Medo da Morte - CLTS 30
Lautaro Bezerra marcou para a madrugada de uma terça-feira o encontro entre aqueles dois elementos indispensáveis para o êxito de um assassinato por encomenda: a bala e o alvo.
Não pense que dias e horas representavam o que havia de mais fácil no infame trabalho.
Não muito tempo antes, por exemplo, sua prodigiosa pontaria havia sido requisitada para adiantar o passamento do padrinho de um jovem e ambicioso advogado. Este, principal beneficiário do testamento, iria dividir com o pistoleiro uma parcela generosa da herança, uma proposta imediatamente acatada… se não tivesse sido feita durante a quaresma.
Religioso o bastante para levar a sério o poder das datas — influência da piedosa mãe espanhola —, Lautaro pensava não ser de bom-tom matar um distinto senhor em um período tão importante, então, encarecidamente, pediu para que o mandante esperasse até a páscoa.
A espera não seria longa, se ele não tivesse percebido que, não apenas seria igualmente grave assassinar pessoas em plena celebração da Ressurreição do Senhor, como também o período pascal era estendido até a solenidade de Pentecostes no calendário litúrgico.
Exasperado com a demora, o advogado deixou escapar que, daquela forma, o próprio tempo acabaria se encarregando de dar cabo do velho padrinho, isso se não encontrasse outro matador mais eficiente. Em resposta, Lautaro indicou que o jovem iria experimentar boas doses de chumbo como prova da eficiência do pistoleiro com quem estava falando. Com esse argumento, o negócio foi fechado com o prazo necessário.
Mas o trabalho do qual estava encarregado no momento representava um desafio diferente para seus escrúpulos.
Jeff Kennedy, conhecido por todo o oeste como o Barão Dourado por possuir vastas terras e ricas minas de ouro, havia procurado-o trazendo aquela que deveria ser uma das histórias mais bizarras que Lautaro já tinha escutado na vida.
Perto do vilarejo onde os mineiros e suas famílias viviam, existia o que era chamado pelos moradores locais como o cemitério da encruzilhada, cujo terreno em que estava situado era contornado por duas estradas de terra que se cruzavam em um dos vértices. Ele vinha sendo cuidado nos últimos anos por um estranho coveiro do qual quase nada se sabia além do fato de que ele adorava dividir a atenção entre os túmulos e os corvos falantes que eram sua única companhia.
É perfeitamente sabido que esses misteriosos animais são capazes de imitar variados sons, incluindo a voz humana, mas supõe-se que precisem ouvir para reproduzir. Como era possível que imitassem com exatidão a voz de quem havia morrido há anos, muito antes do aparecimento do coveiro e de seus mascotes alados, e falando frases que somente quem tinha conhecido intimamente o defunto poderia reconhecer?
A conclusão inevitável era de que o homem do cemitério estava conjurando poderes sombrios, tendo seus numerosos companheiros de plumagem escura como mensageiros do outro mundo ao fazê-los pousar sobre as lápides e sussurrar os segredos de quem estava enterrado.
A suspeita provocava calafrios até nos mais céticos, não apenas pelo fato em si, mas também pelo que supostamente estaria sendo contado. Muitos que possuíam bons motivos para desejar com intensidade que determinadas verdades permanecessem ocultas sob a terra falavam em dar um basta naquele sujeito estranho, mas, no final, tudo não passava de bravatas, maioria das vezes proferidas ao redor de garrafas vazias.
O próprio Barão Dourado estava receoso quanto ao que fazer. Interessado que todos os habitantes de seus domínios não temessem outra coisa além dele, parecia também tomado pelo pavor.
Sem conseguir convencer o xerife a tomar providências ou forçar seus homens a resolver o assunto com as próprias mãos, sobrou para ele recorrer a Lautaro, prometendo uma bolsa de moedas de ouro como recompensa.
Antes de dar uma resposta definitiva sobre o caso excepcional, o pistoleiro fora da lei pediu para testar o terreno em que deveria pisar, perambulando para aquelas bandas e vendo tudo com os próprios olhos.
Apresentado por Sr. Kennedy como um amigo que veio de longe para resolver importantes pendências, ele logo caiu nas graças dos cowboys, bebendo e trocando causos ao redor de fogueiras. No vilarejo, trocou palavras com todo mundo, do capelão às meretrizes.
Sem ninguém mais a quem sondar, restou falar com o principal personagem dos boatos.
Visitou o cemitério da encruzilhada em um dia sem nuvens. Não viu qualquer silhueta negra empoleirada nas proximidades ou ouviu um crocitar que se assemelhasse à voz dos mortos ecoando do submundo. O próprio coveiro não parecia nada demais, apenas um sujeito magricela com uma péssima educação.
Contou para ele que precisaria enterrar um corpo dentro de algumas horas e gostaria de saber se poderia contar com os serviços e a discrição dele. O coveiro aceitou esfregando as mãos sujas e mostrando os dentes ruins em um sorriso sinistro.
Lautaro não sabia dizer se a satisfação era devido ao dinheiro prometido ou à expectativa de ter mais um item na coleção de mortos com os quais convivia e com os quais eventualmente conversava. De todo modo, sentiu-se confiante para aceitar a tarefa e mandou um moleque de recados avisar ao barão que o esperasse no dia seguinte com o pagamento no lugar em que haviam previamente combinado.
Por volta das três horas da manhã, Lautaro saiu da estalagem e cavalgou para o cemitério enquanto a desolada e pedregosa paisagem que ladeava a estrada ainda aguardava os primeiros raios da aurora. Apesar do escuro e do que iria encontrar, ele se perguntou com sinceridade se deveria estar com medo.
Que os moradores locais temessem ter seus mortos tagarelando era compreensível — sabe-se lá que segredos tenebrosos haviam levado para o túmulo —, mas, de resto, o que temer? Por que ter medo de fantasmas, sendo que não passavam de espectros pertencentes a outro mundo? Nada podiam tocar ou ferir. O coveiro, entretanto, parecia bastante sólido, e, entre ele e o pistoleiro, não era difícil ver quem dos dois mais representava uma ameaça ao outro.
Ao chegar à encruzilhada, virou à direita e contornou a lateral do cemitério até avistar porções de terra sendo jogadas para o ar nos limites mais distantes do terreno.
Lautaro apeou do cavalo, deu alguns passos e subiu no monte acumulado na borda do buraco em que um homem magro trabalhava distraidamente. Este deve ter ouvido a arma sendo engatilhada, porque parou de cavar com a velha pá e olhou para cima. Se estivesse mais claro, teria visto melhor o sorriso sarcástico do pistoleiro que não deixava de se divertir por ver um coveiro preparando a própria cova.
Não era preciso mais de um disparo estridente para fazer aquela abertura no chão cumprir seu propósito de ser a última morada de um corpo sem vida.
Depois de se deter um instante para contemplar a própria obra, o matador deu meia-volta e foi embora. Não importava quem tomaria coragem para se aproximar e conferir o rosto cuja identidade ainda era reconhecível apesar do tiro na testa, tudo o que Lautaro queria saber era na sacola de ouro caindo em suas mãos conforme o acordo.
Quando passou pela encruzilhada, a noite já tinha em sua maior parte se dissipado, restando dela apenas alguns retalhos que voavam de um lado a outro, um deles pousando em uma árvore de casca grossa e cinzenta.
O pistoleiro olhou para cima e avistou um corvo encarapitado em um dos galhos despidos de folhas. Puxou as rédeas e ficou encarando o negrume do grande pássaro em contraste com o céu da alvorada. Não pareciam tão assustadores, principalmente sob a luz do dia. Sacou a arma e apontou com o dedo no gatilho.
— Você já está morto, Lautaro. Só falta enterrar.
As palavras soaram um tanto verdadeiras, tendo em vista que a pessoa a qual se referiam estava petrificada abaixo, com a pele gelada.
A sensação era igual a sair do corpo e ver a si mesmo a partir de fora, com a diferença de que não tinha sido a totalidade do espírito a deixar o receptáculo original, uma vez que o ponto de vista ainda era seus próprios olhos, apenas a voz parecia ter deixado-o e ido parar no bico da agourenta ave.
O dedo indicador foi a primeira coisa a se mover após Lautaro se recuperar minimamente do susto. Transpassado pela bala, o corvo caiu feito um fruto podre, deixado para trás com o mesmo desprezo com que o homem a cavalo havia deixado a vítima anterior.
Os boatos mereciam algum crédito, afinal, embora alguns detalhes se mostrassem surpreendentes.
Não era de se admirar que os animais imitassem também os vivos, mas Lautaro não havia aberto a boca nas proximidades, e, mesmo que tivesse sido ouvido por eles no vilarejo, não compreendia o significado das palavras. Talvez fossem uma ameaça por ter matado o mestre profano. Seja como for, a criatura teve o que tinham todos aqueles que ousavam ameaçá-lo.
Guardou a arma na cintura, mas não soltou o cabo de imediato. Não teria nada com que se preocupar se palavras fossem tudo o que as aves podiam oferecer, o problema era que nem por isso ficava tranquilo.
Decidido a apressar a partida daquelas paragens, dirigiu-se ao pagamento com mais determinação, fazendo os cascos do cavalo levantarem poeira ao cavalgar em uma velocidade que seria suficiente para fugir de muitas coisas, exceto das sombras aladas grasnando em seu encalço.
As mãos suadas de Lautaro aumentaram o aperto em volta das rédeas sem que ele se atrevesse a olhar para trás ou para cima. Só tinha vislumbres do que o perseguia pelos relances escuros que invadiam seu campo de visão e pelas múltiplas vozes soando igual a todas as suas vítimas. “Você já está morto… Só falta enterrar”.
Aquilo terminava de contradizer tudo o que o haviam contado sobre os corvos. Não era para eles estarem longe do cemitério da encruzilhada, nem reproduzirem a voz de pessoas que não estavam enterradas nele, pessoas que só tinham em comum o fato de terem o mesmo carrasco.
A hipótese que passou por sua mente foi que não apenas já estava morto, como ele próprio havia se tornado um cemitério ambulante, e aquelas aves macabras iriam segui-lo por toda parte para sempre.
O cavalo pareceu comungar dos pensamentos tensos de quem o montava, disparando em um galope furioso que alargava a distância da revoada enervante até que ela fosse reduzida a menos que um murmurar longínquo, nada além de uma sensação incômoda às suas costas, ao mesmo tempo que os deixava mais próximos do destino.
Mesmo avistando a taverna de beira de estrada em que deveria se encontrar com o barão, foi um esforço desacelerar. Por fim, conseguiu parar e descer do cavalo, deixando-o beber, exausto, da água do cocho.
As esporas das botas soaram quando ele subiu os degraus de madeira rumo às portas duplas de saloon, as quais abriu para encontrar exatamente o que esperava: um ambiente de quinta categoria habitado por dois sujeitos mal-encarados que se distraiam jogando cartas, certamente à espera dos comandos do homem de barba grisalha que bebia em uma mesa mais ao fundo.
Lautaro se aproximou, tirando o chapéu, sentou-se e cumprimentou com educação, o que não impediu Sr. Kennedy de reparar nas mãos trêmulas, na testa suada e no fôlego ligeiramente descompassado do recém-chegado.
— Teve dificuldades?
— Nada que não pudesse resolver.
— Não se envergonhe por ficar nervoso. Aquele lugar dá arrepios em qualquer um. Mesmo meus melhores homens resistem a pôr o pé ali. Só foram com a garantia de que o mal estava acabado e iriam apenas ver o corpo. Quando chegarem com a confirmação do serviço feito, terá seu pagamento, enquanto isso…
Em um gesto amistoso, o barão serviu um pouco de bebida para Lautaro, que entornou o copo com avidez. Embora o whisky ajudasse, a sede que sentia era por novos ares e só começaria a ser saciada quando pudesse partir para o mais longe possível.
Depois de alguns minutos esperando a chegada de algum cowboy, voltou-se com ansiedade para a porta a tempo de ver os primeiros vultos escuros relampejando a partir de fora, multiplicando-se rapidamente e ajudando a ofuscar ainda mais as janelas empoeiradas.
O barão se levantou perguntando-se o significado daquelas sombras em pleno início da manhã. Os outros homens pareciam ainda mais aturdidos, largando as cartas e levando as mãos nervosas aos coldres. Em uma reação impensada, um deles sacou a pistola e disparou quando algo irrompeu pela porta.
Após o baque da queda, Lautaro se aproximou para se debruçar sobre o infeliz estirado no chão. Reconhecido pelo barão como um dos dois emissários enviados para certificar a morte do coveiro, o homem baleado teve chance apenas de murmurar um curto relato das últimas horas antes de expirar.
Segundo ele, chegaram ao cemitério e encontraram a cova ao nascer do sol. Tão logo reconheceram o cadáver, ambos foram embora como se aquele solo famigerado fosse feito de brasas. Falaram pouco durante o trajeto, mas, no final, o companheiro veio com uma desculpa esfarrapada para se desviar e sumir no horizonte.
Somente quando estava às portas da taverna que o primeiro entendeu o motivo daquela fuga: o outro provavelmente teria visto um dos inúmeros corvos que se aglomeravam no telhado do estabelecimento voando naquela direção e resolveu tomar outro rumo.
Perturbadas com a chegada do cowboy, as aves, que até aquele momento assentavam-se uma a uma de forma sorrateira, alçaram voo e giraram ao redor na forma de uma nuvem negra. Apavorado, o homem mergulhou pela entrada direto para a morte.
Os ouvintes da história souberam que o sujeito não tinha mais salvação quando a voz dele foi entoada pelo coro diabólico que sitiava o local. “Você já está morto, Lautaro. Só falta enterrar”. Outros mortos também falaram através da tempestade emplumada, dentre eles o próprio pistoleiro cujo nome era mencionado.
O barão e seus capangas afastaram-se e o encararam com certo temor. Era como se Lautaro tivesse passado de matador à assombração.
— Cumpri minha parte — disse ele. — Espero que cumpra a sua.
Jeff Kennedy estendeu a arma ao invés da sacola de ouro. Não foram necessárias palavras para que os cowboys junto dele fechassem o cerco.
— Justamente por ter feito o que fez que esses bichos estão furiosos. Se é verdade que está morto, acredito ser melhor entregá-lo para as aves carniceiras.
— Dê-me o pagamento. Se estão atrás de mim, irão embora comigo quando eu partir.
A ideia relaxou a tensão do impasse, com o barão e seus homens refletindo a real necessidade de um sacrifício humano.
O próprio Lautaro ponderava, em dúvida, sobre o que tinha dito.
A verdade era que não sabia o que os pássaros macabros desejavam ou o que aconteceria com ele ao sair, estando ou não com os bolsos forrados de ouro. Fosse como fosse, teria que fazer uma tentativa de escapar daquela situação.
O barão baixou o braço e colocou a mão livre nas vestes para tirar uma sacola chacoalhante que teria de bom grado trocado de dono se um dos cowboys não tivesse se virado e disparado contra o corvo intruso que havia encontrado o vão superior das portas. Atingido, o animal abatido tornou-se o chamariz para o resto do bando, que escoou para dentro feito um vazamento de piche.
Na reação ao apogeu de um pandemônio interno, a sacola acabou caindo e vomitando uma parcela do conteúdo cujo brilho destacou-se entre as penas negras que começaram a chover sobre o piso. Foi somente tendo as moedas ao seu alcance que Lautaro percebeu, de forma tangível, quão inúteis eram para ele.
Havia empreendido toda uma jornada em busca do que não poderia salvá-lo do vozerio retinindo junto com os disparos em uma sinfonia funesta. Uma vida inteira usando a morte para sobreviver e agora ela estava abocanhando-o, mastigando-o com dentes pontiagudos em forma de garras e bicos, e tudo o que lhe restava era descarregar a munição em um esforço que sabia ser em vão diante de uma realidade inexorável.
Quando se deu conta, tinha conseguido ficar de pé, a pele flagelada, as roupas manchadas de sangue e, ao redor, a quietude sepulcral de um cenário de carnificina.
Encontrou o chapéu entre o amontoado de corpos negros e passou por cima dos cadáveres dos outros homens. Não sabia se havia sido da arma dele que teria saído as balas responsáveis por mais aquelas execuções; para ser honesto, no entanto, não via se faria alguma diferença.
No lado de fora, o tiroteio parecia ter afugentado qualquer corvo remanescente, mas poupado a maioria dos cavalos. Acalmou a montaria que iria usar e partiu para refazer o caminho que o havia levado até aquele ponto.
Chegou às intermediações do cemitério e encontrou a cova e seu frio habitante exatamente como havia deixado. Pegou emprestada a pá e começou a devolver a terra para seu devido lugar. Para finalizar o túmulo miserável, colheu dois gravetos com os quais improvisou uma cruz e a fincou no chão. Sobre um dos braços dela, um corvo pousou.
— Você já está morto, Lautaro. Só falta enterrar.
O pistoleiro sacou a arma, mas a cena de mais cedo, com ele alvejando a ave com pontaria perfeita, não se repetiu. Ao invés disso, deixou que ela caísse de suas mãos. Sim, Lautaro Bezerra já estava morto, e nada melhor que aproveitar que estava em um cemitério para começar a preparar o sepultamento.
Para se juntar a ele, dois dias depois veio um cortejo fúnebre que desembocou na descoberta do novo coveiro. Este foi reconhecido como o forasteiro apresentado por Jeff Kennedy como um amigo que estava chegando para um trabalho importante, só não imaginavam que esse trabalho importante acabaria sendo enterrar o próprio Barão Dourado.
A constatação de que ele não passava de um piedoso eremita cada dia mais dedicado a preparar-se para o encontro com o Justo Juiz, em contraponto à tenebrosa figura antecessora, não foi suficiente para tranquilizar um povoado previamente condicionado a se perturbar com tudo o que envolvia o cemitério local, especialmente depois do que tinha sido encontrado na taverna de beira de estrada.
Por mais que todos quisessem se ver livres das aves, a matança que levou uma porção delas junto com as vítimas humanas caiu como a última gota d’água, motivando os mais sensíveis a tentar a sorte em outras paragens.
Pouco a pouco, o vilarejo dos mineiros foi entregue ao restante dos corvos, que voavam, lamuriosos, pelas redondezas.
Incompatíveis com a nova natureza dos ares onde antes vicejavam, estavam apartados de suas funções necromantes e exilados do antigo lar, agora finalmente transformado em um lugar de paz, porque nele estava um homem que, ao aceitar o próprio fim, já não temia mais nada, seja proveniente dos vivos, seja dos mortos, e paz é viver sem medo.
TEMA: Histórias do Velho Oeste