A Trégua da Carne

A Trégua da Carne

O vilarejo de Sant'Ambrosia, encravado nas colinas do interior italiano, nunca aparecia nos mapas. Turistas não chegavam até lá. Os próprios moradores evitavam sair depois do anoitecer. No centro da praça, uma capela antiga, erguida sobre pedras negras e lisas, abrigava um altar sem cruz, sem santos—apenas um bloco polido, manchado de um marrom escuro que o tempo não apagava.

O padre Lorenzo sabia. Seu avô sabia. Todos sabiam.

A cada vinte anos, eles vinham buscar sua parte.

A data se aproximava. Os mais velhos trancavam portas. Os jovens fingiam não acreditar. Mas quando o outono chegou e o sino da capela tocou sozinho ao pôr do sol, até os mais céticos empalideceram.

Era a Trégua da Carne.

Na manhã seguinte, o açougueiro encontrou os porcos mortos nos currais, sem uma gota de sangue, a pele intocada. Os riachos secaram, substituídos por poças espessas e escuras, como se a terra estivesse sangrando por dentro.

Padre Lorenzo foi até a capela. Ele deveria preparar o altar. Mas desta vez, algo estava errado. O bloco de pedra estava frio demais ao toque. As manchas escuras pareciam vivas, escorrendo lentamente como se a pedra estivesse suando.

E então, pela primeira vez em dois séculos, ninguém apareceu como oferenda voluntária.

A Trégua havia sido quebrada.

Na primeira noite, Giovanna, a parteira, desapareceu. Seu marido encontrou apenas os ossos, empilhados metodicamente na soleira de casa. Limpíssimos, como se algo os tivesse roído de dentro para fora.

Na segunda noite, o ferreiro foi arrancado de sua oficina. A porta permanecia trancada, a chave ainda na fechadura. Mas no chão, marcas longas e irregulares riscavam a pedra, como se algo grande e faminto tivesse se arrastado ali dentro.

Na terceira noite, o chão abriu os olhos.

Fendas se formaram sob as ruas de pedra. Moviam-se, pulsavam, observavam. Olhos ocres e leitosos brotavam da terra, piscaram em descompasso. Eles cheiravam os vivos.

No final da rua principal, onde antes ficava a capela, algo emergiu.

O bloco do altar havia se partido, revelando um túnel para uma escuridão sem fim. E de dentro, eles saíram.

Não eram homens. Não eram feras. Eram estirados, longilíneos, de pele negra e reluzente como carne crua. Caminhavam sobre patas finas demais, braços longos terminando em dedos nodosos, esqueléticos, incapazes de segurar qualquer coisa exceto nós.

Eles estavam famintos.

A vila tentou correr. Mas para onde? Não havia estrada que não terminasse em olhos. Não havia refúgio onde a carne não fosse um chamado.

O último que viu o padre Lorenzo relatou que ele estava de joelhos diante da capela, murmurando uma oração sem palavras, os olhos sangrando. Seu último sussurro foi um pedido de desculpas.

Então, o sino tocou pela última vez.

No dia seguinte, Sant’Ambrosia não existia mais.

Não sobraram ruínas. Não sobraram corpos. Apenas a estrada poeirenta levando a um vazio onde, supostamente, existia um vilarejo.

Mas se alguém passar pelo local à noite e ouvir com atenção, poderá escutar algo sussurrando sob a terra.

Algo que mastiga no escuro.

(Eduardo Andrade)
Enviado por (Eduardo Andrade) em 26/03/2025
Código do texto: T8294446
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