O Deserto da Perdição

Uma única lâmpada fraca iluminava a cabana. Nithya estava sentada à mesa, tomando chá, enquanto o velho Melchior fumava cachimbo.

— Não há o que fazer — Melchior disse. — Ninguém se livrou. Faz mais de dois mil anos agora. A vontade do Fundador é absoluta...

Nithya bateu as palmas na mesa, fazendo a xícara tremer.

— Você quer mesmo que eu acredite numa idiotice dessas?

Melchior continuou rígido. Seu rosto manchado de sol e o cabelo branco colado no escalpo a faziam lembrar de uma estátua de mármore.

Nithya se acomodou e descansou as mãos no colo.

— Que tal um médico? — disse. — Um psiquiatra? Ou...

— Ele não está doente, está amaldiçoado.

— Vocês são loucos. — Nithya enfiou o cantil na bolsa e se levantou — só me dê a droga de um amuleto, cântico, qualquer coisa.

— Não — Melchior disse. — Eu não vou irritar deus porque uma garota vai perder o marido. Milhares de mulheres perdem os maridos. O que nós passaríamos ao irritá-lo...

Ela saiu bufando e batendo a porta.

Nithya encontrou Marion na recepção do hospital por volta das nove da noite, e elas seguiram juntas rumo ao leito de Thomas.

— Ele se recusou a ver os filhos; disse que eles estavam tentando roubar o amor de Freya. — Marion subiu as escadas para o quinto andar seguida por Nithya — não bebeu água e não dormiu. Roy e Donald foram brincar no parquinho e vão dormir as dez.

As paredes do quinto andar eram de um branco esverdeado que as fazia parecer cobertas por uma camada impregnada de mofo.

Nithya encheu mais um copo de água para Thomas, esperando que o idiota tirasse aquela ideia da cabeça cedo ou tarde.

O quarto trinta e sete parecia mais um hotel duas estrelas, com sua cor azul desbotada, cactos, e quadros abstratos de artistas amadores comprados em feiras.

As pessoas o chamavam de Último Quarto. Tinha um suporte de soro ao lado da cama como um acompanhante, e cintos para quando os tranquilizantes falhavam. Estava sempre ficando vazio, por alguma razão.

Thomas estava debruçado sobre a janela, fitando o norte. O cantil dele estava intocado em cima da mesa, e o jarro ao seu continuava com água até a boca e refletia a luz do lustre. Nithya deixou o copo ao lado dos outros. Eram três agora, e todos estavam cheios. Uma mosca pousou na borda de um deles.

— Trouxe água, amor.

— Não importa. — Thomas deu os ombros — está ouvindo?

— Ouvindo o quê?

Thomas a puxou pela manga até a janela. O deserto, muito adiante dos postes de luz, tremulava como uma ilusão. Não haviam muitos outros prédios, assim se via as dunas azuladas até os olhos serem impedidos por uma descida brusca.

— Ouça, bem lá no fundo...

— Não estou ouvindo nada, querido...

— Cale a boca e escute. Está dizendo: “a sacerdotisa, a sacerdotisa...”

Nithya ouviu o vento uivando, Roy e Donald rindo no parquinho dos fundos, as enfermeiras no corredor... carrinhos. Portas batendo.

— Não estou ouvindo nada. — Ela colocou a cabeça para fora, mas o vento soava como sempre — é só o vento.

— Shhhhh, escute. É bem leve, mas olhe, olhe, vem dali. — Thomas apontou para o norte — está chamando.

— Quem?

— Ele, o Senhor de Freya. O Deus do Mármore. — Thomas se debruçou novamente na janela, e Nithya sentiu um arrepio leve. Deus do Mármore? Nem Melchior o chamava assim — ele está me mandando vê-la... ver a Freya...

— Apenas beba um copo d’água, não vai te matar — Nithya o entregou um dos copos.

Thomas o arrancou da mão dela e o espatifou na parede do outro lado do quarto.

Dez anos de casada, primeira viagem fora do país, e a primeira vez que ela quis dar-lhe um tapa.

No fim de tudo, Thomas se recusou a dormir, se debateu e ameaçou, e as enfermeiras o doparam e o amarraram na cama com os cintos.

Nithya se deitou as onze e caiu em um sono profundo. Marion veio vê-la somente as dez da manhã. Estava branca e tremendo.

— O Thomas, senhora Galliard...

Nithya esfregou os olhos.

— O que foi...?

— Fugiu — disse Marion.

— Fugiu? — Nithya se levantou — como assim fugiu?

— Fomos trazer o café, e ele não estava no quarto. Nós procuramos a manhã toda. — Marion remexeu a saia do uniforme — ele sumiu.

— Não, ele não sumiu, vocês perderam ele. — Nithya a segurou pelo colarinho — vocês tinham a droga de cintos! Ele estava amarrado e dopado! Como vocês perderam ele?

Marion apertou os lábios.

— Sentimos muito.

O Último Quarto estava como na noite passada: uma jarra e dois copos cheios, e os cintos soltos na cama, mas o idiota do Thomas não estava lá. Ele amarrou uma corda de cobertores na janela que dava para o norte.

Nithya agarrou a batente. Lá fora, o deserto ondulava.

Marion se aproximou.

— Sentimos...

— Sentem mesmo? — Nithya avançou com o punho cerrado — eu acho que foi bem conveniente.

O rosto gorducho de Marion enrubesceu, e Nithya pegou o cantil de Thomas e protegeu o rosto com panos.

— Roy e Donald vão acordar quando eles quiserem. Diga que a mamãe foi resolver uma coisa. — Nithya saiu e foi buscar o camelo.

Marion desceu a escadaria atrás dela, gritando que era loucura, que ela morreria. Ninguém pode contrariar a vontade dele.

Nithya avançou, a ignorando.

Por volta da uma da tarde, ela chegou ao deserto aberto. Interrompeu-se apenas para beber a água de um oásis e encher os cantis.

As cinco, ela chegou a cratera que via do quarto trinta e sete. Nithya parou bruscamente o camelo e teve certeza de que havia enlouquecido também.

Logo abaixo estava um templo de pedra preta cercado por cinco pilares que pareciam os dedos de um gigante. Ele estava levemente tombado e engolido pela areia e parecia pequeno dentro de uma vala tão grande.

Nithya guiou o camelo pela ladeira, agarrando as cordas com força para não deslizar.

A entrada parecia uma boca escancarada e escura como a noite. Ela desceu os degraus em um corredor estreito. As paredes foram rabiscadas com as palavras loyshaska garaack khothos a altheha.

Nithya se lembrou de quando encontrou Melchior fumando cachimbo na varanda.

— Acto no garaack, é o que nosso velho povo te diria. Significa, "sentimos pelo seu castigo" — Melchior havia a dito, e a convidado para entrar. — É uma pena, sim, que ele acredite que qualquer coisa é válida para continuar punindo a Freya. Homens como seu marido não deviam pagar pelo crime dos outros.

Nithya havia se sentado com ele.

— Eu tenho duas crianças me esperando, podemos ir rápido com isso?

No fim da descida havia uma galeria com um altar de mármore. Atrás dele, na parede, desenharam uma enorme criatura humanoide. Seus olhos eram dois círculos brancos, e seis pares de braços saíam de suas costas. Nithya lembrou-se novamente de Melchior.

— Nós o chamamos de Fundador, ou Senhor de Freya — Melchior disse, e soprou a fumaça. — As pessoas rezavam para ele em templos quando esse lugar ainda era floresta e mato, até Freya o trair.

— Então você está me dizendo que uma criatura enorme transformou uma floresta em um deserto e amaldiçoou todos os oásis? — Nithya havia respondido sarcasticamente.

— Não, a água é apenas uma ligação. Isso não é sobre seu marido – Melchior a havia dito. — Freya é quem ele pune.

Nithya se lembrou que bebeu a água do oásis, e seu corpo enrijeceu. Ela seguiu por outro corredor, subindo os degraus vermelhos de sol rumo a superfície. Suor frio descia das têmporas. A frente, algo refletia luz.

Era uma fonte.

Nithya arrepiou e voltou dois passos para a escuridão. Havia uma mulher na fonte. O pôr-do-sol entrava por uma rachadura no teto e lançava sobre ela um único feixe de luz como uma pintura dramática.

A mulher foi congelada no tempo enquanto bebia a água de um cantil antigo. O cabelo ondulado coberto por um véu caía na fonte.

Seu vestido, um dia de seda, hoje era de mármore. Ela era uma estátua. Uma estátua tão viva que parecia uma estátua humana, como as que as pessoas interpretam nas praças. Nithya conseguia ouvir o próprio coração em um ritmo inconstante.

Thomas estava em frente a Freya, apertando o próprio estômago com a testa colada no chão, seu rosto se contorceu em uma máscara de horror e agonia.

O mundo ao redor pareceu desabar, desbotar, e borrar, e um som agudo soou no ouvido esquerdo de Nithya. Ela passou a língua pelos lábios e se aproximou.

Thomas não teve chance. Sua pele tinha textura de pele, mas a aparência de mármore.

Freya sorria com uma cara que diz “enganei você, seu idiota”.

— Ele está amaldiçoado, vai virar pedra assim como Freya. É a vontade de Deus — Melchior a disse. — Acto no garaack.

— Acto no garaack seu rabo. Como se diz “vá para o inferno” nesse seu idioma? — ela havia respondido. — Faça alguma coisa!

Nithya riu. Não conseguia parar. Lágrimas se formaram em seus olhos, e ela riu.

Era uma história engraçada e tão absurda! Ela limpou as lágrimas com o braço e continuou rindo.

Roy, Donald, é o seguinte: o papai não vai voltar para casa porque ele bebeu a água de um oásis amaldiçoado e se tornou pedra. É idiota, eu sei que é, mas é verdade.

Um dia, O Fundador concedeu a imortalidade a Freya em troca de sua devoção eterna, mas Freya se apaixonou por um mortal e decidiu que largaria tudo para viver com ele. Deus se enfureceu e a transformou em mármore, a prendendo no templo para sempre.

Agora, todos que bebem a água desse deserto infernal se apaixonam por Freya e são guiados até aqui para virar pedra também. Freya, assim, perde seus amores um a um, e nunca mais pode ser amada.

E sim, eu sei que é absurdo, mas aquele para quem Freya rezava não era Cristo e nem o Diabo, e nem qualquer outro nome conhecido... era outra coisa. E Ele é furioso, cruel e vingativo, é uma enorme sombra que recai sobre tudo, e Deus sabe o que Ele é.

Nithya enfim parou de rir, e sentiu o ódio arranhar o estômago. Maldita Freya, aquela traidorazinha imunda e seu sorrisinho de esperta. Nithya queria empurrá-la e assistir aquele corpinho lindo espatifar e se afogar na fonte, mas uma pontada de pavor gelou seu sangue.

Alguma coisa estava ali, algo pesado, mas invisível, que cobria a sala como uma enorme mão que esmaga uma mosca, apenas esperando um movimento para atacar. Ela não podia espatifá-la, Freya tinha que continuar sofrendo.

Nithya jogou o que restou do cantil na fonte e então apoiou Thomas no ombro. Seu suor descia frio como gelo derretido, e suas pernas tremiam.

— Fundador, Lorde de Freya, Deus do Mármore — ela murmurou enquanto o carregava para fora. — Estou levando a vítima da maldição... estou levando a vítima da maldição... me permita...

O sol se escondeu pelas dunas quase por completo, e o céu tinha um tom arroxeado que se tornava cada vez mais escuro. As estrelas pareciam minúsculos olhos espiando por trás de um véu negro.

— Estou levando a vítima da maldição — Nithya murmurou sem parar.

O camelo a esperava no mesmo lugar. Ela ajustou o corpo de Thomas em cima dele, o amarrando com cordas. Durante toda a viagem, ela seguiu de cabeça baixa, olhando as dunas se desfazendo sob as patas do camelo.

Ela chegou na cidade depois da meia-noite. Os postes de luz criavam círculos no chão, e abaixo deles Nithya se sentia protegida do olhar das estrelas. Ela parou frente ao hospital e chamou Marion. Alguém tinha que cuidar da papelada mortuária.

Nithya passou aquela noite no Último Quarto, olhando o norte pela janela. O jarro de água e os copos cheios até a boca. As estrelas piscavam, e o céu era de um preto profundo, surreal.

No templo, lá na frente, uma voz profunda sussurrava as palavras que ela leu na parede. Agora, ela as entendia. Ele dizia:

— O sofrimento é teu castigo, Khothos não esquecerá.

Irene R Carrow
Enviado por Irene R Carrow em 22/02/2025
Reeditado em 22/02/2025
Código do texto: T8270376
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