đ„ Nos PortĂ”es do Inferno #3 - Chamada de EmergĂȘncia #1âïž
đ„CapĂtulo 1đ„
âïžChamada de EmergĂȘncia #1âïž
I
A noite jĂĄ havia se adensado quando o telefone tocou rompendo o silĂȘncio na residĂȘncia dos Cartago. Na biblioteca, Leonardo sobressaltou-se. Fechou o livro sobre rituais arcaicos que estava lendo e caminhou apressado atĂ© a sala. LigaçÔes tarde da noite nĂŁo eram incomuns naquela casa, mas, por algum motivo, aqueles toques carregavam um tom de mau agouro.
â Pronto â atendeu, a voz firme.
â Oi... Ă... Ela disse pra ligar. Acho que tem alguma coisa errada. Tinha um cara... Ela foi atrĂĄs, depois voltou... Ela deixou tudo aberto pra ir atrĂĄs dele. Ela nunca faria isso. Eu vi nas cĂąmeras... Tem muitos! TĂŽ vendo agora...
â Ei! Calma aĂ! Respira, guri. Fala devagar. Primeiro: quem Ă© vocĂȘ? E segundo: como tem esse nĂșmero?
â Ah, Ă© mesmo, foi mal, desculpa. Ă... Eu sou o Hugo.
â Hugo? Que Hugo?
â Sou amigo da Raiane, foi ela quem deu o nĂșmero.
O corpo de Leonardo enrijeceu, sua mĂŁo crispou-se no telefone ao ouvir o nome de sua irmĂŁ gĂȘmea.
â Onde ela tĂĄ? â exasperou-se, a voz subindo.
â Ela me pediu pra ligar. TĂĄ na loja dela. Mas, eu acessei as cĂąmeras da rua... Tem uns caras lĂĄ na frente, um monte! E uns carros importados, sabe? TĂŽ tentando ver a placa de algum, mas nĂŁo dĂĄ Ăąngulo...
â Ela pediu pra vocĂȘ falar alguma coisa estranha?
â NĂŁo... Quer dizer, sim.
â Fala! â bradou Leonardo, o tom urgente.
â Ela disse que... o Balrog passou.
â Merda â murmurou Leonardo sentindo a voz falhar.
â O que isso quer dizer? â perguntou Hugo, hesitante.
â Nada â mentiu Leonardo. â Eu assumo daqui. Me passa seu endereço que eu...
Um clique interrompeu a frase. Hugo havia desligado. Leonardo praguejou e bateu o telefone no gancho. Sem perder tempo, correu até a entrada da casa onde ficava a central de alarmes. Com rapidez familiar, abriu a portinhola e apertou um botão vermelho. Um toque estridente ressoou por todos os cÎmodos.
Passos apressados ecoaram na escada do segundo andar. Daniel foi o primeiro a descer, os punhos cerrados e o rosto marcado pela tensĂŁo de quem jĂĄ esperava o pior. Sua postura mostrava determinação, mas os olhos buscavam Leonardo, o irmĂŁo mais velho, como se aguardasse uma direção. Beatriz veio logo atrĂĄs, passos firmes e rĂĄpidos, expressando que estava pronta para resolver o que quer que fosse â uma caracterĂstica que a acompanhou desde que assumira o papel de protetora apĂłs a perda do marido. Seus olhos procuravam por esclarecimento nas expressĂ”es dos filhos.
Leonora apareceu logo em seguida ajeitando os óculos no rosto, serena, mas o olhar atento como quem tentava organizar mentalmente o que estava acontecendo antes que alguém precisasse explicar. Atrås dela, Eilson descia os degraus devagar, os movimentos ainda pesados de quem fora arrancado do sono, mas os olhos jovens acompanhavam cada passo da mãe. Manteve-se perto dela, como sempre fazia quando algo parecia fora do lugar.
Todos se entreolharam procurando respostas. Leonardo abriu a boca para explicar, mas parou no meio da frase quando um toc, toc cortou o silĂȘncio no andar superior. Ele fez um sinal para que todos esperassem.
O som rĂtmico da bengala de Muriel Cartago desceu vagarosamente pela escada. A matriarca movia-se com dificuldade, mas a presença dela era suficiente para impor respeito. Cada passo ecoava pela escada, marcando sua autoridade. Na outra mĂŁo, Muriel segurava um rifle, que parecia mais uma extensĂŁo de seu prĂłprio corpo do que uma arma.
Beatriz fez menção de subir para ajudå-la, mas Muriel gesticulou, abrupta, ordenando que a filha permanecesse onde estava.
âNĂŁo preciso â disse, com um tom firme, mesmo que a idade e o despertar repentino fizessem sua postura tremer levemente.
Quando chegou ao pé da escada, Muriel lançou um olhar direto para Leonardo. Os demais se entreolharam, aguardando tensos, cientes de que um chamado noturno só poderia significar uma coisa: problemas.
â Mas que barulheira infernal foi essa? Espero que seja algo importante â disse Muriel.
Leonardo respirou fundo, sentindo o peso de tantos pares de olhos sobre ele.
â Acabei de receber uma ligação de alguĂ©m que diz ser amigo da Rai âcomeçou ele.
â Fala logo! â pressionou Daniel.
Leonardo disse em um arquejo:
â Ela mandou dizer que o Balrog passou!
Um silĂȘncio pesado tomou a sala. Todos se entreolharam, os semblantes marcados por uma crescente tensĂŁo. A frase era uma senha que todos conheciam bem. O Balrog passou. Uma mensagem clara: demĂŽnios estĂŁo por aqui e eu estou em perigo.
II
â Suspenderemos todos os trabalhos em andamento â decretou Muriel, o tom firme de quem nĂŁo admite discussĂŁo.
â Mas VĂł, e o caso... â tentou argumentar Daniel, a voz hesitante.
â Suspenderemos tudo! â vociferou Muriel cortando o neto com um olhar que facilmente calaria um exĂ©rcito.
â A mĂŁe estĂĄ certa â interveio Beatriz resoluta. â Sua irmĂŁ sempre tentou manter distĂąncia. Mal liga para desejar um feliz aniversĂĄrio, feliz natal, ou o que quer que seja. Se ela solicitou ajuda, Ă© porque a coisa ficou sĂ©ria. E, alĂ©m do mais, ela Ă© famĂlia, independente do tipo de relação que temos. Eu concordo com a mĂŁe. Suspendemos tudo e vamos em peso atĂ© ela!
Os demais menearam a cabeça em concordùncia. Daniel, percebendo que não adiantava insistir, soltou um suspiro contrariado antes de se render.
â O que mais vocĂȘ sabe? â perguntou Leonora lançando um olhar inquisitivo para o sobrinho.
â NĂŁo muito â respondeu Leonardo hesitante. â A ligação caiu ou o guri desligou...
â Guri? â cortou Daniel, a incredulidade evidente no tom. â PeraĂ, vocĂȘ fez essa algazarra toda por causa de uma ligação de um garoto? E se for um trote?
â NĂŁo foi! â esbravejou Leonardo irritado. â Como vocĂȘ acha que ele sabia a senha. Ele disse que estava vendo por uma cĂąmera, ou sei lĂĄ o que. Disse que a Rai estava dentro da loja dela e tinha um monte de caras na frente em carros. Carros importados. Carros! No plural!
O ar no ambiente pareceu suspenso por alguns instantes, pesado e denso como o prenĂșncio de uma tempestade.
â Mexam-se! â vociferou Muriel, a bengala batendo com força no chĂŁo. â O que estĂŁo esperando? VĂŁo arrumar as malas! VocĂȘs sĂŁo surdos?
III
Leonardo estava em seu quarto, terminava de organizar a bolsa de viagem com itens que considerava essenciais: ampolas de ĂĄgua benta, uma faca santificada pelo Padre Pio, uma cĂłpia do Rituale Romanum â embora soubesse o conteĂșdo de cor â, munição de sal e armas adaptadas.
Seu corpo estava em movimento, mas sua mente era um turbilhĂŁo. NĂŁo eram os demĂŽnios que o deixavam nervoso; ele jĂĄ enfrentara muitos. O que o incomodava era Raiane. Fazia muito tempo que nĂŁo conversava com sua gĂȘmea, e a Ășltima vez nĂŁo havia sido agradĂĄvel. Na verdade, as Ășltimas conversas dela nĂŁo tinham sido amigĂĄveis com ninguĂ©m da famĂlia.
Mesmo assim, sentia falta dela.
Raiane optara por nĂŁo seguir o trabalho da famĂlia, mas Leonardo sabia bem: quando se Ă© um Cartago, o trabalho acaba te encontrando. Essa escolha dela, no entanto, trazia um misto de frustração e mĂĄgoa que ele tentava esconder. Talvez, se ela tivesse ficado, nada disso estaria acontecendo agora.
Uma batida na porta o sobressaltou, arrancando-o de seus pensamentos. Era Daniel.
â VocĂȘ acha que a vĂł moveria cĂ©us e terra se fosse outra bruxa sendo atacada e nĂŁo a Rai? â perguntou o irmĂŁo, encostado no batente.
â Ă claro â respondeu Leonardo convicto. â DemĂŽnios estĂŁo Ă solta, cara!
â Ă claro que iria â ironizou Daniel. â Se os parentes da bruxa pagassem bem.
Leonardo parou e virou-se para o irmĂŁo.
â TĂĄ falando do quĂȘ?
â Que a velha sĂł sem importa com o que vem em troca â continuou Daniel, desafiador. â E nĂŁo necessariamente em fazer o bem. Isso Ă© sĂł uma consequĂȘncia remota.
Leonardo fechou o zĂper da bolsa com força, os dentes cerrados.
â Como Ă©? TĂĄ de sacanagem? Eu faço isso porque quero acreditar que tĂŽ fazendo um bom trabalho. O que vem em troca Ă© lucro!
â Falou bem âretrucou Daniel com um sorriso ĂĄcido. â VocĂȘ quer acreditar. Gostaria que a velha tambĂ©m quisesse.
Sem esperar resposta, Daniel saiu do quarto, deixando Leonardo furioso e sozinho com suas dĂșvidas.
Continua...đ