O ESPELHO DE PERSEU

 

 

Este sou eu: Alexandre. Na época do ocorrido, com trinta e cinco anos, não tinha muitas pretensões ou sonhos. Achava que era sinal da velhice. Só depois descobri que a vida pode enveredar por caminhos sinuosos, enfadonhos, e, às vezes, sem saída, os quais subitamente desaparecem... ou se transformam.

 

Eu não tinha família. Aliás, tinha, mas era pequena. Eu e meus pais. Só. Nada como aqueles grupos enormes de outrora, cheios de irmãos, tios, primos, avós e avôs. Não. Aliás, eles até existiam, mas estavam a léguas de distância. Ou mortos. Ou brigados. Ou drogados.

 

Dizia-se que éramos amaldiçoados, dada uma sucessão de tragédias familiares que não vou descrever aqui. Aos poucos, a árvore genealógica foi sumindo. Não sabia se isso tinha relação com a minha biografia estagnada. Para mim, era só estória das vovozinhas.

 

Mas, naquele momento da minha vida, sentia-me como um náufrago agarrado ao escombro final de um navio afundando, levado pelas correntes sem rumo. Quando isso começou? Sei lá. Acho que sempre foi assim, esse vazio. O vazio da família e de todo o resto.

 

Eu tinha uma namorada, Helena. Sendo sincero, nossa relação não parecia um namoro, mas um arranjo entre duas pessoas frustradas de meia-idade. Sim. Cada um com sua vida. A gente só se encontrava nos finais de semana. Depois, voltávamos às nossas existências fatigantes, em empreguinhos de merda por aí.

 

Mas tudo tomou um rumo inesperado num desses finais de semana. Foi quando Helena chegou, na sexta-feira, trazendo o jeitão dela. Fazendo pouco caso. E mais um embrulho, bem grande por sinal.

 

– Que isso aí?

 

– Um espelho novo. Fui a um brechó e me dei um presente, estou precisando.

 

Ela desembrulhou o negócio. Não era bem um espelho, era um treco esquisito. Parecia uma louça prateada. Ou um grande escudo, daqueles que a gente vê em filmes medievais, com uma superfície anormalmente polida.

 

Sem perguntar, Helena substituiu um quadro da minha parede pelo adereço.

 

– Ei!

 

– Deixa eu testar! Depois levo pra casa.

 

Ela ficou a encarar sua face refletida. De um lado para o outro, fazendo biquinho.

 

– Já pode virar decoradora, hein. – Falei, irônico. Aquele item era de um mau gosto atroz.

 

– Você é que não tem imaginação!

 

Coitada.

 

Minha imaginação ia longe, subindo suas curvas. Por isso, acheguei-me nela, já com segundas intenções. Agarrei seus quadris, e o resto nem preciso falar. Ela gostou. Podia ser uma doidinha, mas aqueles contornos me fisgavam. Enquanto prosseguia a exibição no espelho, olhei por cima de seus ombros. Vislumbrei nós dois refletidos.

 

Eis que vivenciei a primeira daquelas experiências estranhas.

 

Era como se o espelho, um tanto côncavo, ressaltasse as nossas feições. Mas ia além. Além das meras aparências. Foi quando percebi que meu corpo se fundia ao de Helena. Um efeito interessante e... assustador?

 

– Olha isso!

 

– Quê?!

 

Helena me encarou, daquele jeito dela, fazendo pouco caso. Mas, assim como veio, o efeito se foi. Uma miragem evanescente. Dei de ombros.

 

– Vi uma coisa no espelho.

 

– Que é...

 

– Você tirando a roupa.

 

Ela riu, enquanto eu me atracava a seu porto. Um porto seguro, mas vazio.

 

 

***

 

No dia seguinte, levantei-me e passei pelo espelho em direção à cozinha. Tive outra sensação exótica, como se estivesse sendo sugado para dentro dele. Não que houvesse muito em mim. Mas o pouco que havia era tragado para aquele ralo.

 

Estranho? É.

 

Que se dane.

 

Então Helena chegou com seu rebolado. Estava na minha, tomando um cafezinho. E ela veio para açucará-lo. Sentou-se no meu colo e disse, meiga:

 

– Olha, convidei a Clara para vir jantar com a gente hoje.

 

– Clara? Aquela esquisita?

 

– Ela mesmo. Com o namorado.

 

– Porra, você nem me fala nada.

 

Era sempre assim. Ela respondeu com um beijo lânguido. Não precisava de muito para me convencer.

 

O dia passou e veio Clara, brilhando anêmica sobre meu apê. O parceiro era um sujeito igualmente estranho, de nome Jorge. Seu Jorge. Vou explicar por que eu não gostava deles. Primeiro, eram veganos. Você confia em quem não gosta de churrasco? Eu não. Segundo, o papo era ruim. Péssimo. Só falavam de assuntos esotéricos sem sentido. Mas não sou mente fechada, pelo contrário. Se fosse, não teria aberto minha casa para eles.

 

– Oi, tudo bem, como vai.

 

Entraram. Na sala, Clara teve uma reação ao espelho que me deixou intrigado. Ela se deteve por alguns milésimos de segundo. Sua fisionomia se transformou, como se tivesse visto algo repulsivo. Imaginei que fosse o vislumbre do péssimo gosto de Helena.

 

O jantar foi normal. Eram agradáveis, até o primeiro gole de cerveja. A partir daí, eu só tinha ouvidos para o que o álcool me dizia e deixei eles em suas conversas mirabolantes. Mas, lá pelas tantas, Clara começou com o papo de sempre. Dizia-se sensitiva.

 

Tá bom.

 

– Eu possuo um sexto sentido para essas coisas. Inclusive, tenho que comentar com você, Alex... – Ela piscou para mim, acordando-me do transe alcóolico. – Onde arranjou esse espelho?

 

– Fui eu que comprei. – Helena me cortou. – Achei num brechó.

 

– Tem algo estranho nele...

 

– Estranho, por quê? – Eu perguntei.

 

– Ele mostra mais do que deveria.

 

– Sim, deixa Helena mais peituda.

 

– Alex!

 

Ela me deu um tapinha, constrangida. Seu Jorge riu. Mas não Clara, que desviou o olhar para o chão. Inicialmente, achei que fosse a patrulha do politicamente correto, mas logo entendi que era porque ela estava aérea, perdida em algum nirvana.

 

O resto daquela noite transcorreu bem. Sem conversas chatas sobre essas coisas extravagantes. Mas a advertência da vegana me deu vontade de parar de comer carne, só para entender seu raciocínio.

 

 

***

 

 

O final de semana passou. Helena voltou para sua vidinha, e eu também. Então, na terça à tarde, um passarinho cantou no celular: “Alex, tudo bem? É Clara. Sei que parece estranho, mas podemos conversar? Aí na sua casa?”. Epa! Curioso e canalha, respondi com um “Vem. Só não conta pra Helena”.

 

Clara apareceu, lá pelas oito da noite, trajada de magreza e um sorriso safado. Gostei. Abri uma cerveja. Ela não quis.

 

– Alex, estou preocupada contigo.

 

– É? Por quê?

 

– É esse espelho! Ele é perigoso... – Disse, um tanto maternal, apontando para o objeto. Eu não queria uma mãe. Não naquele momento.

 

– Helena vai levar essa coisa horrenda. É dela. Mas... o que tem de mais nisso aí?

 

– Deixa eu te mostrar.

 

Ela tomou minha mão (opa!) e me levou para a frente do espelho. Eu não estava muito interessado no assunto. Queria saber como aquele corpo vegano era por debaixo dos panos. 

 

Mas aí a coisa tomou rumos inesperados.

 

– Esse espelho revela o que é oculto... você é um tanto vazio, não?

 

Eu não tive reação. Ela foi fundo. Um golpe rasteiro. Como sabia? Aquilo foi desnorteante.

 

– Olhe fixamente para ele. O que você vê?

 

A princípio, era só eu mesmo, Alexandre, junto da vegana. A safadeza tinha ido embora. E fiquei lá, olhando para mim mesmo, por segundos, minutos.

 

Clara pegou uma cadeira e eu me sentei. Mais alguns minutos de autocontemplação e pequenos goles de cerveja, enquanto ela acariciava minha barba. A sacanagem voltou. Mas só por um breve momento, pois comecei a ter uns pensamentos estranhos. Era eu mesmo refletido? O que havia além daquela imagem? Outros mundos? Sei lá. Sempre imaginei espelhos como portas para realidades distantes.

 

Eu logo descobriria que isso era verídico.

 

Levantei-me. Abri o braço direito. Ergui a mão. Até aí, a imagem correspondeu. Então acenei, como se estivesse cumprimentando um amigo que passou do outro lado da rua.

 

Porém, desta vez, a imagem não retribuiu.

 

Encarava-me com a mão erguida, sem se mexer. Comecei a ficar desesperado. Abri a boca, como se quisesse gritar, mas não conseguia. De seu turno, o sujeito que estava do outro lado esboçou um sorriso.

 

Um sorriso sarcástico e... cadavérico.

 

O reflexo de um morto-vivo sorrindo.

 

Credo.

 

Deixei a garrafa cair e se espatifar no chão. Quando já me preparava para correr dali e me trancar no quarto, algo ocorreu.

 

Eis que me vi preso. Quando me voltei ao espelho, o cadáver continuava lá, mas mantinha o braço direito levantado. Foi aí que percebi que... tudo estava invertido! Eu havia passado para o outro lado! Mas, então, não era eu. Era o outro. Ou era, de fato, eu? Já não sabia.

 

Senti um toque. Clara me conduziu à saída do apartamento. Estava zonzo, como se tivesse sido aspirado por uma máquina de lavar, batendo de um lado a outro lá dentro. Muito doido. A sensação que tive há uns dias foi autêntica. Mas, agora, fui realmente sugado.

 

Descemos as escadas. Quando chegamos ao térreo, mais um susto: onde estava a cidade? Tudo havia sumido.

 

– Alex, olhe bem. Aqui é a fonte do seu vazio.

 

Eu olhei. Estávamos numa área rural. Uma fazendona. Ao longe, a sede. Um casarão daqueles do Brasil colonial. Ou dos coronéis. Não saberia dizer. Um caminho de terra nos ligava até lá, circundado por mato alto e cercas. Acima de nós, o sol escaldante.

 

Ouvi um galope. Na direção oposta à da fazenda, vinha um cavaleiro. Não, não era um cavaleiro.

 

Era algo... bizarro.

 

A distância traiu minha mirada. Pensei que tivesse enxergado um homem numa montaria, mas era... como dizer, um homem-cavalo. Um centauro. Lembrava disso da minha infância, daqueles livros sobre a Grécia Antiga.

 

Eu esfreguei as vistas. Só poderia ser um pesadelo. Dei uns tapas nas bochechas. Pensei em pegar um daqueles paus da cerca, dar na minha própria cabeça e ver se acordava. Mas Clara me impediu. Ela não parecia surpresa.

 

O bicho foi se aproximando. Seu galope era elegante, e a parte humana, imponente, musculosa. Ele portava um arco e uma aljava, além do espelho, como um escudo preso às suas costas. Até que parou e nos sondou com aqueles olhos terríveis, faiscantes. Eu me senti invadido. Sério. Dava para perceber que o cara (se é que posso chamá-lo assim) foi até o fundo da minha alma.

 

Ele decidiu falar e seu tom era como o de um boi mugindo:

 

– Finalmente você chegou. Suba, pois há muito o que fazer!

 

Ele ofereceu uma das mãos. Eu entendi. Era para subir em seu lombo. Eu não poderia resistir. Não, apesar de tudo aquilo ser muito louco, estranhamente também me pareceu familiar. Não vi ameaça nele, embora sua figura impusesse respeito.

 

Cavalgamos. Eu na frente... Quer dizer, no meio, atrás do fulanão e diante de Clara. Percorremos a estrada, gotas de terror descendo abundantes sobre a pelagem da criatura. Eu não ousava direcionar-lhe a palavra, só admirei a paisagem. Lembrou-me de um daqueles quadros que a vovó tinha em casa.

 

Rapidamente alcançamos o casarão. Estava vazio. Mas ouvi uns gritos abafados, vindos de não sei onde.

 

– Desçam.

 

Descemos. Ainda sem entender nada, busquei auxílio nos olhos ardentes. O sujeitão percebeu.

 

– Tudo será esclarecido. Acompanhem-me.

 

Ele tomou um caminho marginal, descendo por uma vereda adjacente à casa, ladeada por aqueles resquícios de Mata Atlântica. O percurso foi breve e, afastando uns cipós, logo avistamos uma clareira.

 

Naquele instante, Clara soltou um grito que rasgou a atmosfera. Fiquei paralisado, sem voz. Uma onda de repulsa me invadiu, um asco profundo que parecia corroer minhas entranhas.

 

Mas, ao mesmo tempo – e de forma perturbadora – algo em mim se completou. Era como se, por um breve e estranho momento, o vazio que carreguei por tanto tempo tivesse sido preenchido. Pelo quê? Coisa ruim, só poderia ser.

 

Pois a cena que vimos era... medonha.

 

Havia um círculo de pessoas dispostas pela clareira. No centro da roda, dois troncos fincados na terra. Atados a eles, um homem negro e uma moça branca. Estavam nus. Nus e destroçados. As costas, como carne viva. Um sujeito gordo, trajando chapéu e roupa de latifundiário, carregava um açoite. E ele investia contra os dois, em chicotadas irracionais que não paravam, o ódio gravado em cada uma delas. Berros pavorosos provinham dos flagelados. O cheiro. Ah, o cheiro. Nunca vou esquecer do odor daquele ambiente. Uma mistura de sangue e excrementos, pois algum deles tinha evacuado por causa do suplício.

 

Era uma cena aterrorizante. O mal emanava dali em ondas, na cadência insana das chibatadas. Um horror antigo e disforme. Eu tentei subir de volta à senda, mas o centauro me repeliu com autoridade.

 

– Alexandre, aquele de chapéu é seu tataravô.

 

Subitamente, parecia que era eu a receber os açoites, na forma das palavras do homem-cavalo. Quase vomitei, como se, dentro de mim, houvesse uma massa escura e deformada que precisava ser expelida.

 

– Ele foi o autor de um grande mal. Destruiu muitas vidas. Essas duas foram as primeiras, a de sua filha e de um criado, que namoravam às escondidas. Depois, outras foram mutiladas, e é por isso que a sombra desceu sobre sua família. Mas posso dar um fim ao drama. Com sua aprovação, lanço uma seta sobre ele, aniquilando-o. Só um aviso: prudência. Sua decisão afetará o curso da história de um modo que poucos podem prever.

 

Eu hesitei. E nem sabia o porquê.

 

– O que está esperando, Alex? Acabe logo com isso! – Clara murmurou, feroz e impaciente, enquanto suas unhas rasgavam os próprios lábios.

 

Eu estava estático. Ora visava a cena horrenda, ora voltava-me ao centauro. As faíscas de seus olhos derretiam-me na dúvida. O que fazer? A resposta parecia óbvia, mas o alerta pela “prudência” teve grande impacto em mim.

 

Contudo, antes que pudesse deliberar, Clara me agarrou pelos ombros. Nós nos encaramos, eu um tanto perdido; ela, inflamada. Entendi que queria me ajudar com algum conselho. Mas seus lábios não se mexiam. Era bem esquisito, e nós ficamos assim por quase um minuto. Eu me sentia como um prisioneiro de seu olhar.

 

– Mate-o logo! – Ela enfim disse, num sussurro baixo e hipnotizante, que domou a minha vontade debilitada. Mas, quando eu já estava inclinado a dar a ordem final, um urro de morte cruzou a mata: um dos cativos estava em seu estertor. Aquilo me acordou do estranho transe gerado pelos dizeres de Clara. Mirei o centauro, e a brasa de seus olhos foi como um lampejo na escuridão.

 

– Acerta o traseiro desse desgraçado. Mas não é pra matar, não.

 

O bichão riu, abriu o arco e lançou a flecha, que percorreu veloz o ar. Entretanto, quando ela se aproximou do alvo, desapareceu, como se tivesse atravessado outro plano. Mesmo assim, deu para ver que atingiu o carrasco, que subitamente parou as chibatadas e pôs-se a pular de lá para cá, com a mão nas nádegas, para espanto das pessoas na roda.

 

Eu senti uma satisfação cruel nesse momento. Mas não Clara, a chata.

 

– Por que não o matou?!

 

– Eu não poderia reescrever a história, apagar o mal... se apago este, logo surgem outros. Talvez minha família merecesse carregar essa chaga, um fardo que nos foi justamente imposto. Só me resta pedir perdão a todos que sofreram.

 

– Seu imbecil!

 

Ela passou a me arranhar descontroladamente, seus olhos tomando um formato... reptiliano. Sei lá. Bizarro. Para meu pavor e asco, cobras começaram a sair de seus cabelos. Eu a empurrei para longe, para o mato, e corri de volta pela vereda feito um cão acuado. Quando cheguei até o casarão, lá estava o centauro, como se nunca tivesse saído dali. Perguntei espavorido:

 

– O que foi isso?! Ela parecia possuída!

 

Ele me ignorou. Apenas sacou o escudo lustrado e me entregou.

 

– Tome. Não olhe quando ela vier.

 

Apoderei-me dele e pude ver o reflexo de Clara, ou da coisa que ela havia se tornado, subindo a trilha atrás de mim. Agora, era um ser hediondo. Sua pele estava escamosa e a cabeça, tomada de serpentes. Sua íris era como um orbe amarelo-esverdeado, entrecortado por fendas escuras, abissais, que queriam me tragar.

 

Não tive tempo de admirar a criatura. Quando ela cresceu no reflexo, subitamente girei as pernas com o escudo em punho, desferindo um violento golpe em sua face. Ela caiu no chão. Eu não esperei. Lancei-me sobre si e continuei as estocadas com o objeto, até que seu rosto se tornou uma massa disforme. Para meu horror, ao me levantar, as cobras se embrenharam no mato alto, sumindo de vista.

 

Resfolegante, vislumbrando o cadáver asqueroso, percebi que o fogo infernal que vinha do sol deu trégua, quando uma nuvem escura se interpôs e ficou. Foi um alívio, ainda que sinistro. Eu estava perdido, absorvendo o episódio terrível, quando me virei para o centauro em busca de respostas, ele que a tudo assistiu silencioso e distante.

 

– Pode me explicar o que acabou de acontecer?! – Indaguei, trêmulo.

 

– Celebre! Pois você herdou o divino Espelho de Perseu, há muito perdido!

 

– Helena encontrou naquele brechó...

 

– Sim! Um artefato antigo que desvela realidades ocultas! Ele expôs a praga que pesa sobre sua família, a raiz do vazio que carrega. Mas você foi sábio: abdicou do próprio bem-estar e escolheu não desfazer os laços do passado, evitando assim causar outros tantos males. Não foi covarde, escondendo o egoísmo sob o manto das boas ações.

 

– Por que Clara me atacou? O que foi aquilo... ela se tornou a Medusa?

 

– Ela desejava desesperadamente o seu amor. O Espelho revelou para ela que, ao mudar a história, um capricho do destino a colocaria ao seu lado. Tomada por esse anseio, usou de sua astúcia para enfeitiçá-lo, guiada pela essência de sua alma, uma das incontáveis filhas da Medusa. Mas você, firme como Perseu, resistiu às palavras venenosas!

 

– Bem, obrigado! Uma honra. E... quem é você? Por que não fez nada enquanto o pau quebrava?

 

Ele riu, uma risada profunda que abalou minhas estruturas.

 

– Sou Quíron. Fui enviado para educar os homens, e faço isso do modo que me parece mais correto.

 

– Quíron, o centauro... e eu achava que tudo isso era mito.

 

– Pode até ser, no seu mundo. Mas existem incontáveis mundos, além do seu entendimento!

 

O bichão terminou a frase com mais uma gargalhada. Era como se trovões ribombassem e sacudissem a própria terra sob meus pés. Abruptamente, senti-me engolido por um terremoto, vendo o casarão desmoronar e as árvores cederem ao peso daquele som. Quando ergui os braços, num gesto inútil de proteção, o caos cessou de súbito, e percebi que retornara à minha antiga sala.

 

 

***

 

 

Depois daquela noite, Clara sumiu. Não, ela não morreu (neste mundo). Só me bloqueou no celular. Então, no sábado, Helena veio. Queria recolher o Espelho. Ela chegou e deu comigo a contemplá-lo.

 

– Fazendo o quê aí? Você tá estranho há alguns dias, hein...

 

Era linda, daquele jeito mesmo, fazendo pouco caso.

 

– Vem cá. Observe.

 

Observamos. Não sei se ela percebeu, mas, quanto mais olhávamos, mais os nossos contornos se misturavam. O Espelho revelava uma única figura, estranha e fascinante: traços meus e dela se mesclavam em um só corpo. Nossas formas se dissolviam e se fundiam, como uma paleta de cores nas mãos de um pintor. Aquilo não era apenas um reflexo – era uma verdade que o Espelho insistia em mostrar.

 

Então, virei-me para ela e disse:

 

– Casa comigo?

 

Helena não conseguiu piscar, boquiaberta.

 

– Alex... estou surpresa. Assim, do nada?

 

– Já deveria ter feito isso há muito tempo.

 

Helena desviou o olhar para o chão, mordendo o lábio. Por um momento, temi que recusasse. Mas ela ergueu os olhos, que agora brilhavam.

 

– Sim, eu aceito!

 

Naquele instante, ela fez caso, e meu vazio começou a se dissipar.

 

Ah, se eu tivesse mudado a história!

 

 

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Temas: tecnologias ancestrais, criptozoologia, praga (familiar)

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 01/02/2025
Reeditado em 20/02/2025
Código do texto: T8254453
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