O demônio e o padre
- Tem certeza de que isso não é normal nela não? – perguntou um homem, de braços cruzados. Estava de regatas e bermuda Tactel, debaixo do batente de uma porta. Logo atrás de si, estava uma mulher cinquentenária, com um vestido já parcialmente desgastado e chinelos.
- É sério, Lucas? – a voz da mulher e o seu afastar do local, dando-lhe as costas, fez com que o rapaz entendesse o que havia acabado de dizer
- Desculpa, Bete, mas é que... a idade dela. Não é normal fazerem isso não? – Lucas seguiu a mulher
- Lucas... é sério que você acha que isso é NORMAL? – perguntou Bete, enfatizando o “normal”, enquanto apontava para o interior do quarto com o braço direito
Dentro do quarto, uma garota de dez anos, com cabelos castanhos e encaracolados, vestindo pijama, estava curvada sobre a cama, sobre os pés e as mãos, com a cabeça para baixo e a barriga para cima. Os braços e as pernas estavam amarrados nas pernas da cama.
Lucas tentou responder, sob o olhar fuzilante de Bete, mas nada saiu de sua boca.
- Eu vou matar todos vocês! – disse a garota, com uma voz grossa e masculinizada
- Aí... é típico de pré-adolescente. É gracinha deles. Qual pré-adolescente não quis exterminar todo mundo que conhecia?
Bete ainda fuzilava o vizinho com o olhar.
- Ela está com uma voz masculina!
- Mas não é assim que fica a voz quando entram na puberdade?
- Meu Deus, Lucas! Você nunca conversou com uma garota não? – perguntou Bete, com a voz tão alta e ríspida que ecoou por todos os cantos
Lucas ficou sem graça.
- HÁ HÁ HÁ! – disse a garota, deitada normalmente na cama – Expôs o virjão punheteiro!
- Falou o demônio, que só entra em corpo de menina pré-adolescente! Seu pedófilo!
Agora foi a vez da garota ficar irritada.
- Eu não sou pedófilo! – disse o demônio, completamente tomado pela raiva, a ponto de piscar as luzes da casa – Olha só como fala de mim!
- Eeeeeei! – chiou a mãe – Apaga essas luzes. Você acha que eu sou sócia da CEMIG?
O demônio voltou a rir.
- Então, me deixem em paz senão eu acendo todas as luzes! - em seguida, bateu violentamente a porta na cara dos dois adultos
- Aí... lá vai ele ficar sozinho com o corpo de uma criança! – disse Lucas
- O QUE ESTÁ INSINUANDO COM ISSO? – a voz grave do ser diabólico fez tremer as paredes da casa
- Para de irritá-lo! – disse Bete, calma, dando uma cotovelada no vizinho. Os dois distanciavam da porta do quarto. Sentou-se à mesa da sala adjacente ao quarto. – O que faremos agora?
- Faremos? – perguntou Lucas, se distanciando da mesa – Você eu não sei, mas eu não farei nada. Vou voltar para minha casa que é mais seguro!
- Se voltar para sua casa, eu conto para todo mundo que você bate punheta para desenhos animados! – Bete levantou-se da cadeira, com dedo em riste, apontando-o para Lucas
- Eu tenho mais medo de você do que dele, sabia? – disse Lucas, enquanto se sentava, cabisbaixo
- Sem reclamações! – disse a mãe, sentando-se novamente na cadeira
- Eu tenho um amigo padre. Ele estudou comigo no colégio antes de fazer seminário. Eu ainda tenho o telefone dele. Se quiser, eu posso ligar para ele.
- E por que ainda não fez isso? – Bete perguntou, sem nenhuma paciência
- Meu Deus! Que mulher grossa! – disse Lucas, enquanto retirava o smartphone do bolso. Desbloqueou a tela, apertou alguns aplicativos e números e, enquanto ligava para alguém, levou o aparelho ao ouvido
- Padre Eustáquio! Há quanto tempo! Precisamos que você faça um exorcismo para mim!
- Porra, Lucas! Caralho! Estou no meio de uma missa e você vem com trote! Idiota dos Infernos! – e o padre desligou o telefone
Bete e Lucas ficaram em absoluta mudez, em virtude do choque.
- Não se fazem mais padres como antigamente! – disse a mãe, ainda em choque
Tempos depois, Bete havia conseguido uma indicação de um padre via Classificados do Facebook, através de uma pessoa desconhecida. O interfone da casa tocou e Bete o atendeu.
Um homem de mais de dois metros de altura, bastante espadaúdo, vestindo trajes de padre, entrou na casa.
- Boa tarde a todos! – disse o padre, de forma gentil e acolhedora
- Padre Marcelo Ros...?! – dizia Lucas, até ser interrompido por uma cotovelada de Bete
- Onde ela está? – perguntou o padre
- Padre Matheus! – disse Bete, de forma tão acolhedora quanto o padre – Minha filha está no quarto! Atrás daquela porta! Vamos, eu lhe acompanho!
O padre caminhou, junto de Lucas e Bete, até a porta do quarto. O padre a abriu e, em seguida, entrou no local.
Ao ver o padre adentrando na porta, com todos os seus músculos e altura suficiente para obrigá-lo a se reclinar, para entrar, o demônio entrou em desespero.
O demônio desvencilha da garota e afasta dela. De repente, a garota, se soltando das amarras que lhe prendia na cama, segura o demônio à força.
- Deixa de ser covarde! – disse a garota - Volta aqui! – e o puxou de volta para dentro do próprio corpo
Assustado e acuado, o demônio ficou encostado na parede oposta da porta do quarto.
- Você gosta de academia, hein? – perguntou o demônio, obrigado a permanecer no corpo da criança
- Eu vou tirá-lo daí à força! – disse o padre, estralando os punhos
- Eu sei! Por que você acha que eu estou fugindo? – o corpo da garota mergulhava no próprio suor
- Precisamos detê-la novamente na cama. Eu vou segurá-la e vocês a amarram! – disse o padre, indo em direção à garota.
Ao avançar sobre a garota, esta desviou de si e correu para fora do quarto. Lucas parou defronte à criança, para evitar a fuga. O demônio vomitou um líquido verde no rosto do rapaz, que ficou enojado. Aproveitando-se da distração momentânea, o demônio ultrapassou Lucas.
- É sério isso? Não tá manjado não? Parece que demônio só tem esse poder!
Em uma fração de segundos, Lucas quicou no teto do quarto e voltou.
- Eu e minha boca grande! – disse, quase desmaiado no chão
A garota saiu correndo pelo interior da sala adjacente ao quarto.
- Laura! – gritou Bete, enquanto corria atrás da própria filha
O padre ajudou Lucas a se levantar e, com este ainda mergulhado no vômito esverdeado, correu atrás da garota.
Esta, rápida, correu pela sala, adentrou em um longo corredor, ultrapassou a copa no lado oposto e chegou à cozinha da casa. Lá, ficou encostada na parede avessa à porta de entrada. Mergulhada no suor, ofegava.
Lucas e o padre chegaram à cozinha.
- Peraí! – disse o demônio, entre os respiros – Eu estou num corpo de criança! É sacanagem!
- Quem mandou agir como um pedófilo? – perguntou Lucas
- EU JÁ DISSE QUE NÃO SOU PEDÓFILO! – esbravejou o demônio, fazendo as luzes de toda a casa piscarem
- Ahhhh! Minha conta de luz! – chorou Bete, aos quatro cantos
- O que você quer aqui? – perguntou o padre
- O que você acha que eu quero? Eu quero trazer dominar a Terra, trazer o caos para cá...
- E aí você decidiu entrar no corpo de uma criança pré-adolescente no interior de Minas, numa cidade que nem aparece nos mapas? – perguntou Lucas. O demônio ficou pensativo. - Ao invés de, sei lá, entrar no corpo do Presidente dos EUA, da Rússia...?
- Esses já estavam ocupados!
- Faz sentido...
- Isso não importa – disse o padre, ainda sério – O que importa é que você sairá desse corpo... nem que seja à força!
O demônio engoliu em seco. Tentou passar por Lucas, mas este o cercou com o corpo. O demônio o jogou no teto, com toda a força e fugiu. Lucas caiu em seguida, com o corpo todo doendo.
- Você deixou ele fugir novamente! – reclamou o padre, correndo atrás do demônio
- Desculpa se eu estava sendo quicado no teto! – disse Lucas, ainda no chão
- Sem desculpas! Levante-se logo daí e vem me ajudar!
Bete chegou perto de Lucas e ajoelhou ao seu lado.
- Você está bem?
- E... Estou! – disse o rapaz, se levantando, com pouco de dificuldade – Só vou ter que passar na UPA depois!
- Que isso... – disse Bete, rindo – Você está ótimo! – e deu-lhe dois tapinhas nas costas
- É sério? – perguntou Lucas. Ao contrário da mulher, ele estava sério. Mostrou-lhe a mão esquerda. O dedo mínimo estava virado a 90º à esquerda e o anelar, com a pele cortada em tiras, escorregando sangue.
- Meu Deus! – exclamou, preocupada – Eu tenho um xarope ali na estante. Vou pegar para você! – e postou-se a ir em direção ao cômodo
- Xarope? É sério? – a pergunta seca de Lucas a fez parar.
- Um chá de boldo então?
O rapaz respirou fundo.
- Deus, dai-me paciência!
De repente, um estrondo ecoou pela casa.
- O QUE FOI ISSO? – perguntaram os dois, em uníssono
Enquanto isso, Padre Matheus corria atrás do demônio pela casa. Chegou na entrada da sala oposta à cozinha. Ali, à sua direita, havia uma porta. Abriu-a. Um quarto de casal apareceu à frente do padre, mas não havia nem sinal da garota.
- Cadê você, demônio? Você sabe que eu vou te expulsar do corpo dessa garota... custe o que custar!
Silêncio absoluto. Procurou pelo quarto, em cada canto. Procurou debaixo da cama, no guarda-roupa, dentro da cômoda. Não encontrou nada.
- Eu sei que você está neste quarto. Eu sinto o seu cheiro. O pútrido cheiro do lugar onde você veio!
“Garotinha dos Infernos! Podia ter tomado um banho, né?”, pensou o demônio, ainda dentro do corpo da garota. Encontrava-se atrás da cômoda, a parte oposta à da porta. Repentinamente, sua alma apareceu ao lado do próprio corpo e lhe desferiu um tapa no rosto.
“Olha como fala de mim!”, reclamou, antes de desaparecer
“Que criança assustadora!”, pensou, aterrorizado. “Como vou fugir daqui?”
- Você não vai sair, né? – perguntou o padre. – Pois eu vou lhe achar, demônio. Nem que seja a última coisa que eu faça!
O padre abraçou o guarda-roupa. Em seguida, contraiu os braços, enquanto fazia força. Em poucos segundos, o móvel se tornou um amontoado de ripas de madeira e roupas de mulher madura.
O demônio quase deixou escapar um grito de susto quando fitou a cena. Suava e arfava no esconderijo.
- Aqui você não está! – disse o padre – Vejamos agora na sapateira! – Padre Matheus caminhou até um móvel multiuso de madeira, adjacente a si
De repente, Lucas e Bete entram desesperados no quarto.
- Que barulho foi esse? – Ouvimos um estrondo. – Você caiu? – Você machucou? – os dois intrusos falavam atropeladamente, um sobre a fala do outro – O que acontec..... AHHHHHHH! – gritou Bete, um grito agudo o suficiente para assustar todos os demais – POR QUE O GUARDA-ROUPA ESTÁ ASSIM?!
- Mulher... – reclamou Lucas, com as mãos nos ouvidos – Eu estou do seu lado!
Aproveitando a situação, o demônio saiu correndo. Passou perto das pernas de Lucas, que as afastou para o ser passar.
- Você deixou ele fugir! – reclamou o padre
- Lógico! Senão, ele me joga no teto! – disse Lucas
- Se você deixá-lo fugir novamente, quem vai te jogar no teto sou eu! – disse o padre, em tom ameaçador
- Tá... tá... desculpa! – disse Lucas, quase não se aguentando sobre as pernas trêmulas
- Agora, vamos! – disse o padre, puxando Lucas consigo. Enquanto isso, Bete continuava paralisada fitando o guarda-roupa desmontado
O padre e Lucas voltaram a correr no corredor. Na cozinha, à frente, contudo, em dado momento um latido bravo irrompeu o silêncio. Em seguida, um grito do demônio.
- O que...? – perguntou Lucas
- Um cachorro? – perguntou Padre Matheus
Os homens chegaram à cozinha. Viram o demônio no chão, com o tornozelo quebrado. Um pequeno Pinscher pulava no rosto da criança para brincar.
- O que está acontecendo aqui? – perguntou o padre, surpreso com a cena
- Um cachorrinho – disse Lucas. O rapaz chamou o pequeno cachorro e ele veio ao seu colo. Distanciou-o do corpo – É macho!
- É seu?
- Não! Nunca nem vi antes!
- É dela?
- Que eu saiba, ela não tem cachorro! – pausou por um instante – E cadê o demônio?
- No chão. Parece que o cachorro deu um jeito nele!
Lucas fitou o demônio. Gritou em choque quando viu a fratura exposta na perna da garota. Enquanto isso, o demônio se rastejava pelo chão. O padre caminhou até ele e, com facilidade, o levantou do chão.
- Me solta! – gritou o demônio, irritado
- Agora é hora de você se soltar desse corpo e deixar a garota em paz!
Para surpresa de ambos, o demônio riu.
- Qual a graça? – perguntou o padre
- Você acha que se fizer um exorcismo, o corpo dessa garotinha aguentará?
O padre ficou em silêncio. O lugar foi dominado pela risada do demônio.
- Isso aí. Não adianta. Você nunca conseguirá me tirar do corpo dessa garotinha!
- Padre... – disse Lucas, chamando a atenção do padre para si – Dá para transferir o demônio de um corpo para o outro?
- Sim, mas precisaria ser um invólucro que não colocasse a humanidade em risco.
- Eu tenho um plano!
- Sou todo ouvidos!
Vinte minutos depois, o demônio estava dentro do corpo do pequeno cachorro, transformando-o de uma criatura anteriormente dócil para um ser raivoso.
E dizem que assim nasceu a lenda da fúria do Pinscher...