COMEÇO, MEIO E FIM — CLTS 30.
By: Johnathan King
1
À medida que o relógio do progresso avançava firmemente para a era vitoriana, a sociedade se viu enredada em uma teia complexa de moralidade, lei e a busca pelo esclarecimento científico. Este foi um tempo marcado por contrastes acentuados — um período de 1837 e 1901 no qual o brilho verniz da propriedade mascarava uma fascinação mórbida pelo crime e pelo macabro.
Nas vielas mal iluminadas de Londres, onde o nevoeiro parecia quase cúmplice em encobrir atos de vilania, um novo tipo de crime emergiu. Nomes infames como Jack, o Estripador, tornaram-se sinônimos de terror, e seus atos hediondos lançaram longas sombras sobre as ruas de paralelepípedos. Mas além dos jornais sensacionalistas da época, uma forma mais sistêmica de horror se desenrolava nas sufocantes e estéreis paredes das fábricas britânicas: a exploração do trabalho infantil.
Os sinos das fábricas eoavam antes do sol nascer, chamando pequenos trabalhadores para mais um dia de exaustão. As ruas da cidade de Londres eram povoadas por crianças de pés descalços, roupas sujas e olhos fundos, ainda pesados pelo sono interrompido. Para esses pequenos, a ideia de infância era quase nula, brincar era um privilégio remoto e estudar era um sonho inatingível.
As fábricas que surgiam como cogumelos nos centros urbanos exigiam um exército de operários que não questionassem ordens e aceitassem salários miseráveis. E ninguém se encaixava melhor nesse perfil do que as crianças. Seus pequenos corpos passavam facilmente por entre as engrenagens das máquinas; suas mãos ágeis realizavam tarefas minuciosas que um adulto não conseguiria e acima de tudo, elas eram "mão de obra barata", ou melhor, quase gratuita.
Em Hendon, uma das várias fábricas de exploração infantil se sobressaía em meio a outras devido ao seu modo único de comercializar; tratava-se da "Casa de Doces de Peter Grã-Belt", um indivíduo reconhecido como um dos alicerces da sociedade londrina e um filantropo de grande generosidade. Lá, as crianças não eram meros colaboradores assalariados, mas órfãos recebidos pelo próprio Grã-Belt e que labutavam para custear sua alimentação e descanso; um pedaço de pão envelhecido com um copo de chá ralo, e um colchão duro e cheio de traças lançado no chão que servia como cama.
Mas essa realidade nefasta permanecia oculta pelo véu da hipocrisia durante a era vitoriana, um período em que a propriedade e as aparências muitas vezes ocultavam o lado mais sombrio da sociedade.
Dentro de uma enorme cozinha industrial quente e abafada, onde o cheiro adocicado de açúcar queimado se misturava ao suor e a poeira do chocolate, Little John se destacava diante das outras crianças. Determinado e justo, enfrentava de igual para igual o próprio Grã-Belt quando era para defender algum dos seus companheiros mirins de sofrerem punição do seu "benfeitor", sabendo que muitas das vezes ele sofreria o castigo por seu comportamento rebelde.
Grã-Belt se aproximou de Little John e o menino sentiu o rosto primeiro esquentar e depois sangrar. Havia levado um soco que o fez sentir uma onda de náusea e adrenalina antes do seu corpo tombar no chão com força.
— Vai haver consequências, não vai? — perguntou o garoto com um sorriso desafiador no rosto. — Como podemos imaginar que não haveria?
— Vai ficar no "quartinho da meditação" sem água e sem comida pelos próximos dias, até refletir sobre suas ações, garoto insolente.
— Nunca vai conseguir nada com isso, seu tirano maldito! Vou continuar enfrentando você para proteger meus amigos. Não vai apagar a chama de liberdade que queima no meu peito, Grã-Belt!
— Eles também vão partilhar do seu castigo, sem comida e sem água.
— Você não pode fazer isso com eles, seu maldito, castigue apenas a mim.
— Não! Eles também! Assim eu consigo quebrar o seu espírito rebelde, criança!
As outras crianças ouviram a sentença inconformadas, mas sem poderem fazer absolutamente nada para remediar a situação. No entanto, uma delas, um menino chamado Drako, olhava satisfeito enquanto Grã-Belt levava Little John arrastado para o castigo.
Drako tinha a mesma idade de Little John, treze anos, e ambas eram as crianças mais velhas do lugar. Os dois vieram juntos na mesma época, com sete anos, das ruas sujas e violentas de Londres. Enquanto Little John manteve um espírito rebelde e indomável, Drako foi pelo caminho oposto do amigo; se mantendo mais próximo e fiel à Grã-Belt, delatando e entregando os companheiros para o tirano por qualquer falha que viessem a cometer.
Com o tempo, o garoto ganhou o posto de "supervisor" na fábrica, sendo os olhos do próprio Grã-Belt no trato e serviço com as crianças. Drako circulava com um chicote nas mãos, de maneira a intimidar os companheiros, sempre pronto para punir qualquer movimento fora do ritmo exigido.
— Grã-Belt adestrou você muito bem, Drako — disse Little John certa ocasião. — Está um cãozinho fiel, abana até o rabinho.
Todas as outras crianças riram.
— Calados, agora, ou eu vou chicotear cada um sem misericórdia — gritou Drako, tentando ser intimidador, o que só deixou a situação mais cômica. — Diferente de você, Little John, eu apenas estou tentando sobreviver nesse inferno. Deveria seguir o meu exemplo e ser obediente com um cãozinho também, vai ser melhor para você, meu amigo.
No fundo do seu coração, Drako tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua própria desgraça também. Era como um remédio.
O som ensurdecedor das máquinas produzindo doces ecoava sem pausa, como uma sinfonia mecânica da opressão. Era esse o ambiente onde Little John e seus companheiros mirins passavam até dezesseis horas do dia, com apenas um breve intervalo para engolir um pedaço de pão duro e um gole de água morna.
2
Durante a madrugada, Drako observava escondido atrás de uma parede uma das crianças se aproximando calmamente da cozinha, esperando para ver se ela entraria no cômodo. E ela entrou. O coração dele acelerou, e ele se encheu de indignação.
— Então é assim que você paga a bondade de Grã-Belt, roubando ele, seu ladrãozinho safado?
A criança era um garoto de mais ou menos uns sete anos, com uma expressão assustada. Ele ficou gaguejando, tentando encontrar palavras para se defender, mas o medo tomou conta de seu corpo trêmulo. Tentou fugir, sendo agarrado com força pelo garoto maior.
— Não vai fugir!
Little John surgiu com uma barra de ferro e gritou:
— Solta ele, ou eu juro que parto a sua cabeça com esse pedaço de ferro, seu maldito. Eu não estou brincando, Drako!
Ele soltou o garotinho, meio contrariado.
— Grã-Belt vai matar você dessa vez.
— É, até pode ser.
— O que o Grã-Belt vai fazer comigo, Little John? — perguntou o garotinho, completamente assustado. — Eu não quero ir para o "quartinho da meditação", por favor.
A voz de Little John sumira quase completamente.
O "quartinho da meditação" criado por Grã-Belt para castigar as crianças que escapavam das suas rédias, era um cubículo escuro e fedido, onde os pequenos dividiam o espaço com ratos e baratas por dias; muitas vezes sem água e alimentação. Era um inferno dentro de outro inferno. Muitas das crianças voltavam de lá com seus espíritos destruídos. E também aconteciam abusos físicos e sexuais, por isso o temor delas irem parar naquele lugar era justificado.
— Fuja para o bosque, eu dou um jeito de encontrar você depois.
Drako fez uma careta de espanto.
— Ficou maluco? Esqueceu da fera que mora no bosque?
— Não existe fera nenhuma, é apenas uma lenda idiota criada para assustar crianças desobedientes.
— Tudo bem, Little John, acredito em você! — disse o pequeno, correndo em direção ao bosque.
— Ele não vai escapar — disse Drako.
— Cala a sua maldita boca — Little John acertou uma bofetada em Drako, jogando-o no chão. — Fazia um bom tempo que queria fazer isso com você.
O rosto de Drako se encheu de uma fúria contida.
"Você me paga, Little John!", sussurrou o garoto.
3
Como se alguma espécie de demônio estivesse controlando o seu corpo, Grã-Belt pulou sobre Drako e apertou-lhe o pescoço com força.
— Como pôde deixar ele escapar, seu inútil? Me lembre de castigar você e aquele Little John quando voltarmos — disse ele. — Agora vamos atrás do fujão.
Little John observava tudo escondido atrás de uma parede. Viu quando Grã-Belt se aproximou de um cofre e tirou algo lá de dentro, e também viu a grande fortuna do bandido. Memorizou a combinação com a senha e deu um leve sorriso de satisfação.
Perfeito! — disse o garoto.
Na floresta, o pobre garotinho corria desesperado para salvar a sua vida. De repente, uma sombra grande e terrível o envolveu. Ele ergueu a vista e um grito ficou preso na garganta. Na frente dele, a silhueta da besta emergiu na névoa.
4
Little John acordou Pam e Willou, seus melhores amigos, e contou sobre o cofre e o tesouro de Grã-Belt.
— Eu descobri onde o maldito do Grã-Belt esconde a fortuna dele — disse o garoto. — Levantem logo desses colchões cheios de pulgas e vamos pegar o dinheiro.
— Pegar o dinheiro? Você quer dizer que vamos roubar o Grã-Belt? — perguntou Pam, assustada, os olhos querendo saltar das órbitas. — Ficou louco? Ele vai nos matar assim que nos pegar.
— Pam tem razão em se preocupar, Little John. — falou Willou. — Conhecendo Grã-Belt como conhecemos, sabemos muito bem do que ele é capaz de fazer com a gente se nos encontrar.
— Mas ele não vai nos encontrar, meus amigos, vamos fugir para bem longe de Londres com o tesouro, onde o Grã-Belt não consiga nos alcançar. — disse Little John.
— E as outras crianças? Vamos deixá-las para trás? — perguntou Pam.
— Não podemos fazer isso. — disse Willou.
Little John olhou ao redor, para as crianças que dormiam nos colchões sujos.
— Acorde elas, Pam, e mande que se escondam na velha igreja abandonada no final do bosque — disse Little John. — Você vem comigo, Willou, depois nos encontre no escritório do Grã-Belt, Pam, é lá que o maldito guarda o cofre com o tesouro.
Ela se aproximou de uma das crianças que dormia e bateu no seu ombro, dizendo:
— Vamos, acorde!
Little John percebeu um inesperado brilho de contentamento nos olhos da garota.
5
Little John parou na frente do cofre. Seu coração encheu-se de expectativa. Ele retirou um pedaço de papel do bolso com a combinação, com um sorriso, iluminando-lhe o rosto, o garoto fez as engrenagens do destino dele e dos companheiros girarem no momento em que viu o cofre abrindo-se.
— Conseguimos! — disse ele.
Pam gritou e sorriu.
— O tesouro.
— Quanto dinheiro e joias! — exclamou Willou, maravilhado com a visão.
— Vamos logo, coloquem tudo nos sacos, antes que o Grã-Belt volte. — falou Little John.
Uma voz assustadora soou próxima do trio. Virando-se, aterrorizados, eles viram a monstruosa figura do vilão.
— Não vão a lugar nenhum com o meu tesouro, ratos malditos!
Pam lançou para Little John um olhar de medo.
— Precisamos sair daqui. — disse ela.
— Sim, mas como? — perguntou Little John. — Grã-Belt bloqueou a saída.
Antes que pudessem pensar numa estratégia de fuga, o trio viu quando Drako empurrou Grã-Belt, que perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
— Fujam, agora! — gritou ele. — Vou segurar esse maldito até vocês terem ido.
Little John olhou para Drako, como se não conseguisse decidir se estava magoado ou preocupado com o garoto.
— Vê se não morre, seu grande idiota, você ainda é meu amigo. — disse ele, sumindo por um corredor sombrio, levando uma parte do tesouro de Grã-Belt.
6
Little John, Pam e Willou adentraram o bosque sombrio. A euforia inicial que os três sentiram com a possibilidade de pegarem o tesouro de Grã-Belt, aquela satisfação de vingança contra o vilão, se esvaiu rapidamente quando viram que não havia recompensa nenhuma com o sacrifício de Drako para ajudá-los a fugir. Por mais mal que o garoto pudesse ter feito para todos ao se aliar ao vilão, no fundo, também, todos sabiam que ele era só mais uma vítima no jogo nefasto de exploração infantil de Grã-Belt.
Pam e seu irmão Willou chegaram na "casa de doces de Grã-Belt" pouco tempo depois que Little John e Drako já estavam lá; ambos com seis e cinco anos, respectivamente, na época. Uma forte sintonia uniu as três crianças de imediato, e não demorou muito para se tornarem melhores amigas, despertando o ciúme e antipatia de Drako, que passou a nutrir um ressentimento enorme pelo trio.
Um silêncio desconfortável tomou conta do grupo, quando começaram a ouvir o som fraco de patas vindo de algum lugar no bosque.
— Cuidado, pode ser o Grã-Belt — disse Little John.
— Pode ser um lobo! — falou Willou.
— Não existem lobos na Inglaterra, Willou. — respondeu Pam.
— Então é "a fera do bosque Hendon!" — disse ele.
— Não existe fera nenhuma, Willou, o Little John só dizia essas coisas para assustar as outras crianças, não era verdade? — perguntou Pam.
Pam olhou para o rosto de Little John, que estava pálido e exultante, encarando algo na névoa branca que começava a serpentear pelo chão do bosque. Então, ela olhou na mesma direção que o garoto, e seus lábios se contraíram num misto de espanto e uma incredulidade. No mesmo instante, Willou soltou um grito de terror e se jogou no chão ao ver a fera que surgia em uma forma branca atravessando a neblina, bem diante dos seus olhos assustados. Era de fato um lobo, enorme e branco.
— Corram, agora! — gritou Little John.
Com grandes saltos, a enorme criatura branca percorria a trilha, seguindo os passos do trio, que tão paralisados de terror, se deixaram alcançar pelo monstro.
O coração de Little John e dos outros dois se encheu de medo. Eles olharam para a fera aterrorizados.
— Você disse ser só uma lenda — falou Pam, visivelmente assustada.
— Também achava isso — respondeu Little John.
A besta branca saltou sobre os três, atingindo-os com grande violência; Pam caiu nocauteada ao pé de uma árvore, enquanto seu irmão, Willou, foi jogado próximo de uma cratera, soltando um grito de dor. Mas a fera mirou mesmo a sua atenção em Little John.
— Vou matar você lentamente, garoto, por roubar o meu tesouro — disse a fera.
— Grã-Belt!? — exclamou Little John, incrédulo com a revelação.
A fera se jogou contra o garoto, decidida a lhe tirar a vida. Ele jogou Little John para longe, como se o corpo da criança não passasse de um trapo humano. Mesmo sentindo o corpo moído pela pancada, Little John se colocou de pé segurando um pedaço de madeira.
— Pode vir, maldito! — disse o garoto.
A besta estreitou os olhos e correu para cima do menino, que caiu para trás, verdadeiramente assustado. Ela lançou para Little John um olhar de raiva e se preparou para finalizá-lo, quando sentiu uma fisgada na base da espinha, olhando para o peito, notou que uma folha de aço despontava para fora; tingindo de vermelho sua pelagem alva e o rosto do menino.
Grã-Belt saiu de cima de Little John, sem entender nada do que estava acontecendo, fazendo a cabeça de lobo branca tombar para trás, enquanto resmungava palavras incompreensíveis misturadas com sangue. Quando olhou para cima, encontrou Drako segurando uma espada tingida de vermelho do sangue da fera. Compreensão e medo surgiram no rosto do vilão.
— Nunca fui igual a você — disse Drako, visivelmente ferido por ser brutalmente castigado por Grã-Belt após ajudar na fuga de Little John e dos outros dois —, eu só precisava sobreviver no inferno que você criou.
Willou começou a se mover. Com um gemido, sentou-se e coçou a cabeça.
— Porque o Grã-Belt está usando uma capa com pele e cabeça de lobo branca? — perguntou o menino na sua inocência de criança.
— Porque ele era a "fera do bosque" esse tempo todo — disse Pam.
Little John levantou-se aos tropeços, completamente exausto, encarou Drako e perguntou:
— Você sempre soube?
— Que ele era a "fera"? Não, não sabia. Só fiquei sabendo há pouco tempo, quando o vi usando a fantasia de lobo e atacando uma criança que havia fugido para o bosque.
EPÍLOGO
Extra! Extra! "A fera do bosque foi encontrada", bradava um menino em alto e bom som pelas ruas de Londres, vendendo jornais aos transeuntes, como água no deserto. A história bizarra e assustadora de Peter Grã-Belt, um filantropo e proprietário de uma fábrica de doces acima de qualquer suspeita, que nas horas vagas cometia horríveis assassinatos contra crianças que ele acolhia em sua casa, vestindo uma fantasia de lobo, desperta a curiosidade e o interesse de todos.
FIM
TEMA. Trabalho Infantil.