Primitivo
A água estava morna naquela manhã, o mar, calmo. Eu tinha decidido entrar um pouco mais fundo, sentindo o balanço das ondas enquanto olhava a vastidão azul ao meu redor. Era uma sensação libertadora, mas então, vi a sombra... no início, pensei que fosse um jogo de luz, ou uma mancha n'água. Mas quando aquele vulto escuro se aproximou, minha respiração falhou. Era um tubarão, e não qualquer um: era um grande tubarão branco (eu já vi o filme). Ele deslizava com uma lentidão calculada, seu corpo colossal ondulando no compasso do movimento das correntes. Os olhos negros, vazios, pareciam atravessar minha alma. Eu queria correr, queria gritar, queria fazer qualquer coisa, mas meu corpo se recusava a obedecer. Fiquei ali, flutuando, imóvel. O medo era absoluto, como se algo dentro de mim tivesse se rendido a uma verdade antiga e imutável: eu não era mais um predador.
O OLHAR DO ABISMO
Eu o observava. Ele me observava.
[Frágil. Fraco. Pequeno. Presa fácil]
A fera movia-se ao meu redor, circulando-me como um juiz prestes a dar seu veredito. Eu podia ver as cicatrizes em sua pele cinzenta, marcas de batalhas que não faziam parte do meu mundo. Ele vivia em um reino onde apenas a força importava, a fome era lei e o medo não tinha valor.
E eu? Eu era um intruso, um ser sem presas, sem garras, sem armadura. Apenas carne e osso, perdido em um ambiente que não era meu.
O OLHAR DO TUBARÃO
O tubarão sentiu meu cheiro na água, tenho certeza. Não era o cheiro do sangue, da luta ou do desespero - era algo bem mais profundo. Algo primitivo.
[Eu conheço esse cheiro. O cheiro da rendição. O cheiro da presa que sabe que já perdeu]
Seus ancestrais já haviam sentido esse mesmo medo antes, nos olhos de criaturas que andavam sobre quatro patas, muito antes de nós, os humanos, existirmos. Ele reconhecia aquilo como um instinto antigo, uma fraqueza gravada na carne há milênios.
[Eles se julgam senhores da Terra, mas aqui, na água, voltam a ser o que sempre foram: frágeis. Nus. Desarmados]
Mas aquele tubarão não estava com fome. Ele não precisava desperdiçar energia atacando algo que não era sua presa natural. Então, simplesmente passou por mim.
Eu senti a corrente de seu movimento na água puxando meu corpo como se me avisasse:
[Hoje, você vive. Mas nunca se esqueça]
Continuei ali, imóvel, enquanto ele desaparecia nas profundezas.
O QUE SOBROU DE MIM
Quando finalmente consegui me mover, nadei de volta à praia com todas as forças que me restavam. Meus pulmões queimavam, meu coração parecia prestes a explodir.
Ao pisar na areia, caí de joelhos, ofegante. Olhei para o horizonte, tentando encontrar o tubarão novamente, mas ele já havia partido. E ali, sozinho na praia, entendi algo que nunca mais esqueceria: não somos os donos de nada, apenas acreditamos ser.