PORQUE OS MORTOS VIAJAM RÁPIDO* - CLTS 30
“Seus homens impotentes,
com seus encantos tolos,
não podem protegê-la
do meu poder. Eu a condeno
à vida miserável de fome eterna
de sangue vivo.”
(Dracula,
Bram Stoker’s Dracula, 1897)
Ano do Senhor - 1349
Londres, Inglaterra
Gomes, como ficou conhecido pelos círculos literários que frequentava, temia que seus furtos de cadáveres fossem descobertos. Agora que xeretavam atrás do contraventor ladrão de túmulos. Por isso a ideia pareceu muito atraente, quando seu assistente Peter, sugeriu que eles colhessem, numa só noite, a safra de uma semana inteira de corpos.
— Perspicácia, meu jovem. Seremos só nós dois. Ninguém mais envolvido. Por isso, devemos ser ensaboados, como os bagres. Eu abro, cavo e você vem atrás, recolhendo eles. E no menor sinal de alerta, nos escondemos, apagamos as tochas, os candeeiros, até que tudo fique em paz novamente. Entendeste?
— Eu sei, mestre. Sou eu quem mais corre riscos nesse negócio. Sei como proceder.
— Bom garoto. Serás recompensado. Esqueças os xelins. Te pagarei 5 pences. Depois dessa, talvez eu até me aposente. E quem sabe tu não embarcas pelas tuas aventuras marítimas em busca de fama e novas terras?
— O mar esperará. Isso tudo é maior. E um dia se ouvirá falar do que estamos fazendo aqui.
— Obrigado, meu jovem. Mas sem bajulações. Devemos ir. O sol está baixando. A noite à espreita, quer participar do caos humano desse lado.
A Inglaterra, assolada pela peste, ruía em desolação e morte. Pessoas morriam aos borbotões e as valas coletivas não davam conta das pilhas de corpos que tinham de ser queimados. No meio desse caos, Gomes via-se em conflito sobre seus métodos para conseguir humanos frescos, haja vista que o cenário apocalíptico era desfavorável. Os que ousavam desafiar as rígidas imposições do rei Eduardo III e dos médicos, contra o contágio, eram famílias muito poderosas e ricas ou o clérigo e podiam receber um enterro cristão, como era o costume em tempos comuns. Só que nem os privilegiados, ultimamente, pareciam usufruir dessas benesses. Pois a praga espalhara-se tão rapidamente, que as ruas pareciam tapetes de folhas amarelecidas no outono. Cada folha, um morto. Alguém que de manhã, tomou café contigo, riu, brincou, contou piadas, a noite estaria esticado e rígido, no chão frio e molhado da chuvosa Londres.
Seguindo as baratas que cruzavam as sarjetas, deparamo-nos com o cemitério abandonado, que diferente de East Smithfield, não se destinava aos portadores da peste maligna, mas jaziam os mortos de outrora. Enfileiradas, parecendo formigas, peregrinavam na procissão da madrugada, quando uma mão ossuda, surgida do nada, apanhou tantas quanto conseguiu e as empurrando com gana para dentro de uma bocarra, fazia matar a fome da criatura à qual tal mão e boca pertenciam. Saltou do túmulo, empurrando a tampa de pedra, até a mesma cair e quebrar. Como um macaco, agachado, o homem apanhava com as duas mãos as baratas, que afugentadas se espalhavam. O feitio cadavérico de suas feições causava horror e repulsa. Uma gosma verde de líquido putrefato expelia-se de sua pele, principalmente no rosto e a mastigação raivosa lembrava o som de gravetos sendo estraçalhados.
— Venham pequeninas. Baratas, aranhas, moscas. É nobre o vosso sacrifício. Cada vida que reside na menor criatura, é valiosa. Vidas para o mestre, — Silêncio agora. Vem vindo alguém. Vida humana. Nos escondamos.
— Que noite, meu pupilo. Que noite. A providência fez que fosse hoje. Ves como o diabo está solto, mais do que em qualquer noite desses tempos malignos?
— Eu quase não consegui chegar, mestre. Fui pego por um ladrão, que tentou me matar. Vi estupros, assassinatos, roubos, gritos de desespero e gritos de morte. Nada diferente desses dias. Mas estranhamente mais sombrios.
— Podes acreditar no que quiseres, meu mancebo. Fim do mundo, castigo. Eu não ligo. Deixemos de falar. Esta noite este cemitério é o lugar mais quieto de toda a Londres. Vamos.
O comedor de baratas e demais pragas, ouvia esses dois de dentro do seu túmulo. E pensando consigo, concluiu que eles estavam enganados quanto a quietude daquele lugar e que em breve os gritos deles preencheriam cada molécula de silêncio do ar gelado.
Perto dali, em uma mansão no distrito de White Chapel, Lucy, uma jovem ruiva, de formas e saliências de dar inveja à deusa Vênus, convalescia progressiva e milagrosamente, depois de ter contraído a peste. Os médicos, assustados, passaram a examinar essa curiosa recuperação, convencidos de uma possível cura. Menos cautelosos, trocaram as varas compridas em cujas pontas eram amarrados forcados, por luvas. Chefiados pelo Dr. Seward, passavam 24 horas, revezando-se, sem intervalo, para encontrarem a resposta à pergunta que todos se faziam. Como alguém conseguiu se curar da peste? Não havia cura. Isso era algo impossível de ser alcançado pela ciência. Os mais supersticiosos acusavam Lucy de ser uma bruxa e a queriam matar. Retirando o chapéu e a máscara, que ao capuz preto se unia, Seward expos-se ao corpo da infectada. O artefato macabro que cobria o seu rosto o sufocava e mesmo o aroma fresco de ervas, flores e cravos no interior dele, era intragável. Não havia mais motivos para usá-lo. A febre dela baixara, as manchas negras sumiram. Ela se alimentava e sua cor voltou.
— Menina. Oh, minha Lucy. O que tu és? Um recado de Deus? O que não entendemos do teu caso? Único. Certamente uma escolhida. Com um propósito. Deus está contigo.
— Deus, Seward? Tu, estás falando em Deus? Não, meu amor. Não foi Deus quem eu vi. Ele é alto. Sua presença causa um frenesi e uma inquietação, que não se consegue combater. Seus olhos. Aqueles olhos. Não existe vida neles. Mas ele vive. Ele vive.
— Um demônio?
— Para mim ele é o Deus dos meus domínios. Ele me possui, sem encostar em mim. Me controla. Eu sou sua. Mas ele não é meu. Não é de ninguém. É o senhor de si mesmo.
— Descanse, Lucy. Tu não dizes coisa com coisa. Mas não estais delirando. Não tens febre. Precisas de isolamento. Viajaremos para Norfolk amanhã pela manhã.
Peter, cansado de carregar peso, desenrolou a faixa de pano que cobria seu nariz e boca e sentou-se sobre o degrau de um sepulcro para descansar. Resmungava, xingando o seu senhor, pela tarefa injusta de ter de carregar aqueles cadáveres pesados. Quando ele, mais ágil e jovem, poderia ter sido encarregado de abrir as sepulturas. Algumas vezes, ele pensava em mandar para as cucuias toda a gratidão que sentia pelo velho e ir embora. Percebera, há tempos, que toda essa ladainha que ele desfiava vez por outra era só o discurso de um politiqueiro, para mantê-lo na rédea curta. Ouviu um barulho estrondoso. Parecia como um grito abafado e depois ossos se partindo. Ficou apavorado e correu para se esconder. Vinha da parte leste, que era onde Gomes estava. Ficou com medo de chamar pelo seu mestre e atrair o que quer que fosse para si. Cresceu nas ruas, por certo ele sabia que a lei que rege as ruas é a lei do cada um por si.
O ar gelado do lugar provocava calafrios profundos e o medo o sufocava, como mãos invisíveis em sua garganta. Um passo em falso fez com que uma laje debaixo dos seus pés cedesse e o barulho chamou a atenção de algo. Era um animal. Ele supôs, pelo rugido. A fera podia ser vista pela luz vívida que refletia de seus olhos injetados. Eram olhos perturbadores e hipnóticos. O demônio mantinha preso em seus braços um corpo desfalecido. O pescoço dilacerado fez com que a cabeça da sua presa tombasse para trás e pudesse ser visto por Peter. Era o seu mestre. Nesse momento o predador grunhiu como um gato acuado, mas não o atacou. Apenas disse:
— Prove, criança. O sangue. Sangue é vida. Quer desfrutar da vida eterna?
Peter ameaçou fugir, mas receou ser perseguido pela criatura. Ele se aproximou.
— Se eu beber sangue, terei a vida eterna?
— Creia, meu jovem. Você crê?
— Acreditei em muitas coisas. Sempre fui traído.
A criatura desvencilhou-se do corpo de Gomes. O impacto com o chão, fez Peter estremecer. O astuto monstro, de olhos penetrantes, fez um corte em seu braço direito, com a unha comprida e afiada do seu dedo indicador esquerdo.
— Beba o sangue e alimente o seu semelhante com o seu. É um pacto eterno para a perpetuação de nossa espécie. Tu não encontrarás tanta fidelidade entre os humanos. Cuide dos teus e os teus cuidarão de ti. Nisso há honra.
Na estrada, a meio caminho de Norfolk, uma carruagem fechada, puxada por dois cavalos fortes, levava Lucy, Seward, Holmwood, Helen (uma empregada) e John (o serviçal). À deriva, envoltos em um oceano de mortos e destroços. No rastro do carro que os levava, uma comitiva muito mais numerosa de ratos se movimentava depressa e ritmada, como parte de uma grande massa unida. As pragas farejavam os mortos e sobre eles, precisavam de alguns segundos para que somente os ossos sobrassem. Alimentavam-se da carne e cresciam de forma espantosa e rápida. Proliferando-se vertiginosamente.
Os viajantes daquele carro e até os cavalos, foram devorados inteiros. Com exceção de Lucy, que seguia a pé, intacta e convicta de sua inocuidade. Uma das órbitas de Seward a encarava, vazia, enquanto um rato, pelo lado de dentro, enfiava seu focinho, alimentando-se do cérebro apetitoso que recheava aquele crânio. A ruiva olhava em volta e gargalhava na cara da morte e do mal que assolava o mundo e que não podia encostar nela, nem a atingir. Talvez por essa mesma razão, sentira fome. Fome de putrefação e doença. O que a fez abrir alguns caixões pelo caminho. O corpo coberto de carvão a fez espirrar quando abriu a tampa. A defunta possuía algumas relíquias com as quais fora enterrada, entre elas um crucifixo. Lucy fez uma careta e arrancou-o, jogando-o longe. Alguns quilômetros à frente, um velho em estágio avançado da doença, vomitava e expelia sangue pelo nariz. Seus bulbos craquelados e negros salpicavam seu corpo. Lucy acabou com o sofrimento da pobre alma, cravando seus dentes em seu peito e bebendo o sangue. Depois fez o velho moribundo beber o dela. Ele não se transformaria em vampiro. Ela sabia. Pois ele era portador da peste. Mas isso o curaria. O sangue dela era a cura. Sentiu-se redimida com isso. Como uma santa.
A jovem de 21 anos, ia a algum lugar. Ela não sabia onde, nem como chegar. Algum guia oculto sussurrava nos seus ouvidos.
— Meu Peter. És jovem e tens energia. Preciso que me leves ao meu mestre. Ele quer a jovem bonita para ser sua noiva. Mas a lasciva Lucy é prometida a outro. O homem que a conquistou é muito mais poderoso que o mestre. Ele se chama Conde Draculea, dos selvagens confins dos Cárpatos. Se o meu mestre provar o sangue dela, ele será destruído, esmagado e pulverizado como inseto no fogo. Temos que impedir esse encontro.
— Uma aventura, mestre?
— A maior de todas, rapaz. Junte as coisas, desmonte o acampamento e apague o fogo. Os aldeões perceberam a nossa presença. Precisamos partir. O tempo urge e Lucy está se aproximando dele. Eu sinto. É hora.
—- Isso parece perigoso. Eu não sei se estou pronto.
— Mais perigoso do que roubar cadáveres para o teu antigo mestre? Poderiam ter adquirido a peste. Digas. Para que finalidade vós precisaveis deles?
— O mestre era vago sobre isso, se esquivando a maioria das vezes. Mas eu escutava uma coisa aqui, outra ali. E o motivo era que o homem para quem o mestre trabalhava, fazia experimentos com pedaços de corpos para animá-los. Choques, resfriamentos, imersão e poções. Coisas das quais nunca se ouvira falar, como: regeneração, clonagem e reprodução celular. Conhecimento acima da nossa compreensão.
—- Isso é conversa de maluco para mim. Isso, sim!
—- É o que parece. Por isso não conto sobre essas coisas a ninguém.
—- Tu és um jovem inteligente. Não te apegues à crendices desse tipo.
— Mas nos faz pensar se o homem, algum dia, poderá fazer a carne morta pulsar novamente. Ligamentos e ossos se unirem depois da morte. O coração voltar a bater.
O céu noturno de Norfolk, invejoso, pareceu reivindicar para si todo o mal e horror debaixo dele e com nuvens escuras e densas se revestiu. Lucy, alojada no castelo, aguardava o seu noivo com fervor. Nua na cama, ela se contorcia de desejo enquanto a sombra esguia de Draculea desenhava os seus seios e a tocava como uma presença viva. Apalpou suas coxas e afastou suas pernas. A sua língua tocou o clitóris dela como ferrão de abelha. Ela estremeceu e sua vagina se abriu como as conchas da ostra. Ficou molhada e fraca e ia perdendo os sentidos quando ele a beijou. Era um homem agora. Com um corpo. Os cabelos compridos e encaracolados. Uma barba bojuda e bem escanhoada. Nariz adunco e presas caninas pontiagudas. Mas antes que os dois pudessem consumar seu amor, as paredes do quarto desabaram em um estrondo descomunal e Conde Orloff apareceu, estufando o peito, empurrando os braços para trás, como se do peito ele projetasse a força necessária para fazer com que os dois amantes fossem arremessados violentamente no chão. O mestre, subjugado pelo discípulo, parecia, ao contrário, mais poderoso do que o seu oponente.
Lucy ficou desmaiada no chão. Como uma recém batizada, ela ainda precisava descansar na terra natal em que fora ordenada e não tinha forças suficientes. Draculea, recomposto, transformara-se em um monstruoso e gigantesco morcego humanóide, com braços compridos e disformes que lembravam as hastes das asas dos mamíferos voadores, mas sem elas. Orloff, ao confrontar-se com tamanha sessão de exibicionismo de seu algoz, enfureceu-se, encheu os pulmões de ar e vociferou um brado bestial, metamorfoseando-se em rato. Com os dois dentes da frente pronunciados, como são os dos ratos, nariz alongado, bigodes e orelhas de roedor. Como dois gorilas, chamando um ao outro para a briga, eles se digladiaram.
Peter e seu mestre, o vampiro que o batizou, chegaram enquanto o embate escalonava e os dois vampiros, bem cansados, resistiam heroicamente. Mas ao verem os convidados indesejáveis, ambos tiveram a mesma ideia e mudaram a composição de seus corpos para a de hordas incontáveis de ratos e morcegos, de acordo com as características de cada um. Os enxames infernais feriam e castigavam como áspides de serpentes e os dois correram enquanto podiam, até serem rendidos, sem forças para se defenderem, enquanto as bestas, agora em suas formas naturais, deram prosseguimento à luta. Enquanto lutavam, lá fora, os dois convidados, recuperando-se, buscavam reagir para remediar a situação. Peter conseguiu apoiar-se em seu cavalo e da algibeira na cela do animal, tirou uma balestra e estacas de madeira. Seu mestre o ajudou. E no momento exato, em uma distância segura e uma pontaria certeira, Peter conseguiu atingir em cheio o peito de Draculea, enquanto ele, levantando-se depois de um golpe, buscava tomar fôlego para recomeçar. Lucy não acreditou quando viu seu amor caído no chão, com uma estaca atravessada no coração. Ela jogou-se sobre ele e desferiu maldições e ofensas sobre os culpados. Engatinhava com as gengivas arreganhadas e os dentes à mostra. A sua nudez provocante distraía Peter, que foi protegido pelo seu mestre, que o recuou para o canto. Tirou de algum lugar uma hóstia ungida e a viu se dissolver e pegar fogo, sobre a testa de Lucy. Encorajado pela destreza do amigo, Peter fez um círculo em volta de Lucy com carvão, enquanto empunhava um crucifixo de madeira para mantê-la presa, e o selou com sal, para criar uma barreira santa.
— Vós matardes a vida. Seus animais! Destruíram tudo o que resistiu ao tempo e a morte. Tudo o que vós lamentardes e chorardes. Vós matardes o amor e a resiliência. Vós não sabeis o que fizerdes. Seus infelizes, bastardos!
— Nós te salvamos dele. Isso nós fizemos. Agora estás curada. Não és mais uma vampira.
— Do que é que estais a falar, seu verme?
— enfureceu-se ela, no mesmo momento em que seduzia o pobre garoto, que a libertou do círculo, fazendo uma abertura na barreira de sal, o limpando com os seus pés.
Livre, Lucy enfiou uma estaca que estava no chão, no coração do mestre do jovem, causando a sua morte, instantaneamente.
Sobre o corpo quente e suado do rapaz, Lucy se debruçava, não com desejo, mas com ódio mortal.
— Seus desalmados e burros! Mataram a vossa salvação e deixaram viver a peste. Quem escapou, naquele bando enfurecido de roedores pestilentos, foi a praga que os está dizimando, um por um. Mereceis isso. Entre viver e morrer, escolhestes morrer.
— Escolhemos mal, tu o dizes. Imperatriz das trevas, eu te intitulo. O mal dos homens é o sofrimento causado por não saber lidar com suas escolhas. Fui surpreendido por um discípulo do próprio mal, a peste que nos assola. E não tive outra escolha.
— Tu ainda falas? Estais aqui? Não temes pela tua vida? Posso te devorar inteiro, agora mesmo. Seu reles pedaço asqueroso de carne.
Nesse instante, Peter se aproximou ainda mais de Lucy. Não se impressionava com suas presas afiadas expostas ou com aqueles olhos de felino no escuro. Tentou beijá-la, mas ela se afastou dele. O fitou por alguns segundos, para depois começar a lambê-lo, como a mãe gata lambe a cria. Não havia sensualidade ou lascívia. Beirava o patético. Uma inapta amostra de não parecer virgem. E mesmo que ela não fosse, como vimos em sua tórrida paixão com Draculea, sentiu-se frágil perante aquele rapaz e apresentava comportamentos estranhos. O amor os confundia, os vampiros. Poderia aniquilá-los.
— A morte quer me arrebatar. Eu sinto, — alardeou o mancebo, se afastando dos encantos irresistíveis da amável Lucy. Encostado na parede fria do castelo, com os braços estirados e arfando como uma presa em perigo.
A vampira sedutora dançava na sua frente e o seu coração palpitava no peito. Vacilante, criou coragem para o que teria de ser feito. Cravou a estaca que escondia debaixo de sua roupa e arremeteu com tanta força, no coração dela, que fez Lucy desabar ao chão, gritando em agonia. Ela derramou uma lágrima e sussurrou algo. Ele se aproximou para ouvir.
— Eu não sou tua ini-mi-ga... — e logo em seguida caiu morta, com os olhos abertos e sangue escorrendo pela boca.
Mas sim, ela era. Inimiga de todo o gênero humano e Peter, imbuído de uma missão de vida, não iria descansar até encontrar Orloff, seu grande rival, e acabar com ele, da mesma forma. Havia encontrado finalmente a sua razão de viver. Caçaria essas bestas até que a legião fosse dizimada e a humanidade fosse salva do grande mal e da peste. A morte de seus dois mestres, estranhamente, não alimentou a sua vingança. Mas o libertou para se tornar quem devia ser.
Fora da atmosfera sorumbática do castelo, cidadãos queimavam corpos nas encostas e em carroças quebradas. E enquanto aquele pedaço desolado de Norfolk queimava, uma labareda se desfazia e se refazia de forma estranha e sobrenatural. Peter viu desenhar-se no fogo a face do mal puro e encarnado. Formou-se um sorriso alongado e cheio de dentes pontudos. A gargalhada bestial não era só a projeção do fogo, mas podia ser ouvida agora. Ecoando, como se viajasse vinda de longe, até atingir o volume máximo e insuportável. O que fez o rapaz tapar os ouvidos e cair no chão, ajoelhado. Seus nervos, já fracos, desabaram. E do desmaio seguiu-se o sono. Peter dormiu entre as pilhas de corpos e a peste.
FIM
TEMA: PRAGAS (Principal) e uma pitadinha de TRABALHO INFANTIL (Secundário)
*O título do presente conto é uma citação de Ellenore, poema do escritor alemão Gottfried August Bürger, feita por Stoker em Drácula, e aparece quando a Dona da pensão em que Jonathan Hacker está hospedado, tenta dissuadi-lo de ir até o Conde. Quando não consegue, ela lhe entrega um rosário e menciona a referida passagem.