Os Cobradores da Noite (parte 1 de 4)
Os Cobradores da Noite - Capítulo 1/4
I
Era chegada a noite, a lua mais cheia do mês, no mês mais frio do inverno, incendiava o teto de barro das casas, iluminando também as paredes de dois andares de madeira escura, antiga, revestida da fina resina acumulada nas geadas das madrugadas, e a rua estreita reluzia prateada após todas as chamas dos postes se apagarem, uma a uma, nessa hora eles vêm, e apesar dos seus passos suaves todos os ouvem das casas muito mais que qualquer charrete, todos escutam seus passos pelas curvas das ruas, pelas esquinas de paralepipedos, os sapatos pesados como se de chumbo, porque eles não precisam se esgueirar.
Ninguém nunca dormia nessas noites, mas também havia um silêncio mais profundo que a morte em cada casa, deitados em suas camas, com a cabeça debaixo dos cobertores encardidos de tão velhos. O jovem Damian, por exemplo, lembrava da primeira vez que eles vieram, treze anos antes, ele ainda era um garoto e teve a ideia de descer do quarto, se encolher num canto da entulhada cozinha e olhar por uma fresta na madeira, foi a única vez em que ele os viu, três Cobradores, como o povo passou a chamá-los, pois todos tinham sinceras dúvidas se tratavam-se de seres humanos ou não. Vestiam túnicas estranhas que certamente nenhuma pessoa havia costurado, a presença era fantasmagorica em meio a persistente neblina. Seus rostos cobertos pelo que parecia couro de algum animal de pele clara, quase branca. Damian tremeu, e se fosse pele humana? Não sabia se algum deles o notara, ainda mais que não passava de um olho numa fresta de madeira, mas de todo caso fechou os olhos e os ouviu passar, caminhando tranquilamente. Naquela noite eles pararam três casas depois da sua.
Nessa noite, já um homem, ele ainda podia escutar os batimentos acelerados do coração daquele dia, e ficavam ainda piores a cada ano que passava, como se toda vez que não era a sua casa a escolhida, diminuíssem suas chances. Um dia entrariam na sua, e ele sabia como funcionava, ninguém estava autorizado a trancar as portas, ninguém estava autorizado a resistir.
Levantou-se da cama, se aproximou da janela fechada, um pequeno vão entre a parede e a janela permitia que visse mais uma vez as figuras, quase como entidades caminhando destemidamente pela vila enevoada. Dessa vez Damian temia não por ele, mas por ela, dessa vez torcia para que entrassem logo numa casa, que fosse antes da dele, porque assim saberia que a casa dela, sete casas depois da sua, estaria intocada.
Um urubu carniceiro corvejou ao longe, zombando da sina daqueles homens.
“Por favor, não a escolham, só esse ano, nos deixem vivos só esse ano” clamava em tom de prece, mas não era prece, não era destinado a Deus, pois sobre aquela vila Sua piedade nunca se derramara, e Damian sabia, como todos os outros moradores, que nem jamais acontecerá.
No ano que vem não estaria mais ali. Não importava que houvessem leis, que ninguém podia sair da vila por nem sequer um dia. Agora que estavam apaixonados, iria até a casa de Meredith e a levaria consigo, nem que tivessem que fugir na madrugada mais sombria, mas iriam embora e deixar todo esse pesadelo e esses Cobradores para trás.
“Só mais uma noite...”
Um deles olhou para cima, bem na sua direção e era como seus olhares duelassem a canhões na batalha mais sangrenta. Com aquelas máscaras tapando tudo menos os olhos, eles cintilavam ainda mais, perigosamente. Por um instante pensou que bateriam na sua porta, que entrariam e tocariam no seu ombro, o que era o sinal, o sinal de que teria que se levantar e deixar que o cobrissem com a túnica que traziam consigo, e então segui-los sem resistência, até o castelo no alto da colina, e ninguém nunca mais o veria.
Mas isso não aconteceu, eles seguiram em frente, e naquele ano, pela primeira vez, isso não o tranquilizou. pelo contrário, o peso do peito se fez sentir como rocha. Tentou um ângulo para não perdê-los de vista, em vão. Não sabia o que fazer, não sabia se devia ouvir essa voz dentro dele que gritava para que não deixasse, para que corresse escadas abaixo e abrisse a porta, gritasse, me levem! me levem! porque assim ao menos a manteria a salvo.
Não. Não.
Tinha que acreditar que ela ficaria bem, tinha que acreditar que pelo menos uma vez teria uma boa notícia na vida cada vez mais miserável daquela vila. Tinha que acreditar, vinte minutos depois, que não era sua amada aquela coberta pela túnica que os três Cobradores traziam consigo enquanto caminhavam calmamente em direção a colina, ao alto castelo com suas janelas iluminadas em flamas, como se lá dentro ardesse o fogo de algum inferno.
Não esperou nem o dia raiar, quando eles sumiram os moradores saíam timidamente de suas casas, as pernas tremendo, como coelhos das tocas depois da festa das raposas. E Damian soube na mesma hora, caindo sobre seus próprios joelhos no meio da rua, sem nenhuma palavra ter sido dita, quando viu os pais de Meredith inconsoláveis na frente da casa.
Mas logo enxugou o rosto, não havia tempo para lágrimas. Levantou-se e sua fisionomia já outra, da dor nascera o ódio, do choro a coragem. olhou na direção do castelo e seus punhos se cerraram em fúria. Ele sabia que ou a traria de volta, ou morreria tentando.
***
Fim da Primeira parte
Segunda parte será postada amanhã. Até lá.