A Peste - CLTS 30

 

O inverno de 1349 é cruel com a vila de Fuggerei,  sepultada numa nuvem escura e densa da Floresta Negra. A Peste  consome tudo. O fedor de carne apodrecida se mistura ao frio cortante do ar, deixando um cheiro de morte. O gelo cobre os corpos empilhados na praça, e os animais, antes temidos apenas nas profundezas da floresta, agora vagueiam entre as ruas, farejando os mortos.

 

Porém, antes que tudo isso começasse, ele apareceu: o Encapuzado. Nunca falava, apenas surgia, nas primeiras horas da manhã, à beira da floresta ou nas ruas vazias, caminhando sem rumo certo, como se o tempo e os homens não tivessem pressa nenhuma. Quando  aparecia, uma sensação fria – um prenúncio – se espalhava pela vila. Os ratos, pequenos e ágeis, começavam a aparecer onde ele passava. Poucos notaram, mas para quem observasse com mais atenção, ficava evidente: por onde ele ia deixava ratos. 

 

A vila, imersa no som constante do vento  e do silêncio inquietante, não sabia o que pensar dele. Alguns diziam que ele era um espírito da floresta, um ser que andava entre os mundos. Outros acreditavam que ele era um castigo vindo diretamente de Deus. O fato era que, onde ele passava, os ratos se multiplicavam, um presságio silencioso de algo terrível que estava por vir.

 

E então, a peste chegou. Sem aviso, sem piedade. Ceifando milhares de vidas por onde passava.

 

O Encapuzado continuava  silencioso, apenas observando tudo. Porém, estava lá. Sempre. À medida que a doença se espalhava, sua presença se tornava mais constante e mais temerosa pela população . Ele caminhava pelas ruas, o manto negro flutuando como uma sombra. Os ratos que o acompanhavam roíam as casas, escorregavam pelas frestas das janelas, e com o seu surgimento, a febre tomava conta, e o corpo sucumbia àquela doença implacável.

 

No silêncio da noite, uma mulher grita. Horror. O som apavora a vila inteira. Quando os aldeões correm para sua cabana, já é tarde. Seu corpo está inchado, roxo, os olhos abertos em um último terror.  

 

A primeira morte. 

 

Os ratos subiam em seu peito, se banqueteando de sua alma. O Encapuzado observa, em silêncio. Seu manto negro se agita ao vento, mas ele não se move. Não interfere.

Nunca interfere. Mas está sempre lá, presente como a própria morte.

 

Ele se vira e parte. Os ratos o seguem. Suas pequenas patas deixam marcas na neve, mas os passos do Encapuzado são outros. Não são humanos. São pegadas  pequenas, afiadas. Como se a própria morte estivesse deixando seu rastro na terra gelada.

 

E os aldeões começam a perceber um padrão. Onde ele vai, os ratos se multiplicam. A peste segue. Mas ninguém tem coragem de confrontá-lo, ninguém o questiona. Ele não fala, não se  impõe, apenas observa. Como o guardião do sofrimento, um elemento da destruição, mostrando àqueles que estavam dispostos a ver que os ratos não eram apenas os portadores da morte – eram os emissários de algo mais profundo e devastador.

 

Em meio ao sofrimento e à morte que consumiam a vila, Suzana, após perder tudo e todos, arregaça as mangas. Sem medo da morte — pois ela já lhe havia tirado tudo: seus filhos, seu marido —, começa a trabalhar incansavelmente, buscando aliviar o sofrimento daqueles que ainda restam ao seu redor.

 

Ela não sabe ao certo por que havia sido poupada, por que a morte não a levou junto com aqueles que amava. Talvez inconscientemente procure a morte, que parecia estar presente em toda a vila, mas que, por algum motivo, a evita. E assim, resta-lhe a solidão entre os sobreviventes, sem uma explicação para sua sobrevivência.

 

Suzana não sabe se sua sobrevivência é uma bênção ou uma maldição, e não está disposta a descobrir. Seu único objetivo, agora, é ajudar os enfermos, aliviando, na medida do possível, o sofrimento daqueles que restavam.

 

— O que você faz aqui, BRUXA? A morte não te quis? — grita o aldeão, com os olhos ardendo de raiva, enquanto se aproxima de Suzana. Sua voz rasga o silêncio da casa, carregada de desprezo, como se a simples presença dela fosse um insulto. — Veio trazer sopa quente para os vivos ou para os mortos?

 

Ela ignora as palavras de Rubens, sabendo que o medo da morte iminente é o que fala por ele. Por um breve momento, tem a impressão de que, na porta, está o Encapuzado, com seu manto negro flutuando na escuridão. Mas, ao olhar novamente, ele já não está lá. Apenas o vazio.

 

Suzana é vista, agora, como uma enviada do Encapuzado, como se ele a tivesse escolhido para viver e contar às futuras gerações o que realmente aconteceu naquela vila. Mas havia algo que ninguém entende é: – por que ela não fica doente? 

 

Sempre que o Encapuzado se aproxima de um moribundo, a peste o consome sem piedade. Mas Suzana… Suzana parece imune, uma presença enigmática. A cada dia, ela se torna mais temida e amada pelos aldeões, que não sabem se a veem como uma salvadora ou uma maldição.

 

 E Suzana se torna uma figura misteriosa. Além de parecer imune à peste, ela exerce um poder inexplicável sobre aqueles à beira da morte. Os mais fracos, tidos como perdidos, às vezes se recuperam milagrosamente após uma visita sua. Em contraste, sempre que o Encapuzado aparece, a peste o acompanha, consumindo sem piedade os que ele toca. A vila, em sua aflição, não pode evitar a comparação.

 

O manto negro do Encapuzado se torna um símbolo de morte e sofrimento. De algum modo, sempre que Suzana aparece, o manto a acompanha em cada movimento. A vila tem a impressão de ser uma extensão daquele ser, um reflexo entre os vivos e os mortos. 

 

Os ratos, que antes  seguiam o Encapuzado em silêncio, agora esperam por Suzana. Seu olhar fixo e distante começa a lembrar aos aldeões aquele que caminha sem ser visto, mas cuja presença todos sabem. Onde ela passa, um silêncio pesado se instala, como se o ar ficasse mais espesso, carregado de uma presença impossível de nomear.

 

Talvez ela  seja a verdadeira mensageira. Ela não teme a morte, e isso a torna ainda mais parecida com a figura sinistra que os atormenta. Onde ele passou, a peste o seguiu, e agora, quando  caminha entre os moribundos, há algo sombrio em seus movimentos, algo que não pode ser explicado. Ela não fala, não impõe sua presença, mas sua aura é inegável.

 

Ao entrar na casa de um moribundo, o vento parece sussurrar em seus ouvidos. Os ratos se reúnem à porta, como se a esperassem, e então, de repente, alguém, tomado pelo desespero e pela dor, faz a pergunta que todos querem fazer, mas não têm coragem.

 

— Você... você  é ele? O Encapuzado? Vocês são um só?

 

A palavra paira no ar, cortando-a como uma espada afiada. Suzana para por um momento, seus olhos fixos no homem. Ela sabe o que ele quer dizer. Toca sua mão e, como sempre, a morte não a toca. A confusão dos aldeões aumenta. Seria ela uma mensageira da morte? Ou a própria morte em forma de mulher?

 

Com a voz frágil, quase inaudível, ela sussurra para si mesma, como se as palavras tivessem o poder de libertá-la, ou pelo menos explicá-la.

 

— Estou  a procura dele… e da morte…

 

Uma confissão. 

 

Ela não teme a morte; na verdade, busca por ela. Todos ao seu redor já a haviam encontrado, e ela carrega o fardo de estar viva, como uma maldição. O vazio que sente, a solidão que a acompanha, faz com que deseje finalmente ser tomada.

 

Ela levanta os olhos, quase esperando ver o Encapuzado parado na porta, observando-a, como costuma fazer. Mas, ele não está lá .

 

Uma ilusão? Será que tudo havia sido uma ilusão?

 

Suzana agora caminha a passos lentos e vacilantes. O mundo a consome, finalmente. 

A noite se instala por completo, e o vento cortante da Floresta Negra sussurra palavras que ela não consegue entender. Seu olhar está perdido, vagando em meio à neblina que começa a subir do chão, como se o próprio ar estivesse se erguendo, moldando-se à sua vontade.

 

De porta em porta, Suzana olha pela fresta das casas, seus olhos perdidos no que restava da vila. Dentro das casas, o que vê: apenas morte, sofrimento e o inconfundível cheiro de corpos em decomposição. O ar está impregnado com o fedor daquilo que já não tem mais esperança. E então, como se fosse um presságio, ela vê os ratos..

 

Primeiro, são apenas alguns. Pequeninos, ágeis, suas patas escorregando pelas folhas secas que cobrem o solo da floresta. Mas logo, como uma maré, mais e mais surgem, seus corpos escuros se movendo em silêncio pela noite, formando uma trilha que se estende à sua frente. Suzana os observa com um olhar distante, sem medo, à espera deles, ciente de que está sendo acompanhada por esses seres pequenos, mas infinitamente numerosos.

 

O som dos ratos roendo a terra e arranhando as folhas é o único som que se ouve. Suzana não para, não questiona, apenas segue em frente.

 

Guiada pelos roedores, ela chega a uma clareira na floresta, onde a neblina parece mais espessa.  Ela para, olhando para o vazio à sua frente. A morte está ali, sempre esteve ali. Não é mais um mistério. É um caminho que ela já começou a trilhar, e os ratos, em sua infinita quantidade, são os únicos sinais de que ela não está sozinha. Suzana entende, não precisa ver o Encapuzado. 

 

Não precisa entender tudo.

 

Finalmente, Suzana encontra a morte.

 

E com essa certeza, ela dá um último passo, desaparecendo na neblina da Floresta Negra, enquanto os ratos, com suas patas silenciosas, continuam a caminhar atrás dela.




Tema: Praga

Juliana Duarte Honorato.



 

Juliana Duarte Honorato
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 05/02/2025
Reeditado em 07/02/2025
Código do texto: T8258211
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