ABELHAS ASSASSINAS
A proposta era irrecusável. Na verdade, tudo o que eu queria e que não saía do meu pensamento. O que, há anos, vinha economizando visava a realização desse sonho. Procurava, num esforço singular, não dar demonstração do meu entusiasmo ao reconhecer que a quantia pedida ia mesmo aquém do que realmente valia aquela propriedade. O homem parecia feliz e muito interessado em fechar comigo o negócio. Conversávamos há horas, já tendo percorrido, em quase toda sua extensão, e a pé, aquela magnífica fazenda.
Andávamos agora a passos lentos, tirando proveito da longa e aconchegante sombra fornecida pela plantação de coqueiros no auge da produção. Ele era um senhor educado; a fala macia, a afabilidade nos gestos traíam a aparência de quem era acostumado à vida no campo. Tinha, porém, uma robustez própria do fazendeiro, o olhar vivo e penetrante e uma cor de pele indiscutivelmente saudável, curtida no bucolismo.
– O senhor não vai se arrepender – me dizia, sempre com um sorriso – olhe para isso, é a perder de vista. Olhe aquele lago, veja a exuberância do pomar. Diga-me se já viu coisa igual.
Não era exatamente um pomar, mas uma plantação em série de variados tipos de frutas. Segundo me contou, foi sua atividade principal durante longos anos depois que se aposentou. Chegou a abastecer dezenas de entrepostos com o negócio das frutas. As laranjas, as bananas, os melões e abacaxis superavam as fazendas vizinhas em produção, superlotando os caminhões em épocas de colheita. Não faltava, nessas ocasiões, trabalho para quem desejasse um ganho a mais.
– Pode não ser a sua especialidade – continuou ele, – não era também a minha; não imaginava que mexer com a terra trar-me-ia tanto prazer. Quando vi que este prazer poderia me proporcionar também um bom dinheiro, arregacei as mangas e não mais parei a não ser quando outra atividade surgiu e me envolveu de tal forma que não tive tempo e nem interesse para dedicar-me a outra coisa.
Ele falava da apicultura. Numa área da fazenda, segundo me disse, criteriosamente selecionada e preparada, ficava o seu apiário.
De onde estávamos podia-se avistar, além do lago, protegida por cercado natural, com bananeiras enfileiradas e entremeada de bambuzais, a vasta área. Em nosso passeio, havíamos passado ao longe e eu me lembro desde então a impressão que me ficara: a visão não alcançava o fim das colméias. Logicamente não podíamos entrar naquele terreno por estarmos desprotegidos, mas, confesso que minha enorme curiosidade em conhecer bem de perto um apiário e o ímpeto que me dominava eram incontidos e ele percebeu minha intenção, pois me preveniu:
– Se pretende fazer o que estou pensando, e estou certo de que é isso o que quer, deixe-me alertá-lo: jamais, por qualquer que seja a razão, penetre neste apiário sem a vestimenta adequada. As abelhas que lá vivem são da espécie africana, portanto as mais perigosas. São, por outro lado, as melhores em termos de produção e, se hoje sou um homem rico, agradeço, principalmente, a esta parte da minha fazenda, mas não esqueço os momentos por que passei. – Notei que seu rosto tomara uma expressão de horror, como se a simples recordação dos fatos o transformassem.
Já estávamos de volta à varanda principal, depois de uma visita longa e demorada aos recantos mais importantes da propriedade. Desfizemo-nos de nossas botas pesadas e cheias de lama e voltei a me sentir confortável ao calçar meus sapatos e sentar-me, o que há horas não fazia. Tínhamos ali, ao sabor de uma xícara de café, uma visão privilegiada do lago, com suas águas serenas a transmitir paz. Ao findar lentamente a luz do dia, os últimos vestígios de claridade permitiam ainda a visão do longo renque de árvores dominando a paisagem. Vendo o jeito entusiasmado com que eu contemplava aquilo tudo, ele, levando aos lábios a xícara, disse:
– Fantástico, não é mesmo? No entanto, não foi sempre assim. Muito daquilo que viu hoje é o resultado de uma transformação. O que eu queria, levado pela tristeza e abatido pelo desânimo, era abandonar tudo e voltar para a cidade e lá viver. Como não sou pessoa inclinada a uma vida inativa, o que fiz foi trabalhar a hipótese de adquirir na praia de alguma cidade do interior um bom lote de terra e levantar ali uma pousada para turistas ávidos de conhecer novos ares. Mas, graças à insistência de minha mulher e sua coragem, ficamos e reconstruímos passo a passo a nossa querida fazenda. Das construções que visitamos, boa parte delas não existia antes da tragédia.
– E foram as abelhas as responsáveis?
– Em parte, sim. Em parte. Posso dizer que foram as culpadas de tudo. A partir do seu ataque veio todo o resto. Mas, deixe-me contar como tudo aconteceu.
“Minhas intenções, ao adquirir este pedaço de terra, não eram diferentes das que o senhor acalenta: ter uma terceira idade caracterizada pelo sossego e ao mesmo tempo ganhar dinheiro com atividades que nos enchem de prazer e nos enriquecem a alma. O sonho de possuir um apiário sempre me fora presente ao espírito e as andanças pelo local no dia da negociação fortaleceram em mim esse acalanto. Quando vi a área coberta de densa mata, não tive dúvidas: seria aquele local. Tive que ser relutante aos pedidos de minha esposa para deixar de lado este projeto arriscado e fazer do local uma horta. Mas, eu estava decidido e já vinha me dedicando há semanas ao estudo desses fantásticos seres pequeninos.
" Contudo, eram tantos os afazeres que necessitavam da minha atenção que me vi adiando a iniciativa; porém, os estudos não cessavam. Um acontecimento fortuito e muito bem vindo acabou por arrefecer a teimosia de minha mulher e, diria até, transformar sua posição de opositora a uma simpatizante da apicultura e minha maior auxiliar. A minha decisão de envolver-me no ramo das abelhas já era um fator decretado em meu íntimo e eu sabia que em algum momento conseguiria o apoio de Nilma. À revelia, já havia adquirido toda uma parafernália essencial à atividade e trazia-a escondida a espera do momento oportuno e este chegou.
“Surgiu, para os lados dos coqueirais, uma colméia. Com freqüência, o forte calor trazia-nos para a varanda à hora das refeições. Os doces eram, como ainda são, a paixão de Nilma e a alegria das nossas crianças. Passou a ser comum a presença de uma ou outra abelha volteando as travessas em busca do néctar, seu precioso alimento. Pareciam inofensivas, pousando solitariamente aqui e ali, mal dávamos por elas.
“Mas, ao avistarmos a colméia a reação foi bem outra. Estava no alto de uma palmeira e pude avaliar, pelo tamanho da casa e pela enorme quantidade delas, que se encontravam em pleno processo de produção do mel. Felizmente consegui mantê-las a certa distância e a tempo de me prevenir e a Nilma do perigo iminente. Costumávamos realizar esses passeios com as crianças e neste dia, pelo motivo que hora não me lembro, elas não puderam nos acompanhar.
“Calculei em centenas o número delas. Algumas davam voltas em torno da árvore, num movimento frenético, alvoroçadas, como a se precaverem contra um ataque externo. Minha principal preocupação era que sentissem nossa presença o que significaria um ataque. Uma que fosse, ao se afastar das demais e picar um de nós já seria o suficiente para deflagrar um ataque em massa, pois o hormônio desprendido é um sinal poderoso a atrair todo o bando. Meus temores se confirmaram quando senti, circulando em torno de nossas cabeças, algumas abelhas. Sabedor do risco de executar movimentos, o que pode torná-las ainda mais agressivas, preveni minha esposa:
– Não se mexa, por enquanto. Fiquemos exatamente na posição em que estamos.
– Mas, elas vão nos atacar! Precisamos fazer alguma coisa, estou com medo.
“Nilma era de uma palidez impressionante. Sentíamos o zumbido dos insetos bem próximo de nossos ouvidos, o que aumentava ainda mais nossa agonia. Minha intuição alertava sobre a iminência de uma investida sem trégua, porque é sempre assim que acontece em se tratando de abelhas: são capazes de perseguir um intruso por até 400 metros e, como as cores escuras atraem-nas muito mais do que as claras, conclui que seria eu o mais visado, pois Nilma trajava bermuda branca e blusa azul clara, enquanto eu tinha vermelho na camisa e calça preta.
– Corra em direção à casa. Caso seja perseguida cubra imediatamente a cabeça, os olhos, principalmente. Use a própria blusa se for necessário, não se preocupe com o resto do corpo. Importante: corra em ziguezague, sempre em ziguezague. – Mal terminei estas palavras e ela disparou como se fugisse de uma avalanche.
“Quanto a mim, tratei também de correr, mas, em outra direção. Eu não me enganara: foi a mim que elas deram preferência e o fizeram com entusiasmo. Logo às primeiras picadas no rosto, desfiz-me da camisa e me protegi. Mesmo trazendo por baixo uma camiseta senti as picadas, pois, para os seus ferrões não existem obstáculos. Mal via o caminho a minha frente, não ousava expor os olhos mais do que o tempo necessário para ganhar alguns passos. Fazia-o a intervalos regulares e com muita cautela; agia mais como um cego do que um ser humano normal. Uma ferroada na vista representa cegueira em quase cem por cento dos casos e este era o meu maior medo.
“Como corria em ziguezague por entre as árvores, a possibilidade de um choque a qualquer momento era outro fator que me preocupava. Sabia, porém, que o desespero e o descontrole eram inimigos tão poderosos quanto aqueles que me perseguiam. Este pensamento ajudava-me a manter a calma e buscar uma solução imediata.
“Embora conheçamos as saídas para tornarmos ínfimos os efeitos de um ataque de abelhas, não é nada fácil decidirmos qual deles vamos colocar em prática. Tudo acontece muito rapidamente, deixando-nos em tal estado de perturbação que se torna dificílimo concatenar as idéias no sentido da ação pronta e eficaz.
“Sendo assim, fiz a primeira coisa que me viera à mente, numa tentativa de me livrar o quanto antes daquela situação cruciante: como a casa estava distante e eu sabia que indo para lá estava pondo em risco minha família, posto que o ataque já fosse uma realidade, optei por uma saída não menos arriscada, mas com grandes chances de me sair bem: corri para o lago e mergulhei de cabeça. Este corpo roliço e bastante pesado que está vendo não existia naquela época. Embora não fosse magro, estava em ótima forma física e acho que foi o que me salvou. O lago não era próprio para uma prova de nado, outro fator que veio em meu auxílio.
" Nadando por baixo d’água procurava afastar-me o máximo, mas toda vez que vinha à tona lá estavam elas como se algo em mim as atraísse. Felizmente, consegui emergir bem próximo da margem oposta àquela em que mergulhara e esta foi a minha sorte, pois lá a vegetação era abundante e eu consegui ocultar-me quase que inteiramente sem precisar estar submerso. Para confundir definitivamente esses seres superdotados de sensibilidade que são as abelhas usei de uma estratégia que aprendi nos livros, mas ainda não havia colocado em prática; a bem da verdade, tudo que fiz neste dia para livrar-me de um ataque que em muitos casos se torna fatal – e acabou funcionando – eu aprendera nos estudos e nas pesquisas que fizera. Falo do feromônio que é desprendido do corpo da vítima no momento da primeira picada e emitido para o local do enxame como um sinal único: picar.
" Na mesma proporção, o hormônio liberado de uma vegetação densa que se agita inibe a ação do feromônio. Foi o que fiz ao chegar à outra margem: ocultei-me e pus-me a bracejar entre os arbustos aquáticos; deve ter sido o que evitou o pior. Quando tomei coragem e abri os olhos, pois já tinha a cabeça descoberta e nada sentia, não vi sinal delas; concluí então que havia vencido esta batalha. Mas isto, meu amigo, foi apenas uma pequena demonstração do que esses seres são capazes.
" Devo salientar que as abelhas que me atacaram não eram da mesma espécie das que habitam aquele apiário. Recebi ao todo dezesseis ferroadas, a maioria no peito e nas costas. Felizmente e pela minha cautela, só quatro foram no rosto. Constatei, pelo estudo que fiz em seguida do veneno, serem da espécie européia. As africanizadas, que são as que cultivo, são excelentes na produção mas, por outro lado, seu sinal de agressividade é incomparavelmente maior, por isso são temidas e respeitadas.
– E quanto aos efeitos da ferroadas sobre o seu organismo? Creio que dezesseis é um número bastante alto; o senhor deve ter sofrido um bocado.
– Isto varia muito de uma pessoa para outra. É evidente que a dor e o desconforto beiram o insuportável. Cada um de nós apresenta um determinado nível de resistência em relação ao número de picadas. Pode-se morrer em questão de minutos depois de receber no corpo de dez a vinte ferroadas ou sobreviver sem sequelas mesmo com o corpo enegrecido por centenas de ferrões.
– Isto é surpreendente; chega a ser inacreditável.
– Mas não é. E Altamiro é uma prova viva.
– Quem é Altamiro?
– Um dos meus capatazes. Hoje já passa dos sessenta anos, mas contava mais de cinquenta quando ocorreu a grande catástrofe; já era portanto, um senhor de certa idade e eu o dei como morto ao constatar o estado em que ficou após as 367 picadas que sofreu.
– O senhor não pode estar falando sério – disse eu, totalmente bestificado.
– É a pura verdade. O senhor poderá inteirar-se do que aconteceu naquele verão pela boca do próprio Altamiro, caso isto o interesse. De minha parte, o que tenho a dizer é que o homem goza hoje de excelente saúde como se nada disso houvesse ocorrido com ele. Tínhamos um médico hospedado na fazenda e que lhe prestou os primeiros socorros, colocando-o fora de perigo. O comprometimento das funções renais é um dos fatores que podem levar à morte caso não haja um socorro imediato. A aplicação de um antiistamínico, a retirada de grande número de ferrões antes que boa parte do veneno fosse inoculado foram o que contribuiu, entre outros cuidados, para que não tivesse uma parada cardíaca, o que deixou abismada a equipe do hospital para onde o levamos em seguida.
– O senhor falou em catástrofe. Imagino que algo de muito ruim deva ter acontecido nesta fazenda para deixar o homem naquele estado, somente um enxame gigantesco e descontrolado o faria.
– E foi exatamente o que se deu. Quando adquirimos a propriedade, o mato era o grande hóspede. Havia umas poucas árvores de espécies desconhecidas para mim e que acabei sabendo, não eram rentáveis. A maioria, palmeiras produtoras de frutos não comestíveis, abundavam em áreas inapropriadas. Convenci-me de que algo deveria ser feito para alterar aquele cenário, já que não via utilidade naquele tipo de vegetação. As copas eram enormes, como a querer abraçar o céu com sua folhagem imponente. As rolinhas eram, de todos os outros pássaros, as mais beneficiadas. Faziam seus ninhos quase sempre no topo dos galhos mais elevados e eram tão bem construídos que nenhum vento os derrubava. Ao passear por ali não era raro dar com uma delas debicando os coquinhos que, por maduros demais, despencavam ao menor toque e vinham ao chão. Era assim: fruto para baixo, rolinha para cima, a transportar o pequeno estoque para a alimentação da prole. O chão vivia lotado, o auge da produção lançava para todos os lados os pequenos frutos; adubo futuro para o mato que crescia sem abundância.
“A natureza é a minha paixão, mas uma natureza bela, onde, através da interferência humana se possa unir dádiva e criatividade. Mandei devastar toda a área de mato e mantive as árvores. Minha intenção primordial era plantar coqueiros que me dessem sombra, água, não só fresca, como também deliciosa e salutar e, logicamente, um magnífico retorno financeiro. Dava inúmeras voltas pela fazenda todos os dias. Minhas manhãs gastava-as em caminhadas e conjecturas. À medida que a terra ia ganhando novo formato; que o mato, agora rasteiro, me fornecia uma nova visão do todo, dando vez às outras formas de vida que, antes ocultas, não vicejavam, meus pensamentos se aclaravam e me brotavam idéias.
" Nas minhas primeiras semanas, apreciava sem interesse a vegetação até porque não havia vegetação. Distraía-me da minha varanda com os sons diurnos, a começar pelos pássaros fazendo a festa e as rolinhas, sempre elas, enfileirando-se nos fios e ali ficando a maior parte do dia. Quando caía a chuva, fato frequente por estas bandas, a água descia em torrentes impetuosas e se acumulava em vasta área. A elevação do terreno por trás do que hoje constitui o lago punha em meu espírito uma nota de paz e de bem-aventurança. Somente a contemplação deste quadro e seus efeitos teria sido o bastante para compensar o que investi; o lago que usufruímos hoje nasceu desta vontade de ampliar o que o Criador, em forma bruta e natural, nos tem concedido. Consegui transformar uma simples queda d’água num arrojo de construção que enche de prazer a todos que o apreciam.
“Mas me faltava algo, o que fazer para preencher esta minha sede de belo? como prover o chão que agora me pertencia de uma forma a me satisfazer o espírito sem menosprezar o bolso? Em minhas andanças, sentindo com intensidade o ar puríssimo a me encher de vida, olhando ao redor com o coração leve e desprendido, constatei a grandeza da primavera. Os arvoredos estavam de cara nova, vestidos de flores brancas, as pétalas dançando ao sabor do vento.
"A pequena alameda não me despertara interesse desde a minha chegada. Só então percebi o valor do tempo em nossas vidas. Por que não criar aqui um belo jardim? O terreno está limpo. O espaço é amplo e a terra é muito boa. Colocamos mãos à obra e em poucos meses tínhamos ali um dos locais mais aconchegantes de nossa fazenda. Finalizamos um cercado de girassóis; suas enormes pétalas arredondadas parecia querer saltar e nos cumprimentar quando nos aproximávamos. As margaridas e as dálias proliferavam com tal entusiasmo que, com frequência, eram por nós arrancadas para que seu crescimento acelerado não prejudicasse as demais. As rosas eram um espetáculo à parte, enchendo de admiração os olhos dos visitantes.
"A polinização é, por assim dizer, o intercâmbio do amor entre uma flor e uma abelha. Esta procura o néctar que lhe mantém a vida e em troca, como agradecendo a permissão do encontro e do beijo, abençoa a outra, vivificando-a. Deste ato sublime resulta a continuidade da vida e somos nós os maiores beneficiados. Envergonho-me da raça humana, desmerecedora, a meu ver, desta graça tão antiga e natural e que agora escasseia, pois ameaçam tombar, sorumbáticos os seus doadores. Falo da depredação das matas e do avanço inexorável de nossas cidades. No Japão, não sei se sabe, desesperam-se os ecologistas com as ações inadvertidas do homem que vem poluindo os ares. Noticiou-se recentemente a necessidade de polinizar-se imensa região de forma artificial, flor a flor, pelo fato de terem desaparecido as abelhas, sensíveis aos desajustes ambientais.
“Nosso jardim se tornou famoso na vizinhança; consideravam-no o cartão postal da cidade. Nossa região é ponto turístico para estrangeiros. Petrópolis e Teresópolis oferecem atrações variadas para quem chega de fora. Itatiaia goza parte deste prestígio e fica muito a perder em belezas naturais e clima super saudável. Daí, não sei por que meios, o interesse pelo jardim crescia pouco a pouco. Passamos a fazer excursões, organizadas com guias, contratamos funcionários para a confecção dos arranjos. Não vou dizer que era uma atividade lucrativa, mas era, sim, antes de tudo, prazerosa. Todavia, isto não vem muito ao caso para o que quero narrar, mas foi preciso que eu o mencionasse a fim de que o senhor tenha conhecimento da origem dos fatos.
“Andar entre as leiras do meu jardim, apreciar sem medo algumas dezenas de abelhas passeando entre as tulipas, descendo sorrateiramente os bulbos dos copos de leite e ali ficarem a sugar o pólen, colher o néctar, constituía para mim um prazer inigualável. Elas só se tornam agressivas quando em processo de formação de suas colônias, quando constroem suas colméias; e quando qualquer aproximação inadvertida e negligente representa perigo.
“No jardim sentia-me à vontade; menos do que um mero espectador, um ávido pesquisador detalhista e curioso na medida em que, pacientemente, estudava, inteirando-me dos seus hábitos. Com uma câmera e uma máquina fotográfica, captei os detalhes que julguei os mais interessantes para o meu propósito.
“Depois de juntar análises de tudo que havia colhido e reestudar os apontamentos que fizera dei-me por satisfeito e passei à parte realmente prática. Deixara, com esta intenção, um pedaço afastado de terreno cuja extensão mostrou-se ideal à instalação do apiário, foi ali que passei os momentos mais agradáveis desde que vim para cá.
“Vou poupá-lo de detalhes referentes à minha atividade de apicultor. Quero acreditar que não desconheça as vantagens de se mexer com abelhas, elas são um mundo à parte de laboriosidade e organização. Poderia afirmar que proporcionei a elas um verdadeiro paraíso. Com a riqueza de variedades presentes no jardim, um número incontável de colméias e criadouros a lhes facilitar todo o processo de interatividade e de produção, tudo em uma mesma região, previamente trabalhada para este fim, a prosperidade seria uma questão de tempo para mim, posto que para elas já era um fato notório e consumado. Empreguei boa parte de tudo que possuía em forma de capital e toquei o negócio cheio de esperança. Estava certo. Em questão de meses já era um produtor que podia enfrentar sem medo a concorrência. Foi quando se deu o primeiro acidente.
“No vôo nupcial destaca-se o mais ligeiro e o mais destemido zangão; entre muitos que não tiveram a mesma “sorte”, ele conseguirá fecundar a rainha a não menos que onze metros do solo, dando a ela a suprema felicidade de gerar em seu ventre os milhares de ovos que irão formar a futura colméia. Satisfeito e orgulhoso da missão cumprida, morreu o macho glorioso. Dias depois a colônia se estabelece. Não sei o que houve ao certo, mas imagino ter havido neste dia uma luta furiosa entre abelhas rainhas na disputa pela soberania de uma mesma colméia e isto multiplicado a tal ponto que se instalou o caos dentro da circunscrição do apiário.
“O zumbido, de alguma forma, assustou os animais até o momento em que um deles, alvoroçado, afastou-se da área circunscrita pelo canil. A corrente que o prendia partiu-se acidentalmente e ele pulou a cerca. Parecia endiabrado e seus uivos ensurdecedores foram a causa de sua morte. Os sons, agudos, principalmente, são o principal chamariz à abelhas propensas a um ataque. Foi o que aconteceu neste caso. Elas principiavam a atravessar da área do apiário para o terreno aberto da fazenda. O animal vinha em disparada e aí se deu o encontro. Em fração de segundos, a nuvem escura desceu inteira e abateu-se sobre o cão. Não mais se distinguia o corpo que, assustadoramente enegrecido, ainda num esforço inútil, avançou alguns metros e caiu fulminado.
“Era uma cena de fazer tremer os fios de cabelo tal o espanto e comoção que causava. Em muito pouco tempo o ar tornou-se pesado, as folhas das bananeiras que protegiam o apiário davam a prova da devastação que estava prestes a ocorrer. Os insetos que não voavam agarraram-se a tudo que encontravam pelo caminho.
“Eram tantas e em tão grande fúria que a nuvem, enorme a princípio, descontrolou-se, gerando então enxames incontáveis, dissipando-se para todos os lados. Como não podia deixar de ser, os cães foram os primeiros a serem atingidos. Dos três cavalos que possuíamos, dois, embora várias vezes picados, conseguiram, em disparada impressionante, sair do alcance delas, mas o potro de Gracinda, minha filha, não teve a mesma sorte, muito menos a agilidade dos outros e morreu terrivelmente. As primeiras horas de uma manhã de sábado testemunharam este massacre e estávamos todos dentro de casa sentados à mesa do café quando veio de Gracinda o alarme. Seu potrinho querido vacilava a poucos metros de nossa janela e, atrás dele, endiabradas, as abelhas. Formavam uma comprida e espessa linha que, em linha reta, visava o alvo, certas de alcançá-lo.
"Quando isto se deu, já estávamos na varanda e minha principal preocupação era conter minha filha. Estava desesperada ante a visão do animalzinho. Quando ele foi ao chão, abatido pelas centenas de ferroadas, tive que cair sobre ela impedindo-a de saltar sobre o pequeno muro e ganhar o lado de fora. Fiz com que nos precipitássemos o quanto antes de volta ao interior da casa a fim de evitar o pior, pois o ambiente configurava-se a imagem do próprio inferno. Mal entramos vimo-nos acompanhados de um punhado delas; haviam penetrado na casa antes que pudéssemos impedir a invasão.
– Verifique imediatamente cada cômodo da casa e feche todas as entradas e saídas – disse a Nilma.
“Arrependi-me mais tarde de não ter tomado para mim a responsabilidade de fazer o que ordenara a Nilma. Tê-la-ia ainda a meu lado se não tivesse sido tão idiota. Enquanto me ocupava em acalmar minha filha, não dei pela sua demora. Somente mais tarde, através do exame cadavérico ficou comprovada à enorme susceptibilidade de seu organismo às picadas de abelha. Bastaram algumas dezenas para que um choque anafilático acelerasse a sua morte. Encontrei-a sem sentidos sobre a cama de um dos quartos. Vesti, mais do que apressado, meu paramento de apicultor e saí desesperado e em prantos em nossa caminhonete. Debalde foram os esforços da equipe médica. Nilma faleceria horas mais tarde fazendo de mim o mais infeliz dos mortais.
“Narro agora a você as últimas horas que aqui passei antes de estar fora uma noite inteira velando o corpo de minha mulher, dando-lhe o adeus final.
“Os primeiros raios de sol começaram timidamente a banhar a minha propriedade. Por todos os lados, as marcas da passagem das abelhas e os efeitos da destruição que elas causaram. A superfície do lago, de ponta a ponta, expunha restos de asas, ferrões e muitos, mas muitos, insetos sem vida. Alguns animais foram abatidos na água após tentativa desesperada de se livrarem da morte. Dois dos meus melhores cavalos lá estavam, os mesmos que eu vira horas antes em fuga desesperada. Havia também um cão, duas cabras e até coelhos. Soube então do que acontecera ao Altamiro. Os outros empregados da fazenda seguiram à risca as minhas orientações e advertências no caso de um ataque e pensaram duas vezes antes de tentar enfrentá-las ou mesmo impedir a proliferação dos enxames.
" Mantiveram-se em suas casas e sequer envolveram-se na luta entre elas e os animais, somente o fazendo para socorrer o pobre Altamiro que pagou caro por sua inépcia. Finalmente, para não assustá-lo, quero dizer que a situação hoje é bem outra. Considero que houve uma fatalidade somada a minha pouca experiência. Prova disto é que já lá se vão anos e nunca mais houve o menor acidente. Mas, tudo tem um preço, como deve ter visto pela modernidade das construções, o que nos deixou verdadeiramente protegidos. Aliás, precisamos conversar melhor sobre o preço. Quanto foi mesmo que pedi pela propriedade?
Fingi que não ouvira a pergunta e desconversei. No caminho de volta ia eu pensando na possibilidade de fechar o negócio que me parecia ainda excelente. Mas, confesso que a história não me saía da mente. Deu-me vinte e quatro horas para me decidir, do contrário, outro pretendente tomar-me-ia o lugar. Só me resta então uma boa noite de sono e acordar com a decisão tomada e sem arrependimento.