ZOIDIBRASA - CLTS 30
- E aí Caburé!...
- Você viu as notícias no jornal de ontem?
- Vi nada Chico. Esse povo de televisão não fala nada que presta.
A noite se aproximava quando Chico colocou os pés no boteco se deparando com o velho Caburé sentado num canto. O homem tragava seu pito de palha emitindo uma suave coluna de fumaça que se esvaía ao vento sem o menor protesto dos presentes.
Aquele matuto semianalfabeto guardava em seu corpo as marcas de um tempo que doía na memória. Sua infância roubada nas carvoarias do norte mineiro ecoava em sua mente, jamais superou os traumas sofridos apesar de enfrentá-los com valentia.
Seu destino mudou quando um grande incêndio consumiu as posses do Nepomuceno, queimando lenha, carvão e gente. Caburé muito jovem, foi resgatado caminhando sem rumo na estradinha que dava acesso ao rancho do coronel, foi o único a sobreviver após presenciar o caos daquela madrugada. Seu testemunho não foi de muita serventia para a polícia. Estava em choque, além de ser apenas um pobre menino ignorante. Desde então, deixado aos cuidados do pároco local conheceu as primeiras letras mostrando-se um menino que alcançaria grandes conquistas, mas logo teve que se dedicar a lida nas roças da região, tomando ódio mortal de tudo que se relacionava com as práticas nos fornos.
Sabendo de sua raiva, Chico quis partilhar o comunicado emitido pelas autoridades.
- Ontem de madrugada, três caminhões carregados com carvão clandestino capotaram. Tudo virou cinzas, por pouco os motoristas também não foram queimados. Tão dizendo que é armação do tinhoso. Um dos homens diz ter visto o maligno.
- Que isso Chico. O tinhoso só ajuda os seus. Carvão clandestino é coisa de quem não presta. Garanto que foi vingança do Zoidibrasa.
- Zoidibrasa! Quem é esse? Algum fazendeiro enciumado?
- Não meu amigo. Zoidibrasa vem trazer o castigo para aqueles que merecem. Se os motoristas não morreram, tem que agradecer pela clemência. Neste ramo, inocentes são apenas os que não tem escolha.
Percebendo que ali teria uma boa história, Seu Nerso, dono da venda se aproximou abrindo uma garrafa do Último Golle, a melhor cachaça da região. Alguns fregueses se aproximaram servindo-se da iguaria.
- Pois é. O matuto começou com uma amarga expressão no rosto. - Isto foi a muito tempo, minha altura não passava do seu umbigo. Apontou na direção do Chico que ouvia com atenção.
- Lá na carvoaria do coronel Nepomuceno, gente chegava e gente saía, não sei de onde vim, sei que sempre estive ali.
Caburé como tantos outros órfãos da miséria nunca conheceu seu pai. A mãe, diziam ser uma rameira que seguiu para Bahia deixando-o para morrer de fome.
Um dos capatazes o recolheu entregando-o ao Nepomuceno a troco de uma pequena recompensa. Quando descobriu ser gente, se ocupava em tirar a munha do carvão de dentro dos fornos, carregar pequenos troncos, abastecer as cabaças com água e ajudar a fazer o barro para vedar as frestas que surgiam ao cozinhar a lenha.
- Então, um dia chegou alguém de Goiás. Fez uma pausa pigarreando. - Trazia amarrado pelas mãos um bugre dois dedos maior que eu.
As recordações umedeciam seus olhos que refletiam a luz da venda.
- Eu nunca tinha visto nada igual, nunca tinha visto outro menino, só tinha gente grande na carvoaria, mas não me deixavam chegar perto, falavam que ainda era bicho.
- Na verdade, ele era diferente, tinha a pele acobreada, cabelo muito liso, arredondado e de um preto que até ardia a vista, mas como disseram, era bicho bravo. Apanhava de pau todo dia. Achei que não ia amansar. Aos poucos, depois de levar água e comida para ele, ficamos mais próximos, ele perdeu o medo de mim e eu já não tinha mais medo dele também.
- Sempre quis saber seu nome, mas não entendia o que falava. Depois de algum tempo, ajudei o capataz a ensina-lo algumas tarefas, ele era bruto, muito mais forte que eu. Ficava dias dentro dos fornos empilhando com cuidado os pedaços de madeira, seu tamanho colaborava para um melhor uso do espaço.
- O tempo ali não tinha medida. Na carvoaria, as vezes varávamos a madrugada passando o barro nas trincas para não deixar o calor fugir. O capataz fazia o trabalho dele, mas não tirava o olho do novato, quando chegou a hora de desenfornar a primeira queima, o menino perdeu sua cor de cobre, ficou igual a gente, preto de carvão.
- Nunca vi outro com tanta esperteza. Enchia e esvaziava os fornos como adulto, eu tentava acompanhá-lo. Nos olhos guardava as chamas da ira, minha fraqueza a cada dia se tornava evidente.
- Os homens do coronel exigiam o mesmo de mim. Me tornei um inútil comparado ao menino do mato. Ele me ajudava na maioria das vezes. Parecia se resignar alimentando a gula insaciável daqueles monstros devoradores de lenha enquanto a fuligem negra apertava nossa garganta.
- O menino trabalhava mesmo feito homem? Interrompeu Chico parecendo não acreditar.
- Trabalhava sim meu amigo, e era companheiro. Nas horas de descanso, quando passavam a corrente em seus pés, tentando retribuir, levava um pouco de água para lavar as feridas das constantes pauladas que recebia.
- Que fim levou o menino-bicho? Seu Nerso perguntou com grande curiosidade.
Caburé fez uma pausa. Olhou para a escuridão que reinava do lado de fora da venda, escuridão que se misturava com o vazio de sua alma.
- Foi numa noite como esta. Até as estrelas se esconderam. Passamos a tarde toda alimentando uma dúzia de fornos. O calor deixava a gente zonzo, a fome também castigava. Só comeríamos quando o trabalho acabasse. Era o jeito de nos obrigar a terminar a tarefa. Os adultos nada faziam por nós, não sei se estavam acostumados com o sofrimento ou se viam em nosso martírio uma cruel diversão.
- Não tenho muita lembrança. Acabei vencido pelo cansaço. Desmaiei. Acordei no rancho com o trabalho terminado. Naquela ocasião, como punição ficaria sem janta.
- Mesmo não entendendo, o bugrezinho sabia que meu choro era de fome. Num gesto inesperado, dividiu comigo sua cuia de farinha.
- Um dos homens do coronel, possesso de raiva chutou a vasilha ainda na minha mão. Não satisfeito surrou o menino até cessar seus gemidos de dor. Nada pude fazer.
- Outro homem chegou. Com a ponta do pé cutucou aquele corpo imóvel. Estava morto, decretou.
- Não consegui chegar perto. Sabia que tudo aquilo foi por minha culpa, eu deveria ser mais forte. Deveria ter feito meu serviço.
O velho carvoeiro arrependido tomou uma dose de cachaça, os amigos respeitaram seu silêncio.
- Era só uma criança. Não poderiam ter feito aquilo. Enquanto eu chorava por meu amigo menino bicho, os grandes discutiam, quase brigando. Teriam que dar um jeito. Ninguém quis cavar um buraco para deixar o corpo. Não poderia deixar para os animais, alguém acabaria descobrindo.
Os olhos miúdos de Caburé buscavam no vazio uma explicação para toda a barbárie cometida a tantos anos. Os amigos da vendinha do seu Nerso, pela primeira vez ouviam a história do matuto sofrido, Chico deixou escapar uma lágrima amparada pelas costas da mão.
- Haviam ainda alguns fornos a serem fechados. Alguém sugeriu servir o garoto ao paladar das chamas. Me fizeram assistir a tudo. Nem se incomodaram com meu pesar.
- Apoiaram seu corpo em alguns troncos de lenha, ele parecia estar de pé. Prepararam o barro. Me espancaram. Deveria fechar a boca do monstro que devoraria a única alma que teve piedade de mim. Aos poucos as fileiras de tijolos iam subindo.
- Eu vi... Tinha certeza que ele mexeu. Vi seus olhos brilharem. Ninguém quis me ouvir. Vivo ou morto, queriam se livrar do menino bravo, cansaram-se de sua rebeldia, até espancá-lo já não tinha mais graça. Eu sabia que ele estava vivo. Me fizeram assentar a última peça. O fogo foi aceso.
- Quanta crueldade, homem de Deus! Chico disparou com a voz embargada. Por que fizeram isso se ele trabalhava direito?
- Pois é, não se sabe o que realmente acontece quando os fracos e humildes estão sob o julgo dos que se acham mais fortes. Vai ver que sentiam-se ameaçados, pois o novato era mais caprichoso, talvez não gostassem dele pois era indigena, ou apenas se divertiam sendo cruéis. Os coronéis tinham suas próprias leis, achavam que não tinhamos almas, éramos coisas sem valor.
Seu Nerso fez o sinal da cruz, ao ouvir da boca de Caburé a palavra alma.
- Mas estes demônios não ficariam sem punição. Continuou o velho.
- Durante quatro dias o fogo carbonizou a lenha. Tive que curar as feridas do barro. Sentia o cheiro da carne queimada se impregnando em meu corpo, minha vontade era dar cabo de mim. Me jogar nos braços da morte. Me juntar a meu amigo num lugar onde pudéssemos correr, brincar e nos entender, porem a coragem me faltava. Passou, como de costume, mais alguns dias para brasa se apagar e então finalmente teríamos só o carvão.
- Te obrigaram a abrir o forno? Perguntou Chico.
- Não, por sorte não. Mas estava lá, bem do ladinho, minha cabeça de criança não sabia o que esperar. Queria que ainda estivesse vivo. Que o fogo não lhe tivesse feito mal.
- Esperamos anoitecer, não é bom abrir os fornos de dia. O bafo quente das feras se ameniza durante a noite, e já estava ficando tarde. Aqueles homens pareciam alimentar uma morbidez terrível, dentre tantos, o primeiro seria aquele destinado ao corpo do menino bicho. Eu estava lá, bem pertinho...
- Naquela noite, quando o primeiro suspiro foi aberto, um estrondo fez tremer o chão. Parecia um trovão, mas vinha da terra. Labaredas imensas se ergueram bem acima de onde as vistas podiam alcançar. Alguns caíram sentados, eu voei como um trapo ao vento.
- Quando tentei me levantar, o fogo lambia tudo. Eu vi, eu vi seus olhos brilharem, eu vi o Zoidibrasa. Eu vi aquele menino bugre no meio das chamas. Ele segurava o próprio fogo em suas mãos. E tudo queimou. Até as pedras queimaram. O calor era intenso. Com dificuldade caminhei sem me dar conta do rumo que seguia.
- Não comi, não bebi, não dormi. Só andei até encontrar um povo desconhecido. A polícia esteve lá. Naquela noite, disseram que até a fazenda do coronel ardeu, não sobrou gente nem bicho, tudo se acabou.
- Contei minha história, disseram que era doideira minha. Por algum tempo me deixaram na casa do padre, depois tomei meu rumo. Eu doido, doida era aquela gente que tanto mal traziam ao mundo.
O silêncio permitia que cada um fizesse sua própria reflexão. Caburé acrescentou mais uma bituca de cigarro no cinzeiro quase cheio. Olhando para fora do estabelecimento falou.
- Sabe Chico, nestes últimos setenta anos, tenho andado muitas léguas, tem coisas que o povo das cidades não acreditam, mais lá no sertão, sempre que um forno arreia, sempre que uma lenheira queima, alguém acaba vendo o Zoidibrasa, e se vê é por que ali tem maldade, ele só castiga quem faz coisa errada, ainda hoje quando o vento sopra quente, sinto que de longe ele me espreita. Não sei se tem algo a me dizer, não sei se quer me proteger, sei que me arrependo de nada ter feito por ele.
Era tarde, os amigos se despediram, cada um seguiu seu rumo pela estradinha de terra batida. Seu Nerso passou um pano na mesa. Serviu-se de uma dose do Último Golle, caminhou em direção à porta, ao fechá-la sentiu a brisa morna, melhor se recolher, pois todos tem sua história e cada um é assombrado por seus próprios fantasmas.
Trabalho infantil
Em homenagem a meu amigo, autor Carlos h f Gomes