivia desde criança entre os nobres. A terceira já foi numa das casinhas pobres da vila, provavelmente vítima do vai e vem de servos levando sacas de arroz aos nobres. Logo as camas começaram a feder a doente, depois foi a vez da terra úmida do cemitério.
Uma dupla de urubus assistia às missas fúnebres todas as manhãs, porque já não aconteciam na igreja, todos os dias a comunidade tinha alguém para sepultar e lá estava o padre com um sermão carregado de tristeza e também um pouco de raiva. Porque quando a morte se prostrou diante da vila, tão rápido quanto chegou, a comitiva real foi embora. Aquele lugar isolado já não tinha mais valor.
No começo o ódio da vila foi contra o Barão, mas depois, a medida que se adentrava o inverno, culpá-lo soaria desrespeito com os mortos. Isso mesmo, na manhã do dia 14 os servos encontraram o barão roxo em sua cama, revestido de pústulas como se ele todo fosse uma grande ferida. Sua esposa, seus filhos, a morte com todos eles brindou. E o castelo não era mais nem sombra daquelas festas ao som de músicos bêbados e orgias, agora tornara-se abandonado, lugar maldito e tocado pela peste.
Em tudo aquela vila estava igual ao resto do reino, prestes a findar por completo, porém algo de diferente aconteceu ali. Numa madrugada qualquer as luzes nas janelas do castelo se acenderam outra vez. Ninguém no povoado percebeu na primeira noite, mas na segunda, quando ao primeiro sinal do anoitecer novamente as luzes se acenderam, todos notaram.
- Quem está lá?
- Algum novo nobre?
- Algum forasteiro desavisado?
- Um fantasma?
Como poderiam imaginar que era pior que isso?
No dia seguinte, havia um bilhete preso a faca na porta da igreja: “Pedimos ao padre local que venha até o castelo nessa noite para que possamos chegar a um acordo com vocês.”
Acordo? Quem são essas pessoas? Que tipo de acordo eles querem?, se perguntavam os moradores assustados na praça. Disso Damian lembra muito bem mesmo sendo apenas um garotinho se segurando com força na saia da sua mãe.
Apesar de tudo o padre disse aos moradores que iria, nem que fosse para avisar aos estranhos que aquele lugar era perigoso, a peste se grudara aos móveis. O padre afinal não tinha muito o que temer, todos estavam morrendo, cedo ou tarde ele também cairia doente, então qualquer coisa que eles pudessem oferecer ao povo seria ao menos de algum alívio.
Sua batina gasta sumiu como silhueta na neblina enquanto o velho subia a colina, e todos esperaram com enorme apreensão até próximo da meia-noite, quando a tocha isolada apareceu entre os portões e desceu para conversar com o povo. O rosto do padre era outro, pálido, os olhos arregalados como se tivesse acabado de voltar de uma sangrenta batalha.
- E então, quem são eles? O que querem de nós?
- Amigos e amigas, peço que todos levem suas crianças para casa, as alimentem e as ponham para dormir, depois venham até a igreja para que possamos conversar - disse ele, a voz falhando entre vacilante e incrédulo, e entrou na igreja, fechando as portas rangentes.
O pequeno Damian nunca soube o que exatamente houve naquela igreja, que notícias o padre trouxera sobre a identidade dos novos moradores, mas com os anos foi entendendo a maior parte. O que ele soube naquela noite foi que o povo todo concordou com a proposta dos estranhos, Isso sua mãe lhe contou já no dia seguinte, quando a família arrancou os trincos da casa. Não havia mais espaço que pudesse ser trancado naquela vila. Muitas noites, mesmo nas noites que não era lua cheia, Damian acordava de sonos intranquilos e tinha a clara sensação de que havia alguém no quarto. Diziam que eles visitavam as casas de vez em quando, gostavam de saber como estavam os moradores. Um dia ele podia jurar que sentiu o toque de um deles no seu braço, mas teve muito medo de abrir os olhos.
A verdade é que a parte deles os estranhos cumpriram, dias depois já não havia mais mortes na vila, todos estavam fortes como touros, a peste partira tão depressa quanto tinha chegado, e a vila voltou a enriquecer nos meses seguintes com a primavera. As plantações chegaram fartas, e os homens no castelo nunca pediram sequer um grão de arroz, sequer um tostão de bronze, deixando a população ter mais condições a cada semana que passava. Damian só percebeu o clima mudar quando o inverno do ano seguinte chegou, todos murmuravam assustados, ficavam pouco tempo nas ruas, enchiam os pubs de dinheiro enquanto tentavam esquecer que a noite de lua cheia estava chegando.
E quando ela chegou eles desceram a colina, foi quando Damian se encolheu num canto da cozinha e os viu pela primeira vez. Sua mãe percebeu que ele não estava na cama e o puxou pelo braço quando o encontrou.
- O que eles querem? O que vieram fazer na vila?
- Shiuuu… Quieto. Eles vieram cobrar.
Tudo nessa vida tem seu preço, se não é pago em arroz, naquele ano foi com sangue. Levaram Emília, a filha do dono do pub, recém-casada, mas isso não os impediu. No dia seguinte todos se lamentaram na missa, mas ninguém levantou a voz em protesto, nem mesmo o próprio pai ou o marido da moça, que passaram o tempo inteiro de cabeça baixa. Aquela missa seguiu as orações de um funeral, mesmo que não houvesse caixão a ser velado.
- Mãe, ela morreu?
- Calado - a mãe o repreendeu com um beliscão -, respeite a casa de Deus.
E a casa de Deus nos anos seguintes foi o palco de vários outros funerais sem corpo presente, todos os anos eles vinham, cobravam e partiam, depois dessa noite o povo mal notava sua presença no castelo. E a saúde do povo resistia, todos cavalos galopando pelos campos, todos gordos de tanta cerveja e pão e arroz. Mas sempre com um banco vazio a mais, todo ano um ia embora. Era o preço. Era o trato.
Mesmo assim, com o passar dos anos foi se crescendo uma indignação, o tempo da fome ficou para trás, e agora que eram fortes e valentes nas missas se ouvia alguns protestos, eles levaram o meu filho, o único herdeiro do meu nome! A minha irmã, nessa noite foi minha pobre irmã, e eu nem sei se eles estão fazendo algo com ela agora, se ela está morta, se está sendo torturada…
O padre sempre os continha, os lembrava de que aquele pacto foi feito porque todos assim concordaram, o que não mudou o fato de que passados 13 anos, seis dias antes de Meredith ser levada na noite da cobrança o padre morrera. Já era velho, mas morreu gordo e de bochecha rosada. E no seu funeral não houve quem rezasse a missa, e só ali Damian descobriu que muitos culpavam o sacerdote pela sina daquela vila, por tê-los convencido a entrar naquele acordo.
O dono do pub cuspiu no caixão.
- Que o inferno te abrace como abraçará a todos nós, velho maldito!
A esposa do ferreiro fez gesto semelhante, o que assustou Meredith e a fez apertar mais forte a mão do seu noivo: “Não há um dia que eu não me arrependa do que voce nos fez fazer. Se dizia um homem de Deus, e ainda assim desgraçou a todos nós!”
Vários fizeram o mesmo, alguns arranharam o caixão, outros arrancaram botões da batina do morto, e depois todos jogaram sal sobre o local em que rasamente o enterraram.
- Mas o que aconteceu? - Damian perguntou exaltado vendo aquela selvageria blasfema. - O que acontece nesse lugar, pelo amor de Deus!
- Ah, vocês não sabem, não é? - respondeu aos berros o dono do pub depois de dar a última pá de terra do sepultamento - Esse homem que rezava todo domingo por Jesus e pelos anjos, esse homem nos convenceu a vender a alma, garoto. A minha, a dele e a de vocês também. A nossa cobrança pode vir daqui a alguns dias, mas a dele veio hoje, os demônios já vieram e buscaram a alma desse servo! - apontou para o castelo que já brilhava aceso no inicio do anoitecer - Mas não se preocupe, daqui a alguns dias eles voltam, daqui a seis dias um de nós vai encontrar com eles cara a cara - Olhou outra vez para baixo, a terra recém revirada, e praguejou com um meio riso cínico: - Até lá, velhote.
Com a gritaria, os abutres que assistiam a tudo voaram dos galhos secos, ali não haveria comida. Talvez encontrassem alguma coisa no alto da colina.
Fim da parte 2 de 4.
Parte 3 será postada na próxima quinta-feira. Até lá!