O rebanho

Sempre tive um sonho recorrente: estou no meio de um pasto sem horizonte, cercado por um rebanho de ovelhas idênticas. O silêncio é absoluto - não há vento, não há farfalhar da lã, nem som algum, apenas uma presença. Algo que observa, mas que nunca consigo encontrar.

Acordo sempre com o peito apertado, suando frio, como se o ato de respirar fosse um privilégio concedido por forças que ignoro.

Nos últimos dias, algo estranho tem acontecido: o sonho parece ter se infiltrado para além do sono. Na rua, vejo pessoas caminhando em uníssono, passos sincronizados como se fossem guiadas por uma força invisível. No trabalho, diálogos se repetem com precisão perturbadora, como se ensaiados. Até minha família está diferente. Seus olhos perderam o brilho, como os das ovelhas do sonho.

Então, acontece. Quando me vejo no campo sem horizonte, não estou mais apenas observando o rebanho, faço parte dele. Sinto o peso da lã cobrindo meu corpo, cheiro de terra, fezes e carne quente. Tento gritar, mas tudo que sai da minha garganta é um balido rouco e sufocado. Tento correr, mas minhas pernas não se movem mais como antes. Então percebo a presença. O pastor está ali. Ele não tem rosto, apenas um buraco negro e pulsante onde deveria haver uma face. Quando ergue o cajado, sinto algo em mim se desfazer: memórias, pensamentos, identidade… tudo é sugado para aquele vazio sem fim. Então, eu entendo. Nunca fui diferente e nem especial. Nunca fui eu, sempre fui parte do rebanho.

Acordo em um salto, ofegante. Tudo parece normal, mas algo está errado: não consigo lembrar meu nome. E lá fora, sob a luz pálida da lua, centenas de olhos ovinos me observam.

Betaldi
Enviado por Betaldi em 26/03/2025
Código do texto: T8294329
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