Os Homens Que Cantam

Os Homens Que Cantam

No vilarejo de São Jerônimo, encravado entre montanhas esquecidas de Minas Gerais, havia uma lenda que ninguém ousava contar a forasteiros. Quando a lua sumia e a noite pesava como chumbo, uma melodia surgia dos campos, doce como um hino fúnebre. Era um canto sem boca, sem origem, sem fim.

Artur Sampaio, um etnomusicólogo da Universidade Federal, chegou com sua equipe em busca desse mistério. Gravadores em punho, eles se instalaram em uma pousada rústica, ignorando os olhares desconfiados dos moradores.

— Não ouçam o canto — advertiu a dona da pousada, voz trêmula. — Não tentem entender.

Na segunda noite, o som veio. Não era uma música feita por humanos. Era profunda demais, carregada de frequências que Artur sentia nos ossos.

Ele correu para gravar. O espectrograma no laptop desenhava padrões impossíveis: notas que não deviam coexistir, harmonias além do alcance auditivo humano. A música falava. Chamava.

Contra os protestos dos colegas, Artur saiu em busca da fonte.

O campo era um mar de sombras. O canto vinha de todos os lados, como se o próprio ar estivesse ressoando. Então ele os viu.

Homens. Dezenas deles. Altos, esguios, envoltos em trajes cinzentos e velhos. Não tinham rosto, apenas uma superfície lisa e negra onde deviam estar seus olhos e boca. E ainda assim cantavam, sem abrir os lábios inexistentes.

O som intensificou-se, infiltrando-se na mente de Artur, moldando palavras sem idioma. Ele caiu de joelhos, a visão turva.

Então, compreendeu.

Eles eram ecos. Fragmentos de algo maior, prisioneiros de uma melodia que nunca deveria ser ouvida. E Artur, agora, também era parte da canção.

Na manhã seguinte, sua equipe encontrou apenas o laptop, ainda gravando. A última onda sonora registrada formava um padrão geométrico familiar: um rosto. O de Artur.

Na noite seguinte, o canto aumentou. E mais uma voz se juntou à melodia.

(Eduardo Andrade)
Enviado por (Eduardo Andrade) em 24/02/2025
Código do texto: T8271436
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