Os Olhos dos Cães
Os Olhos dos Cães
A aldeia de Veredópolis repousava entre campos imensos e árvores que pareciam nunca se mover. Durante o dia, o céu refletia uma serenidade inquietante, um azul liso, imenso. Mas era ao cair da noite que algo perturbador tomava forma—quando os cães começavam a uivar para o horizonte distante.
No começo, ninguém ligou. Achavam que eram apenas os animais sentindo o cheiro do vento, ou algum predador invisível rondando à distância. Mas logo ficou claro que não eram simples latidos. Era como se os cães estivessem reagindo a algo além do nosso alcance, algo que observavam com olhos fixos, trêmulos, e que apenas eles podiam perceber.
O velho mestre Elias, o homem mais sábio da aldeia, advertiu àqueles que quisessem ouvir:
— Eles estão vendo o que nós não devemos.
Mas suas palavras foram ignoradas, até que os cães começaram a desaparecer.
Primeiro, foi o robusto Max, o rottweiler da família Almeida. Então, foi o pequeno Pingo, que costumava brincar pelos campos. Cada um deles foi embora sem deixar vestígios. Nenhuma pegada, nenhum vestígio de luta. Apenas um silêncio pesado, uma ausência que começou a se infiltrar nas paredes da aldeia.
Então, as noites passaram a ser infestadas por sonhos estranhos.
Homens e mulheres da aldeia começaram a sonhar com campos infinitos, onde cães corriam freneticamente, como se fossem perseguidos por algo que não se podia ver, mas que fazia o chão tremer. O céu acima deles se rasgava, e o ar ficava denso, como se o próprio espaço estivesse sendo dilacerado. No horizonte, algo chamava, algo sem nome. Um vazio eterno, uma linha invisível que nunca chegava.
As pessoas acordavam desses sonhos sentindo um peso. Algo se desprendia de suas almas, como se ainda estivessem correndo com os cães, fugindo de algo que ainda os aguardava.
Na noite seguinte, as pessoas começaram a desaparecer.
A esposa do ferreiro sumiu enquanto buscava lenha. O comerciante que vendia pães não retornou de sua pequena loja. Era como se a terra os tivesse engolido, e ninguém sabia onde procurar.
O pânico tomou conta da aldeia. Todos se trancaram em suas casas, mas sabiam que, quando a noite chegasse, alguém mais se perderia, e o número de vazios aumentaria.
E então, restou apenas um.
O velho mestre Elias, agora um homem consumido pela dor e pelo conhecimento, acordou uma madrugada, arrepiado pelo som do vento. Ele se levantou e saiu, como se guiado por algo além de sua compreensão. Quando cruzou a porta de sua casa, viu o que restara da aldeia.
As ruas estavam vazias, as casas sem movimento, as janelas negras como olhos de um monstro adormecido.
E então ele os viu.
Cães.
Centenas deles, imóveis, parados no topo da colina que levava ao horizonte. Seus olhos refletiam o vazio à frente, sem medo, sem raiva, apenas uma quietude mortal. Eles não uivavam. Não corriam. Não se moviam. Apenas observavam, em total silêncio.
No horizonte, uma linha tênue de luz surgia, fraca, como se o próprio tempo estivesse se curvando ali. Algo estava chegando. E todos os cães sabiam.
Mestre Elias olhou para o vazio à sua frente e, pela primeira vez, entendeu. O horizonte não era um lugar. Era uma espera.
E eles estavam aguardando.