Os Que Rastejam Entre os Canais
Os Que Rastejam Entre os Canais
O primeiro corpo apareceu boiando no canal na manhã de segunda-feira. Sem olhos, sem língua, a pele esticada como se tivesse sido drenada de dentro para fora. Os pescadores chamaram a polícia, mas os oficiais apenas balançaram a cabeça.
“Mais um.”
Nos últimos meses, Veneza vinha expelindo corpos sem explicação. Turistas desapareciam, gondoleiros nunca voltavam para casa, e as águas escuras engoliam seus nomes sem eco.
Mas ninguém falava sobre os sussurros.
Ninguém admitia ouvi-los, aqueles estalos líquidos na escuridão, o murmúrio molhado que parecia sair das próprias pedras, das gôndolas vazias que balançavam sem remadores.
Luca, um jovem estudante de arquitetura, foi o primeiro a ver.
Ele passava pela Ponte degli Scalzi quando o reflexo se revelou.
Algo estava debaixo da água.
Não era um peixe, nem um corpo. Era... algo maior, movendo-se com um propósito inumano. Tentáculos? Não. Dedos. Muitos dedos. Pequenos e brancos, como se estivessem pedindo para serem puxados para fora.
Ele piscou. O canal estava vazio.
Mas o sussurro começou.
Naquela noite, Luca sonhou com Veneza antes de Veneza.
Ele viu as fundações sendo erguidas, não por mãos humanas, mas por formas pálidas que se arrastavam na lama, construindo uma cidade para algo adormecido. Ele viu os primeiros venezianos chegarem, erguendo igrejas e palácios sobre um terreno que não lhes pertencia.
E viu os sussurrantes rastejando entre os canais, esperando o momento de retomar o que era deles.
Quando Luca acordou, sua janela estava aberta, e sua boca estava cheia de água salgada.
Ele não dormiu mais.
Na sexta-feira, os canais transbordaram.
As águas subiram, escuras como petróleo, e os sussurros tornaram-se vozes. Não vinham do vento, nem das ondas. Vinham debaixo das ruas, das casas, das sombras entre as pedras molhadas.
Os turistas foram os primeiros a sumir.
Depois, os policiais.
Depois, ninguém mais tentou fugir.
Veneza continua lá.
Os turistas ainda chegam.
Mas se você ouvir bem, à noite, entre os canais vazios, pode escutar algo se mexendo.
Rastejando.
Esperando.