O lugar da espera. - CLTS 30

Cravando os braços num oceano negro, procurando um mínimo de luz, conseguiu encontrar um feixezinho qualquer. Dele, um universo surgiu, estrelas mil, arco-íris, elefantes brancos e aves carnavais, riachos e nuvens, ambos uma coisa só, sopro suave, serenando a mente. Mergulhava como quem experimenta voo, descobrindo, num simples segundo, o porquê da vida valer a pena. Nessa queda de passarinho, observava os matizes verdejantes, verdume, cujo chão não deixava de transbordar cores, vermelho, amarelo, azul, roxo, tudo delicadinho; e os aromas já ganhavam seu olfato. Fechou os olhos, num sorriso que o infinito tomou para si. Depois os abriu. Era um sonho.

Miranda acordou com batidas à porta. Primeiro, custou a entender o que estava acontecendo, até porque mal conseguira superar o peso do despertar. Os manchões clarosos da visão preguiçosa se arrastavam pelo ambiente… estranho! Não era o seu quarto, de jeito nenhum. E a cama? Desde quando tinha uma cama tão macia? Parecia ter acordado num hotel de luxo. Antes que pudesse se situar, abriram a porta. Outro clarão. Defendeu seus olhos, pela fresta dos braços vislumbrou um vulto vibrante. Teve medo, mas tinha de agir, tentou se sobressaltar, mas logo viu que era um… menino!

— Senhora, o Chefe deseja te ver, antes mesmo do café da manhã. Ele já está à tua espera, lá embaixo. - de sobrepeliz branca, com fininho cinto dourado, apenas os pés aparentes, disse o mocinho com sua voz contraditoriamente suave para o tom sério, de mãos para trás e uma postura quase militar, com o pescoço rígido pouco olhando os olhos de Miranda.

Ninguém pode acusar nossa protagonista de mal educada, grossa, ou coisa assim… ela estava confusa! Quase que encolhida, se garantindo no poder protetor do seu lençol vermelho, diante de um garoto que mal ultrapassava seu ventre em altura, Miranda nem ao menos piscava, segurando a vista ao impávido rapaz. Como dito, prosseguiu sem respondê-lo, deixando o quarto em seu pesado silêncio prestes a desmoronar.

O mocinho, percebendo que não conseguiria convencê-la daquele jeito, deu um robótico passo para trás e anunciou: “— O Chefe acabará vindo aqui, de tanta ansiedade, caso não vá você mesma ao encontro dele. Avalie.”; depois, virou-se e rumou à porta. Quando dados alguns passos, Miranda enfim livrou sua voz: “— Espera!”, o outro assentiu, devolvendo aquela primeira postura.

Miranda levantou-se, já brigando com o susto e acolhendo o dever, e ficou como galinha perdida. “— As vestes estão no guarda-roupa… Ali. À sua esquerda… Isso…!”. Foi até lá, abriu-a e tamanho foi o susto: pano suficiente para cobrir um circo; de diversos tecidos, muitos tipos, todos os gostos - os mais variados vestidos; vermelhos todos em tons. Foi a primeira vez que conheceu naquele dia o entusiasmo, esquecida do tão recente temor, e escolheu algumas peças, com o valor do raciocínio “se me encontrarei com o Chefe, seja lá quem for, devo aparecer apresentável…”, abarrotou as mãos. Lembrou-se do garoto e, querendo pedir alguma sugestão, procurou ele; porém, percebendo a vergonha, …estava de camisola!... , se tomatizou.

Não teve nem de pedir, pois o garoto, com uma sensibilidade… profissional?, entendeu e virou-se mais uma vez, dando-lhe as costas e fechando a porta, baixando as cortinas de penumbra, cortadas somente pela fresta do chão. Miranda, assim, pôde tirar a roupa; nessa ocasião, o rapaz aproveitou para dizer: “— A de bordado azul...”, exatamente a que o feixe solitário de luz alcançava, como que iluminando a escolha. Miranda imediatamente concordou. Um vestido em degradê, cujo pescoço tinha o róseo da aurora e descia para o profundo vivo vermelho; o tronco tinha bordadura anil que escorria para a barra da saia.

Já arrumada, estava tudo certo para ir ver o Chefe. A porta abriu-se para o abraço da descoberta. Ela conheceu. Um farol apontando para seu rosto, clareação. Um corredor imensomundo. As paredes eram pétalas de girassóis vibrando como livres no prado, alguns quadros, nenhuma janela — assim como no seu quarto, tomou nota —, contínuas lamparinas, e estrada livre para qualquer voz encontrar um desconhecido e de lá trazer conhecidas novidades. E, espalhados…, outros garotinhos, crianças. Muitas delas. Ainda menores que aquele que a seguia. Todos nuzinhos, e muitos andavam com belíssima desenvoltura para o tamanho que tinham. Um rush. Entravam e saíam dos quartos, levavam bandejas etc. Os maiorzinhos, como o ao seu lado, vestiam aquela camisolinha branquíssima, clássica.

Achou tudo uma loucura: o que diabos era aquilo? Podia ter certeza que ali ninguém passava dos doze anos. Apontava!: esse tem sete, aquele quatro, ali… nove! E que barulho? Os seus passos, de trabalho, aquele chuado ruído. Uns com os produtos de limpeza, outros com alimentação, pinguinhos caindo no chão, pisados. Pareciam até formiguinhas. As mocinhas esfregando o chão incessantemente, que mal enxugada uma parte, a vizinhança dela já se manchava. Ou o insólito caso, que só não moveu Miranda pela preocupação devido a sua incredulidade do todo, de uns cinco meninos, uns com os pés nos ombros dos outros, criando uma escada humana para que o de cima pudesse acender uma vela apagada; podia ver os músculos deles tremendo, uma só gota de suor escorrer por cinco corpos diferentes.

Mas! Uma desordem, correria. O que era? E eles dois lá, parados no meio do tempo? Foram sumindo um por um, como quando as gotas atingem as margens do formigueiro. As faces derretidas em cada um, buscando abrigo. Por alguma razão, percebeu o seu “companheiro” ainda mais hirto. Quis perguntar, mas fora antecipada: “— O Chefe… Ele é ansioso…”.

O medo retornou, tomou o outro lado de Miranda, e pôs a mão no ombro dela. Era atrás deles que uma porta se ouviu abrir. Ao fim do corredor, havia uma passagem escura. Os sons de passos pesadolentos partiam da escada. Somente a sombra surgindo, estufando, monstruogro. Correr? Para onde? Temia muito.

A primeira perna apareceu, e com muito esforço superou o degrau. Perna de… pau? Articulada? A outra também? Um… boneco??? O Chefe, vestido também com elegância, com o rosto esférico, madeira, sorridente (de dente, literalmente, esse narrador não mente!). Sua boca era a única coisa que era possível perceber como humano, com o negro vermelho descendo para a garganta da definitiva escuridão que tudo engole. Talvez por isso mexesse a boca tanto e exageradamente. As sobrancelhas sempre na mesma posição, desenhadas duas diagonais linhas, uma gangorra cujo ponto alto apontava às temporas, indicando surpresa alegre, os olhos muito abertos, atentíssimos a qualquer sinal de contentamento e com o brilho de vidro… mas mesmo a boca, a maior que já vira, era que permitia demonstrar o que quer que fosse com alguma verdade.

— Que maravilha, que coisa boa! Você! Estava te esperando, minha querida! Por que tanta demora, ahn? - a voz… era agradável? Ouvi-lo era como ouvir um amigo. Qualquer alma ele vencia. Foi chegando mais perto, como que se arrastando, e sorrindo tanto. A mão estendida, devidamente apertada (dura!). Frente a frente. — Você, Miranda, agora é minha hóspede. Ouviu? Minha! Terá tudo do bom e do melhor. Os funcionários daqui são muito bem treinados, e jamais faltarão! Para provar a minha estima por ti, reservei esse modelo raro. Ao seu lado! Isso. Diga teu nome, se ainda não o fez.

— Meu nome é… - parou.

O Chefe riu bastante: — Que piadista! Não lembrar o próprio nome? Até parece. O nome dele é Ésper. O mais antigo funcionário daqui. Admito, admito… meus empregados tendem a não passar muitos anos, embora eu seja um ótimo patrão; muitas vezes eles esperam muito pela hóspede certa! Aliás, a maioria dos casos de “de-missão” parte de mim. Sou muito exigente, sabe? Escolho a dedo, mesmo que me cheguem aos montes! A partir de determinada idade, tendo a deixá-los, não suporto o clima de desolação deles achando que nunca terão a hóspede devida. Por isso, renovo meus funcionários o tempo todo, e nem por isso as regras deixam de ser seguidas. Sabe por quê? Porque sou um ó-ti-mo patrão! Ha-ha-ha!

Miranda não sabia se ria, não pôde tomar a decisão. Distraía-se entre a desconfiança na nova figura e o silêncio que apenas ele cortava, as mãos do que há em comum no vazio dessa atmosfera e com o mar esquecido pairavam sobre Miranda. O Chefe, percebendo nela o estranhamento (ele não admitia que alguém sentisse “medo” dele), ofereceu-se: “— Olhe, é verdade que quem canta os males espanta? Vamos tentar?” E começou:

Eu bem que podia

Fazer tudoutra vez

Eu bem que podia

Mas quem fez… já fez!

Riu, só ele.

Ésper, agora que sabia o nome, parecia assustadíssimo, olhando um ponto específico do chão, disfarçando. O Chefe, também, parara de rir. Os dois olhando para o mesmo lugar. Quando percebeu… manchas! De sujice, de pisadas. Um silêncio. Ah, os baldes com água, os esfregões passando de lado a outro. Ah!

— Inadmissível… Logo na ocasião das boas-vindas a minha nova hóspede… - batia as madeiras de seus dedos, criando um estalo seco, uma mistura de ponteiros e de chicote, e que percorria todo o corredor.

Tirou um controle de seu bolso, apertou um botão e, num passe de mágica, todas as inúmeras portas do corredor se abriram e as crianças voltaram a surgir. Atordoadas, corriam sem rumo com os braços para cima, dando encontrões e caindo. O Chefe voltou-se para os dois: “— Um bom patrão sempre precisa tomar as decisões mais drásticas, para manter a ordem.”.

Miranda se defendia dos esbarrões como se no espaço estivesse esquivando de cometas. Aliás, as crianças passavam pelos três e era como se não estivessem ali, acorriam, desesperadas, aos berros, sem se darem conta de mais nada. Aconteceu que um, indo para uma direção, chocou-se contra outro e bateu justamente numa parte da parede que havia um botão de emergência. As luzes se apagaram. Apenas uma, vermelha, rodante, se espalhou pelo escuro cego, levando um grito ritmado. Miranda segurou o braço de Ésper imóvel. Tamanho o susto quando viu, à frente, aquelas duas esferas flutuantes, vermelhas. Chama. Fogo. O escarlate aproximando cada vez mais. E o sorriso. Os dentes. Os dentes quadrados, muito brilhantes, crescendo, virando facas, afiando. O rosto do Chefe rente ao de Miranda, achando que estava caindo num poço, garganta do fim. Terror tamanho que a própria visão, pesarosa do sofrimento, dilatava as pupilas para borrar aquela imagem, afastá-la, mesmo que estivesse tão próxima. Ficou sozinha, Ésper a deixara, estava prestes a virar areia e desmoronar.

De repente, a luz se acendeu. Fora Ésper quem apertou novamente o botão, cancelando as trevas. O corredor novamente às cores. O menino retornou ao lado de Miranda, “— Muito bem, ótimo funcionário.”. Se afastou, voltando à postura firme, o Chefe, com um sorrisão. “— Os que estão à espera de novas hóspedes, venham para o corredor e limpem a sujeira!”, a ordem. “— Esse tipo de coisa acontece, não é? Infelizmente nossos empregados não são perfeitos, mas pouco a pouco se aproximam disso… graças a mim! Venham.” Se puseram a segui-lo, mesmo com certa hesitação; não havia outro caminho a trilhar. Ésper era o único em que Miranda decidira confiar, apesar de não fazer ideia de quem era e tê-lo conhecido há poucos minutos; se tivesse tempo, talvez refletiria tal atitude, tão insensata, aparentemente.

O Chefe a quatro metros na vanguarda. Miranda tentava livrar a tensão se distraindo com as paredes enormes, obtusas, que degradavam a cor quanto mais perto do fim. Laranja… vermelho… teto reto, sem profundidade qualquer além das sombras brigantes, estradas lisas em direção ao vazio delas mesmas. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Ademais, as lamparinas sempre se repetiam a cada três metros, ouro, de luz sem dança, congeladas.

— Que lugar é este? - cochicho.

De mãos para trás, sério, silenciado por alguns segundos.

— Para mim, era o da espera...

— Eis! A porta! Vocês podem imaginar o que há aqui atrás? - e inclinou-se para eles, esperando.

Evidentemente desistiu, mas com o mesmo ânimo — O quartinho que todo mundo tem! O da bagunça, o das tralhas, o daquilo que deixamos para ver depois, do que não presta etc. etc. etc., você não deve saber o que é isso, não é? Hóspede minha, por ser minha, deve ter muito bom gosto e ótimas maneiras, sem esses meus costumes, não é? - risadas de simpática ironia - Todavia, admito: nem tudo conseguimos reter conosco às vistas, precisamos esconder para que se resolvam por si próprias. Ou simplesmente jogamos fora, esquecemos. Ateeeeen-ção! Funcionário Nº 32.546, se apreseeeen-tar! - o chicote ecoou pelo corredor inteiro, nisso veio claudicante, lá da outra extremidade, um dos bebês. Jogava uma perna para frente, depois a outra, como se tivessem pesadas. E os bracinhos procurando equilíbrio, pendurados no próprio corpo, sem igualdade no tamanho. O Chefe, impaciente, pediu licença e foi até lá quase flutulizando, então parou ao lado, estaticou-se e pôs os dedos articulados em cima da cabeça dele, suspendeu-o no ar e trouxe o funcionário, deixando ao pé da porta fechada. — Como vocês viram, este daqui foi o responsável por aquela algazarra de há pouco. Pelo pouco que vi, notei um erro crasso meu… minha nossa, vários deles nesse dia, justamente! Que má impressão você terá de mim… Porém, repararei! Veja só esse, logo se percebe o defeito. - e de fato, o bebê era meio “diferente”: os olhos não eram bem configurados como de costume, um mais para o lado da têmpora, e mesmo o nariz não era normal, havia uma fenda ligando com a boca. Deformado. — Exato. Não sei onde estava com a cabeça…

Abriu a porta. Uma escuridão e uma fumaça transparente residia lá dentro, puxando os espíritos. — Eis onde ele deveria estar! - Pegou o bebê como se fosse um saco de lixo e arremessou negrume abaixo. Miranda segurou-se tampando a boca, Ésper engoliu em seco; tudo ali calou-se. — Ora, não tenham pena. Olhem bem, ele terá companhia. - e se aproximaram, forçaram a vista. O pouco de luz que ali entrava permitiu que vissem: um porão em que residia uma massa só, de cor indefinida, mistura de branco, amarelo, lívido, marrom, cobras ao avesso. Ainda sem modelação, dava para ver toquinhos verticais se remexendo, um ruído vivo, montão de insetos, pregos, entulhos. Viram vários bebês juntos, remendados, formando um único ser. Os sem braços, os siameses, os hidrocéfalos. Algum sangue regava aquilo, também pus, restígio de entranhas, placentas. Tesouras, agulhas, bacias, luvas. E, como se percebendo a porta aberta, a coisa pareceu se agitar ainda mais, gritar um choro. Miranda não aguentou mais ver, fechou os olhos e chorou “— Horror! Monstro!”, aos soluços. Ao seu lado, Ésper quebrou a postura, perdido, sem saber como lidar com a situação. Surpreso, abaixou-se para tentar algo. O Chefe não gostou: “— Que coisa. Podem as coisas terem dado um pouquinho errado, mas isso não é pretexto para essa falta de gratidão. Não insistirei mais. Caso queira ir embora, a escada no outro final do corredor te tirará daqui. Adeus.” A boca, antes arqueada com as pontas para cima, agora verteu para baixo. De perto deles saiu, sumiu-se, evaporando como que.

Ésper havia pousado a mãozinha nas costas dela, enquanto se recompunha. Ela prestou atenção à fala, entretanto, e quis sumir dali imediatamente. De pé, de rosto meio inchado, viu o outro fim. Violeta. “— Vamos.”, pegou a mão dele e foi.

Enquanto as cores da parede iam mudando, do vermelho para o laranja, amarelo, verde…, percebeu um mistério: um incômodo criava e crescia em seu corpo. Por quê? Doía-lhe a barriga, como se estivesse recebendo socos, e cada vez piorava, pareciam facadas. “— É um feitiço dele! Vamos correr.”, “— Sim…” - sua voz insaía, fraca, Miranda parecia firme, mesmo com as dores, olhando para frente, certeira. Ela não percebeu, mas Ésper também sentia agonia a cada novo passo, sua sobrepeliz abandonava o níveo, ganhava manchas vermelhas, enquanto o vestido dela se alvejava.

Miranda aguentava, firme, melhorando dos cambaleios, e seu braço já se esticava muito, porque Ésper não acompanhava o ritmo e era muito mais levado do que cúmplice. Em verdade, ele deixava rastros. Sangue. Seu rosto tomava-se de cortes, os braços, as pernas, todo o corpo ia se dilacerando. E ela não percebia, inebriada à esperança de chegar às escadas. E tava tão perto, tão perto, que sorriu!

Um tremor. Derrubou os dois, terremoteios. Um barulho atrás deles. Ao longe, viram a porta estar aberta, e algo parecia preso nela, forçava. Era o monstro! Os mil braços miúdos, os de fora, forçavam contra a parede para trazer o restante do corpo, percutindo por todo o corredor como as ondas de um lago apedrejado. A parede começou a rachar, a porta se quebrou, a gosma se libertou. Estridência insuportável de tantos choros e chamados, perguntas, separações. Se arrastavam numa velocidade horrível para perto deles, engolindo cada espacinho. Miranda, cujas dores foram deixadas para um flutuo de cabeça, tinha problemas para andar, agora cambaleava muito como se bêbada. Ésper somente uma espera, de olhos quase fechados. A mente ébria dela impediu que distinguisse a situação do companheiro, então apenas tomou novamente a mão dele e se achegaram enfim às escadas.

Poucos degraus, à saída de uma luz. Ela disse: “— É o portal, vamos!”. Mas não era possível, Ésper já era um funcionário.

— Eu vou te libertar, vamos! Você não tem que ficar aqui!

Mas ele já era um funcionário.

— Por favor, vem! Você é bom, você me ajudou, não fique!

Ésper… já era um funcionário.

Miranda, revolvendo a visão, o pouco do juízo, foi que conseguiu perceber as condições do companheiro. Banhado em sangue, com cortes profundos, mas ainda em pé, olhando para ela com um olhar que já não era como o de quando se viram — mesmo por segundos, esse olhar se demorava, ficava por anos. Sua sobrepeliz pingava. O Chefe, então, surgiu ao lado dele, encarando Miranda: “— Você não entende? Só as hóspedes têm direito de ver seus empregados. Eles só são contratados por causa de vocês. Cada uma tem o seu. E é aqui o trabalho deles. Nunca poderão sair. Jamais. Porque o passado não pode ser mudado. Isso não é possível, assim como a vida não é compatível com a morte.”

Enquanto ele dizia, o monstro se aproximava. Miranda explosava em espírito. Não iria deixar Ésper. Ele, com aqueles olhos que já são de regaço. Não escutaria o Chefe! Tomou novamente a mão do menino, subiu os degraus, como se levasse o mundo consigo. Seu vestido, cândido. Uma força descomunal. Ela já mal via, apenas o clarão que era o além da escada. Ia conseguir! Ia conseguir! Faltava muito pouco.

Mas o bracinho, tão frágil, de Ésper, por um triz, os tantos cortes, desprendeu-se de uma vez, como o fio partido de um cordão, e ela caiu na claridade, para frente, enquanto ele foi para trás, voltando ao corredor, aos pés do Chefe, emudecido e petrificado em sua delicadeza.

Miranda, em toda essa vida, esse desfiladeiro de águas que escorre para a cachoeira, no fim, procura no infinito dos olhos fechados um único sonho. Uma só coisa ela quer.

Ela pede, suplica, precisa de um perdão.

Os olhos abertos, ouve o médico, de luvas ensanguentadas: “ — O procedimento foi um sucesso…”

Tema: Trabalho infantil.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 06/02/2025
Reeditado em 06/02/2025
Código do texto: T8258665
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