Diário de Takashi Sato: Sombras da Liberdade
Takashi Sato sempre acreditou no poder das histórias. Como jornalista investigativo, dedicara sua vida a buscar a verdade por trás de mitos, lendas e segredos enterrados pelo tempo. Foi assim que retornou ao Brasil, ao bairro da Liberdade, onde passara parte da infância. Ele havia sido atraído por rumores que ouviu de longe: aparições, sussurros na noite, sombras que se moviam por entre os becos estreitos e templos antigos. Para ele, o Bairro da Liberdade era mais que um cartão-postal cultural de São Paulo; era um lugar impregnado de história e mistério.
Assim que chegou, Takashi sentiu o peso da atmosfera do lugar. As lanternas vermelhas que adornavam as ruas lançavam um brilho difuso na noite. Entre as barracas de comida, os restaurantes tradicionais e as lojas de antiguidades, havia um silêncio inquietante, como se o próprio bairro guardasse um segredo que não queria compartilhar.
Sua primeira parada foi a loja de dona Miyuki, uma idosa japonesa conhecida por colecionar objetos antigos e histórias. Ela o recebeu com um sorriso gentil, mas ele percebeu a hesitação em seu olhar ao mencionar os rumores de assombrações.
— Alguns lugares carregam a dor dos que vieram antes de nós — disse ela, oferecendo-lhe uma xícara de chá verde. — Há uma casa antiga, na Rua dos Estudantes, que ninguém ousa entrar. Dizem que as almas de pessoas que não encontraram paz ainda vagam por lá.
Takashi anotou a informação, mas não se deixou levar pelo medo. Ele sabia que toda boa história tinha uma base na realidade, e era essa realidade que ele queria descobrir.
Naquela noite, Takashi foi até a casa mencionada. Era uma construção decadente, parcialmente escondida por vegetação. Ele forçou a entrada pela porta de madeira apodrecida e encontrou um interior em ruínas, repleto de móveis antigos e uma camada espessa de poeira. Enquanto explorava, ouviu um som que o fez congelar: passos acima de sua cabeça.
Subiu as escadas lentamente, cada degrau rangendo sob seus pés. Ao chegar ao segundo andar, encontrou um pequeno quarto com uma fotografia emoldurada sobre uma mesa. Era uma imagem em preto e branco de um grupo de japoneses, com roupas tradicionais, posando em frente a um templo. Mas algo estava errado. Os rostos das pessoas estavam borrados, exceto um: uma mulher jovem com um olhar penetrante que parecia seguir Takashi.
Ele sentiu um arrepio. Estava prestes a sair quando notou um símbolo gravado na moldura da foto: era o kanji para morte.
Nos dias seguintes, Takashi começou a perceber mudanças em seu comportamento. Pesadelos invadiam seu sono, mostrando cenas de violência que ele não conseguia compreender. Via corpos amontoados, rios tingidos de vermelho e a mesma mulher da fotografia, parada ao longe, observando-o.
Decidido a entender o que estava acontecendo, ele voltou à dona Miyuki, que ao ver a fotografia ficou pálida.
— Essa mulher… — começou ela, tremendo. — É a mãe de minha avó. Ela viveu algo terrível antes de vir para o Brasil. Nunca falava sobre isso, mas… mas sei que ela fugiu do Japão depois de algo chamado… Nanking.
O coração de Takashi acelerou. Ele conhecia aquele nome: o Massacre de Nanjing, um dos capítulos mais sombrios da história japonesa, quando tropas invadiram a China e cometeram atrocidades indescritíveis. Ele percebeu que os espíritos que assombravam o Bairro da Liberdade não eram apenas memórias, mas ecos de uma dor coletiva que atravessava fronteiras e gerações.
Na noite seguinte, enquanto revisava suas anotações, um homem idoso apareceu em sua porta.
— Você é Takashi Sato? — perguntou o homem, segurando uma carta envelhecida.— Minha família foi marcada pelo que aconteceu em Nanking. Quero que você veja isto.
A carta continha descrições perturbadoras e mencionava o nome de um oficial japonês que fora visto no Brasil após a guerra. Um nome que Takashi reconhecia como sendo de um dos líderes das forças envolvidas no massacre.
Antes que pudesse perguntar mais, o homem se despediu, dizendo apenas:
— Se você quer entender o que começou aqui, deve ir ao Japão. Há coisas que não podem ser esquecidas… e segredos que ainda matam.
Takashi ficou parado, segurando a carta, sentindo o peso do que acabara de ouvir. Ele sabia que sua investigação no Bairro da Liberdade fora apenas o começo. Agora, ele tinha um novo destino e um novo mistério: o Massacre de Nanjing e seus ecos no presente.
Com a carta em mãos, Takashi olhou pela janela. As lanternas vermelhas da Liberdade tremulavam no vento, como se observassem sua partida.
FIM
Continua…