O Eco das Sombras - CLTS 30
Em um vilarejo no interior de Minas Gerais, resistia uma lenda que pairava sobre as montanhas que cercavam a cidade.
Santa Helena do Vale, um lugar de ruas de terra batida e casas de madeira envelhecida, era marcada por histórias misteriosas que pareciam se entrelaçar com a neblina densa e o som das folhas secas ao vento. A região, cheia de serras e vales ocultos, escondia segredos que o tempo parecia querer apagar, mas que, para os mais velhos, nunca desapareceriam.
Desde criança, Pedro sempre teve uma curiosidade insaciável sobre o desconhecido. Ele cresceu ouvindo as histórias fantásticas contadas sobre criaturas lendárias, monstros e seres misteriosos que habitavam o mundo das sombras e da noite. Seu interesse, no entanto, não se limitava a fantasias e contos de terror. Pedro se formou em biologia e se tornou um entusiasta da criptozoologia, o estudo de seres míticos e desconhecidos. Ele acreditava que, por trás das lendas, existia alguma verdade científica que poderia ser descoberta, algum mistério biológico aguardando ser desvendado.
O que mais lhe fascinava eram as histórias sobre criaturas que não pertenciam a nenhum catálogo zoológico, seres que pareciam desaparecer nas sombras, como se a própria natureza tivesse criado seres à parte, à margem da realidade que os humanos conheciam. Durante anos, ele leu sobre essas criaturas, visitou locais que haviam sido cenários de avistamentos e, por fim, sua pesquisa o levou até o interior de Minas Gerais, onde o antigo vilarejo de Santa Helena do Vale possuía notícias sobre uma criatura sombria chamada A Sombra das Montanhas.
Dizia-se que essa criatura não era um animal comum, mas uma entidade ancestral, uma mistura entre homem e besta, com pelagem escura e olhos vermelhos que brilhavam no escuro. Contavam também que a criatura se alimentava das energias vitais de quem ousava se aproximar demais de seu território, e que seus rastros podiam ser vistos nas sombras, como uma presença sinistra, observando de longe. As histórias variavam, mas todas tinham um ponto em comum: ninguém jamais havia conseguido ver a criatura de perto e sobreviver para contar a história.
Ao chegar em Santa Helena do Vale, Pedro procurou Elias, o homem mais velho da vila.
Elias, já com mais de noventa anos, era conhecido como o guardião das histórias antigas. Suas palavras, embora já roucas e com a marca do tempo, eram respeitadas por todos os habitantes da região. Era ele quem sabia tudo sobre o passado, sobre as lendas, e sobre as coisas que haviam acontecido e, por vezes, sido esquecidas.
Elias o recebeu com um olhar que parecia atravessar os anos, como se visse mais do que um simples jovem curioso. Quando Pedro mencionou A Sombra das Montanhas, o velho apenas sorriu tristemente, como se conhecesse o destino do rapaz antes mesmo que ele tivesse começado sua busca.
"Você vai atrás das sombras, moço?", perguntou Elias, com sua voz baixa, tremida pela idade. "Essas criaturas não gostam de serem encontradas. E mais, não são para os olhos dos homens. Elas têm um poder que vai além da nossa compreensão."
Pedro, no entanto, não acreditava nas histórias. Ele não era mais uma criança impressionável, e seu desejo de provar que as lendas eram baseadas em algo real e científico falava mais alto do que qualquer advertência. Ele estava ali para encontrar respostas, para documentar e revelar ao mundo a verdade por trás das lendas.
E assim, na noite seguinte, ele se embrenhou na floresta, com equipamentos de última geração — câmeras infravermelhas, microfones sensíveis e lanternas de alta potência. A lua estava escondida atrás de nuvens espessas, e o ar estava frio e úmido, carregado com o cheiro de terra molhada e folhas em decomposição. A floresta parecia respirar com ele, como se estivesse viva e consciente de sua presença. O som da natureza estava em suspensão, os próprios animais da floresta pareciam ter sentido a chegada de algo anômalo.
Pedro se dirigiu até a clareira que havia sido mencionada nos relatos antigos. Uma grande área de grama alta e árvores densas, onde se dizia que a criatura aparecia nas noites mais escuras. Ele armou sua câmera sobre um tripé e, com um suspiro profundo, ligou o gravador de áudio, começando sua investigação. O ambiente estava silencioso demais, o tipo de silêncio que se sente nos ossos, como se o próprio espaço estivesse aguardando algo acontecer.
Ele observava atentamente à sua volta, cada sombra se movia de maneira estranha, desobedientes ao vento, como se ele não fosse o único responsável por aquelas flutuações. O som da natureza havia cessado completamente, e uma sensação de inquietação se espalhou por seu corpo, igual à da presa esperando para ser detectada.
Foi então que ouviu. Um som profundo, distante, mas inconfundível. Era um rugido gutural vindo das profundezas da terra. Pedro se ergueu imediatamente, seus sentidos aguçados em busca da origem daquele som. Não era um animal qualquer. Era algo muito maior, mais imponente, mais ameaçador. Ele olhou para todos os lados, mas a escuridão tornava difícil enxergar mais do que alguns metros à sua frente.
Súbito, ele a viu. Uma sombra se movendo lentamente entre as árvores. Uma figura alta, com pelagem espessa e escura, que parecia absorver quaisquer traço de luz ao seu redor. Seus olhos, brilhando com um tom vermelho profundo, refletiam a pouca claridade da lanterna de Pedro, e se fixavam no jovem. A criatura não fez nenhum som, mas sua presença foi suficiente para paralisar o jovem.
Pedro sentiu um arrepio profundo em sua espinha. O medo o envolveu, mas sua curiosidade era ainda mais forte. Ele queria documentar a criatura, queria filmá-la, queria provas concretas de que aquilo não era apenas um mito. Mas a criatura ciente de sua intenção, talvez capaz de ler seus pensamentos, intensificou o brilho dos seus olhos de uma forma jamais vista. O tempo parecia desacelerar, e o som da floresta, antes tão presente, desapareceu completamente.
Durante um período considerável, ambos não se movimentaram numa espécie de brincadeira nefasta, embora o que fosse intencional para a criatura , não o era a Pedro, pois até seus pensamentos imobilizaram-se naquela expectativa de presa e predador.
Nesse jogo terrível, a criatura se aproximou com graça sobrenatural, deslizando entre as árvores com uma agilidade impressionante. Pedro, ainda sem saber o que fazer, tentou se afastar, mas suas pernas estavam firmes no chão. Cada passo dificultoso que dava para trás parecia ser acompanhado por outro da criatura, até que ela estava a poucos metros de distância.
O rosnado que a coisa emitiu foi baixo, quase imperceptível, mas Pedro pôde sentir a vibração daquilo em seu peito. A criatura se agachou, estudando-o com uma atenção implacável, como se estivesse decidindo se o mataria ou o deixaria partir. Pedro não conseguia mover-se, a ansiedade e o medo o impediam de fazer qualquer coisa. Ele pensou em correr, mas sentia que, se o fizesse, seria tarde demais.
A criatura avançou mais um passo, e foi então que Pedro, recobrando um mínimo de vontade, num impulso de preservação inata, conseguiu tomar controle de seu corpo. Ele correu sem olhar para trás, o som de seus passos apressados misturado com os barulhos das folhas esmagadas sob seus pés. Ele sentia a criatura atrás dele, como uma sombra, implacável e silenciosa, mas, ao mesmo tempo, parecia que a escuridão à sua volta havia ganhado vida própria, distorcendo-se, se moldando em formas grotescas que o seguiam muito próximas.
Quando finalmente chegou à aldeia, sua respiração estava ofegante, e sua mente não conseguia processar o que havia vivido. As ruas estavam desertas, o silêncio era pesado e, de alguma forma, ainda mais ameaçador. Pedro correu para sua hospedagem, trancando todas as portas e janelas, com a sensação de que algo estava observando-o, mesmo que ele estivesse protegido dentro de seu refúgio. E ali ele ficou até amanhecer em completo pânico.
No dia seguinte, Elias apareceu à sua porta. Ao olhar para Pedro, o velho entendeu todo o ocorrido. Ele sabia.
"Eu te avisei", disse o homem com tom pesaroso. "Essas coisas não são para serem vistas. Elas estão além da compreensão humana. E o pior, moço, é que o que você viu não foi uma exceção. O que você encontrou... está sempre lá, esperando. Como uma sombra, ela te seguirá para onde você for. E se não te devorou ainda, é por pura maldade, está brincado com você, mas não se engane, seu destino está traçado". Com essas terríveis palavras, o velho se foi.
Pedro nunca mais voltou às montanhas. O que ele havia visto naquela noite o marcou para sempre. As lendas, antes apenas histórias, agora eram uma verdade cruel e incompreensível. Ele tentou falar sobre sua experiência, mas as palavras nunca foram suficientes para descrever o que havia vivido. Ele sabia que algo mais estava escondido naquela floresta, algo que não poderia ser explicado, algo que pertencente a uma realidade que estava além do que os olhos humanos poderiam perceber.
A criptozoologia, para Pedro, nunca mais foi uma ciência. Tornou-se um aviso, uma advertência sobre os limites da curiosidade humana. E, a cada noite, em cada sombra que cruzava seu caminho, Pedro sentia a presença daquela criatura, esperando, pacientemente, para reivindicar o que, em sua ignorância, ele havia ousado buscar.
Pedro sentia-se morto, apenas aguardava o golpe final. E isso o aterrorizava mais que qualquer coisa, o não saber quando.
Tema: Criptozoologia