As Vezes Eles Notam
As razões que levam uma pessoa a ver além do véu da realidade são inúmeras, e nem sempre fazem sentido. Você espia sem querer por uma fenda na parede que separa os mundos e vê o que existe do outro lado.
E, as vezes, aquilo do outro lado te vê também.
Miriam tinha oito anos quando ouviu a mulher cantar pela primeira vez. O som vinha do depósito onde os pais dela guardavam tranqueiras, e Miriam a viu pelo buraco da fechadura.
A mulher vestia roupas de 1800 e balançava na cadeira de balanço da avó de Miriam. Seu cabelo escuro caía sobre ombros, e ela costurava um tecido vermelho.
Parecia um esqueleto vestido de gente, os ossos à mostra debaixo da pele fina e quase transparente. O deposito ao redor dela se distorcia em uma luz azulada, os móveis borravam, e uma rachadura fina cruzava o ar aos fundos, como se o próprio espaço estivesse rachando.
Assim que Miriam se afastou para chamar a mãe, o som parou. A cadeira parou de balançar. A mulher parou de cantar. Ela havia notado que tinha sido ouvida.
Quando Miriam olhou novamente, a mulher não estava mais lá, e a rachadura na parede sumiu.
Ela sorriu para si mesma, como se tivesse descoberto algo grandioso que ninguém mais sabia. Decidiu que nunca contaria para ninguém.
Aquele era seu pequeno segredo.
Com os anos, Miriam trancou a lembrança da mulher que cantava e costurava no fundo do cérebro, como guardaria a memória de um sonho, e não pensou mais nela.
Não até ela ter vinte anos e o pai dela ser internado.
Miriam tentava dormir quando ouviu a voz vindo do sótão. Ela paralisou de medo, pois tinha se mudado aos dezoito anos.
Mesmo assim, ela precisava ver seu pequeno segredo de novo.
Tudo era como naquele dia: os móveis borrados e azulados, a rachadura, mas a mulher agora vestia um vestido vermelho e costurava um véu negro.
Miriam se afastou devagar e voltou para o quarto.
Quando ela acordou, uma chuva fraca batia na janela, e dezenas de ligações da mãe tinham caído em caixa postal. O pai dela morreu no hospital de uma parada cardíaca.
Sete anos depois, a mãe de Miriam morreu.
No enterro, a mulher estava sentada em um túmulo. Ela vestia um véu negro e costurava uma mortalha, o vestido vermelho era a única cor naquele dia cinza. Ninguém a notava ou se importava com ela, apenas Miriam.
A mulher se virou para ela. Os olhos eram pequenos e negros, e a maquiagem borrada descia até o queixo em uma linha indiscreta. Ela se levantou e desapareceu entre os túmulos.
A mulher sumiu por cinquenta e três anos. Miriam já estava começando a achar que nunca mais a veria de novo, mas coisas assim sempre voltam.
Miriam casou, nunca divorciou, teve bons filhos, mas suas juntas doíam, e caminhar era difícil.
Aconteceu do nada. Ela acordou no meio da noite, e os móveis estavam borrados daquele jeito familiar. Uma luz azul sem fonte iluminava tudo.
A mulher cantava na sala, e Miriam não sentiu medo. No fundo, ela sabia que isso aconteceria cedo ou tarde. Naquela hora, ela só queria vê-la. Ver seu pequeno segredo.
A mulher não costurava nada dessa vez. Ela estava sentada com a mortalha no colo, o vestido vermelho caía até o chão, e o véu negro quase transparente cobria o rosto, e ela cantarolava.
Miriam ficou frente a frente com ela, e a mulher sorriu.
A rachadura estava maior do que das outras vezes, e do outro lado havia uma versão diferente da sala dela, com móveis e fotos de outras pessoas.
Miriam se sentou ao lado da mulher e olhou para o teto, mas não havia teto, havia apenas a escuridão se estendendo infinita como em um céu sem estrelas. Vozes vinham de lá, cantarolando a mesma canção da mulher. Dezenas, centenas, talvez, de vozes.
Eles haviam esperado muito tempo para que Miriam ouvisse a canção toda, e agora ela ouviria. Miriam cantarolou, seguindo o ritmo da melhor forma que pôde.
Ela não teve medo. Não tinha mais porque ter medo. Enquanto ela cantasse, não precisava ter medo de nada.
Foi ali que seu marido a encontrou na manhã seguinte. Deitada no sofá com o corpo embaixo de uma mortalha e a cabeça para fora.
Seus olhos estavam abertos. Tinha a pele branca, olheiras profundas. Os lábios secos estavam repuxados para dentro, e ela sorria. No fim, ainda sorria, como se soubesse de algo que ninguém mais sabia e que nunca contraria a ninguém.