Gárgulas

Rodrigo odiou a casa nova. Odiou a cidade nova. E odiou ainda mais os novos vizinhos. Não conseguia entender por que seus pais tinham que se mudar. Compreendia a justificativa do emprego do pai, mas sabia que ele trabalhava escrevendo — artigos, resenhas, qualquer coisa que pudesse ser enviada por e-mail. Eles podiam muito bem ter ficado na casa antiga.

— Tenho que ficar perto da editora! — dissera o pai, encerrando a discussão antes de se mudarem para Vila Magnólia.

Daniel, seu irmão mais velho, parecia não partilhar do mesmo sentimento. Na verdade, ele adorara o novo quarto, principalmente por causa da janela. De lá, podia admirar a Catedral de Nossa Senhora Imaculada, uma construção imponente, antiga, com suas torres góticas que rasgavam o céu. Mas o que realmente chamava a atenção de Daniel eram as gárgulas. Quatro delas, espalhadas pelos cantos do telhado, grotescas e ameaçadoras.

Rodrigo não gostou das gárgulas. Algo no modo como pareciam vigiar a cidade o incomodava. Suas expressões congeladas, presas entre o grotesco e o animal, o faziam desviar os olhos rapidamente. Mas não importava o quanto tentasse ignorá-las, ele sempre acabava com a sensação de que estava sendo observado.

De seu quarto, Rodrigo também tinha a visão de uma das gárgulas. À noite, preferia fechar as cortinas para não enxergá-la. Nas noites enluaradas, a sombra que ela projetava na parede parecia se mover. Claro, sabia que aquilo era causado pelo movimento da lua em relação à Terra. Aprendera isso na escola. Mas mesmo compreendendo, não era o suficiente. Ele fechava a janela todas as noites. Explicação ou não, aquelas coisas pareciam mais suportáveis quando mantidas fora de vista.

E foi justamente o fato de não vê-las que o assustou.

Certa noite, acordou sobressaltado. Um som o despertara — algo entre um grito e o arranhar de unhas, bem próximo da janela. O peito subia e descia rápido enquanto ele tentava lembrar se sonhara. Adormecera lendo uma história em quadrinhos, que agora estava toda amassada sob seu corpo, perdida entre as cobertas.

A luz azulada da lua atravessava a janela e a cortina entreaberta, derramando-se pelo quarto em linhas quebradas.

Rodrigo tomou um gole de água do jarro sobre o criado-mudo. Não se lembrava de ter levado água para o quarto antes de dormir. Talvez tivesse sido sua mãe. Com a garganta ainda seca, levantou-se, hesitante, e caminhou até a janela. Com cuidado, espiou por uma brecha entre as cortinas.

Lá estavam as torres da Catedral. Uma cruz em cada uma. A torre do sino bem ao centro. Mas havia algo errado. Algo faltando.

Rodrigo piscou algumas vezes, tentando focar. E então percebeu: elas não estavam lá. As gárgulas haviam desaparecido!

O coração disparou no peito. Ele apertou as cortinas com força enquanto seus olhos vasculhavam o céu, procurando. Nada. Nem sombra, nem movimento. Apenas o silêncio e a luz pálida da lua. Forçou-se a pensar que talvez tivessem sido removidas — arrancadas para manutenção ou por algum motivo que ele desconhecia. Tentou enfiar esse pensamento na cabeça, usá-lo como uma âncora para a lógica. Não podia haver outra explicação. Era isso. Tinha que ser. Mesmo assim, quando se deitou, demorou muito para conseguir dormir.

***

Na manhã seguinte, ao abrir as janelas, seu coração quase parou.

Elas estavam de volta. As gárgulas. Lá no topo da Catedral, exatamente onde sempre estiveram.

Rodrigo sentiu o chão tremer sob seus pés. Passou as mãos pelos olhos, como se quisesse apagar o que estava vendo. Não podia ser. Ele sonhara com tudo aquilo? Ou... não?

Dois dias depois daquela noite, o noticiário da TV trouxe uma manchete que fez o sangue de Rodrigo gelar: dois corpos haviam sido encontrados na orla do bosque que cercava a cidade, na parte leste. Mortos de forma brutal, estraçalhados por algum animal, segundo os repórteres.

Rodrigo não conseguiu tirar os olhos da tela. O coração batia forte, as palavras do apresentador ecoando em sua mente. Animal? Será? Ele sabia que não. Aquelas coisas... as gárgulas. Elas haviam saído de seus postos naquela noite. Ele tinha certeza. Certeza de que tinham algo a ver com as mortes.

Depois disso, passou a vigiar a Catedral obsessivamente. Dia e noite. A cada brecha na cortina, seus olhos buscavam as torres. Elas estavam sempre lá, imóveis, como se nunca tivessem saído. Mas ele sabia a verdade. Tinha visto. Elas eram mais do que simples esculturas. Eram algo vivo, algo que não deveria existir.

Os dias viraram semanas. Quase um mês se passou. E as gárgulas não se mexeram. Nenhuma outra morte ocorreu. Nada fora do comum.

Mas Rodrigo não conseguia relaxar. Continuava a observá-las, esperando. Esperando pelo momento em que elas se moveriam de novo.

Certa noite, estava sentado junto à janela, uma história em quadrinhos aberta em suas mãos. Apesar do enredo, sua atenção estava dividida. A cada duas ou três páginas, lançava um olhar furtivo para a catedral, vigiando. As gárgulas estavam lá, como sempre, imóveis. Ele voltou ao quadrinho, tentando se concentrar, mas o desconforto não o deixava em paz.

Ao virar outra página, não resistiu. Olhou novamente.

O sangue gelou em suas veias. Elas haviam desaparecido de novo.

Rodrigo levantou-se de chofre, o quadrinho caindo ao chão com um ruído abafado. O coração batia tão rápido que ele mal conseguia pensar. Aproximou-se da janela, os olhos fixos nas torres vazias da catedral. Foi então que aconteceu.

Uma sombra passou voando velozmente frente à janela.

Ele cambaleou para trás, o impacto da visão o derrubando no chão. Ficou ali por um instante, tentando recuperar o fôlego, enquanto o som de algo rasgando o ar preenchia o silêncio. Levantou-se num salto, o coração retumbando no peito, e correu para fora do quarto.

No corredor escuro, sua primeira reação foi correr até a porta do quarto dos pais. Com o punho fechado, pronto para bater, ele parou a poucos centímetros. Ficou imóvel, o braço ainda suspenso.

Eles não acreditariam. Nunca acreditavam. Iriam dizer que ele estava imaginando coisas de novo.

Respirando fundo, Rodrigo recuou. Não havia tempo para discutir. Decidido, virou-se e correu até o quarto do irmão.

Bateu na porta três vezes, cada batida desesperada, como se a força delas pudesse explicar o medo que ele sentia.

— Mas que diabos? — resmungou Daniel ao abrir a porta, os olhos semicerrados de sono. — Tá louco? Sabe que horas são?

— Olha pela janela! — disse Rodrigo, a voz quase falhando.

— Do que você tá falando?

— Olha pra catedral! — insistiu Rodrigo, agora em tom de súplica.

Daniel bufou, claramente irritado, mas caminhou até a janela, espiando por entre as cortinas.

— O que exatamente eu deveria estar vendo? — perguntou, sem paciência.

— Olha pra cima! — Rodrigo se aproximou, a voz tensa. — Você não tá vendo nada diferente?

Daniel franziu o cenho e inclinou a cabeça, observando melhor. De repente, arregalou os olhos.

— Meu Deus... Elas sumiram!

— É disso que eu tava falando! — Rodrigo exclamou, os nervos à flor da pele. — Você acha que...

— Vem comigo! — cortou Daniel, indo até a estante e pegando uma lanterna.

— Espera! Vamos pra onde? — perguntou Rodrigo, o pânico crescendo na voz.

— Fala baixo, idiota! — Daniel sussurrou. — Vai acordar o pai e a mãe.

— A gente vai sair? — Rodrigo parecia ainda mais apavorado. — Você ouviu o que eu disse? Aquelas coisas estão na rua!

— Não interessa! Vamos logo! — disse Daniel, já abrindo a porta do quarto, a lanterna firme nas mãos.

Sem entender direito por que, Rodrigo seguiu o irmão porta afora, o medo pesando em cada passo.

A noite estava fria, e uma brisa insistente agitava as árvores, enchendo o ar com o farfalhar das folhas. Não havia silêncio. O vento parecia sussurrar segredos indesejados, carregando com ele um cheiro úmido, quase metálico.

— A gente não devia estar aqui fora! — sussurrou Rodrigo, tentando manter a voz firme, mas falhando miseravelmente.

— E perder a chance de ver essas coisas vivas? Cê só pode tá brincando! — retrucou Daniel, sem esconder a excitação.

Rodrigo parou no lugar por um instante, a respiração acelerada.

— Então você também acha que elas... ganham vida à noite?

Daniel virou-se para ele, os olhos brilhando na escuridão.

— Eu não sei! Talvez... talvez elas sempre tenham estado vivas. Dias atrás, eu juro que vi uma delas mexer a cabeça. E a outra... parecia estar farejando alguma coisa. — Ele falou com um misto de fascínio e ansiedade, como se estivesse à beira de uma descoberta científica.

Rodrigo sentiu um calafrio subir pela espinha. Ele queria argumentar, mas as palavras não saíram. Em vez disso, apertou o passo, acompanhando o irmão.

Os dois atravessaram sorrateiramente o quintal, o rangido discreto do portão soando mais alto do que deveria na quietude da noite. Caminharam na direção da catedral, ambos lançando olhares apreensivos para o céu e para as sombras, à procura de qualquer movimento. Rodrigo não conseguia afastar da mente a lembrança da notícia na TV: pessoas estraçalhadas, corpos destroçados. O vento parecia mais frio agora, e cada folha que caía fazia seu coração disparar.

— A gente tem que tomar cuidado! — disse Rodrigo, a voz quase tremendo. O medo estava crescendo em sua mente como uma sombra. — Da outra vez que elas sumiram... aconteceu uma coisa.

Daniel parou e virou para o irmão com curiosidade.

— Que coisa? Do que você tá falando?

Rodrigo respirou fundo antes de continuar, como se admitir aquilo em voz alta tornasse tudo mais real. Contou então sobre as mortes que viu no noticiário, sobre os corpos estraçalhados e sua suspeita de que as gárgulas eram as culpadas. Enquanto falava, a catedral se erguia à frente deles, escura e imponente, cada passo levando-os mais perto das portas.

Daniel ouviu em silêncio por um momento, antes de dar de ombros.

— Não sei. Existe todo tipo de animal no bosque... nunca ouvi falar que gárgulas comem pessoas. Elas são protetoras.

Rodrigo franziu a testa, a indignação transbordando.

— Protetoras? A aparência delas diz o contrário! Elas parecem... monstros.

Daniel sorriu de canto, como se achasse graça na resposta do irmão.

— Mas é exatamente por serem protetoras que precisam ter aquela aparência. Quem é que iria chegar perto delas? Se fosse eu, já sairia correndo.

— Pelo jeito, não correu o suficiente, porque olha onde a gente tá! — retrucou Rodrigo, quase sem fôlego, enquanto subiam os primeiros degraus da entrada da catedral.

Os dois ficaram em silêncio por um instante, encarando as enormes portas de madeira. Daniel avançou, as mãos firmes contra o pesado entalhe, e empurrou com força. As portas não se moveram. Ele tentou de novo, mas era óbvio: estavam trancadas.

— E agora? — murmurou Rodrigo, olhando nervosamente ao redor, como se esperasse que algo surgisse das sombras.

— A gente tem que encontrar um jeito de entrar! — disse Daniel, a empolgação brilhando em seus olhos.

— Por quê? — choramingou Rodrigo, com a voz à beira de um desespero. — A gente pode voltar pra casa e ver elas voltando de lá! Não acha uma boa ideia? — completou, esperançoso.

Daniel soltou um riso breve, balançando a cabeça.

— E que graça isso vai ter? — respondeu, como se a ideia fosse absurda.

Sem esperar mais discussão, Daniel virou-se e começou a contornar a catedral pela esquerda, movendo-se com passos rápidos e decididos. Rodrigo hesitou, olhando para as portas fechadas atrás de si, antes de suspirar e seguir o irmão.

— Eu sabia! — exclamou Daniel, parando de repente e apontando para uma das janelas laterais. — Eles têm que ventilar esse lugar de alguma forma, é muito velho, sabe? — Ele parecia encantado, como se tivesse acabado de desvendar um mistério.

Rodrigo olhou para a janela estreita com apreensão.

Mas Daniel já estava em ação. Ele prendeu a lanterna no cós do pijama, ajustando-a rapidamente para não cair, e agarrou a borda da janela. Seus músculos se retesaram enquanto se esforçava para se içar.

— Daniel, espera! — sussurrou Rodrigo, olhando ao redor nervosamente. O vento parecia soprar mais forte agora, assobiando entre as pedras da catedral. Ele lançou um olhar para o céu, como se esperasse que algo surgisse ali.

Daniel não deu ouvidos. Com um último empurrão, conseguiu passar pela janela, desaparecendo no interior da catedral sem dificuldade.

Rodrigo ficou parado por um momento, os olhos arregalados, a respiração curta. O vazio deixado pelo irmão parecia mais assustador do que nunca.

— Eu vou voltar pra casa! — disse ele, a voz falhando de leve, enquanto recuava um passo da janela.

— Deixa de ser besta! — retrucou Daniel, já dentro da catedral. — Elas não vão estar aqui dentro. Gárgulas protegem o exterior, não o interior.

Rodrigo estreitou os olhos, desconfiado.

— Tem certeza?

Daniel hesitou por um segundo, mas logo respondeu com firmeza.

— Tenho! — mentiu sem piscar.

Rodrigo não acreditava completamente, mas a escuridão ao seu redor parecia ainda mais ameaçadora do que a ideia de entrar. Com relutância, esticou os braços, e Daniel o puxou para dentro.

O frio ali era diferente. Um ar estagnado e gelado que parecia agarrar a pele. A luz azulada do luar se derramava pelos vitrais, criando padrões irregulares de sombras no chão. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pelos passos dos dois, que ecoavam no vasto espaço.

Enormes pilares de mármore erguiam-se como gigantes petrificados, sustentando o teto abobadado. Dezenas de bancos estavam dispostos em fileiras perfeitas, voltados para o altar. Rodrigo sentiu um arrepio ao olhar para os quadros pendurados nas paredes, representações da Via Sacra que pareciam observar seus movimentos. As sombras nos rostos pintados tornavam as expressões ainda mais severas.

Ao fundo, atrás do altar, havia uma grande cruz. Um Cristo em tamanho real estava pregado nela, o corpo arqueado em agonia. A expressão de dor e sofrimento no rosto da estátua parecia mais viva do que Rodrigo gostaria de admitir. Ele desviou o olhar rapidamente, mas não conseguiu ignorar o peso opressivo daquilo.

— Eu não gosto disso — murmurou, quase inaudível.

— Relaxe. É só uma igreja — disse Daniel, a voz baixa, mas ainda assim ecoando pela nave da igreja. — Está vazia. Temos que subir.

Rodrigo não respondeu. Sabia que seria inútil tentar argumentar. Daniel estava decidido, e ele não queria ficar sozinho ali. Resignado, seguiu o irmão em direção ao altar.

Subiram uma pequena escadaria de cinco degraus. No topo, havia duas portas, uma em cada lateral. Daniel hesitou por um momento antes de ir até a porta à esquerda. Girou a maçaneta, e ela se abriu com um rangido suave, revelando uma escuridão opressiva. Rodrigo engoliu em seco, mas logo Daniel acionou a lanterna. A luz cortou a escuridão, revelando um espaço apertado e cheio de objetos.

O quarto estava abarrotado com vestes cerimoniais penduradas em araras, algumas delas cobertas por pó. Sobre uma bancada próxima, haviam cálices, velas e outros itens usados na comunhão. Rodrigo passou os olhos pelo ambiente rapidamente, a sensação de desconforto crescendo.

— Ei, tem outra porta aqui — disse Daniel, apontando para o fundo da sala. Ele se aproximou e tentou abrir, mas a maçaneta não cedeu. — Tá trancada.

Direcionou o facho de luz para a bancada e, com um sorriso, encontrou o que procurava: um molho de chaves. Pescou-o dali e começou a experimentar uma por uma na fechadura. Rodrigo observava com o coração batendo forte, cada clique das chaves ecoando como um tiro no silêncio.

Na quarta tentativa, a chave girou com suavidade. Um clique mínimo ressoou, e Daniel abriu a porta. Atrás dela, uma escada em espiral ascendia na escuridão.

— Isso deve levar até a torre do sino! — disse ele, os olhos brilhando com a excitação de quem estava prestes a descobrir algo extraordinário.

Rodrigo queria protestar, mais uma vez tentar convencê-lo de que aquilo era uma má ideia. Mas antes que conseguisse formar uma frase, Daniel já havia começado a subir, os passos rápidos ecoando nos degraus de pedra.

Rodrigo ficou parado por um instante, os olhos fixos na escada. Sentia como se algo invisível pesasse sobre seus ombros, prendendo-o no lugar. Lentamente, virou-se para a representação de Cristo no altar. Com a mão trêmula, fez o sinal da cruz, murmurando uma prece. Então, respirou fundo e começou a subir.

Daniel estava certo. Depois de pelo menos uns sessenta degraus, os dois chegaram ao topo da escada, encontrando-se bem embaixo do sino da catedral. A estrutura era colossal, com um tamanho impressionante — grande o suficiente para comportar um carro dentro de si. O metal envelhecido parecia absorver a luz da lua que entrava pelas aberturas das torres, criando um brilho opaco e ameaçador.

Ao redor, uma amurada cercava a base do sino, delimitando o espaço. Daniel, sempre à frente, aproximou-se sem hesitar. Rodrigo observava o irmão com apreensão crescente, o coração batendo como um tambor em seus ouvidos.

De repente, Daniel passou uma perna por cima da amurada.

— O que você tá fazendo? — gritou Rodrigo, a voz embargada de pânico, enquanto agarrava o braço do irmão. — Tá maluco?

Daniel virou-se para ele com um sorriso desafiador.

— Vou até lá na frente. Quero ver quando elas voltarem.

Rodrigo apertou mais o braço dele, o pavor estampado em seu rosto.

— Não vai! — choramingou, quase sem fôlego. — É muito perigoso! Se você cair...

Daniel, porém, não deu ouvidos. Com um movimento firme, livrou-se do aperto de Rodrigo e passou completamente para o outro lado da amurada. Seus passos ressoavam no través estreito que circundava toda a catedral. O vento, mais forte ali em cima, assobiava ao redor deles, quase como um aviso.

— Daniel, volta aqui! — Rodrigo gritou, o medo transbordando. Mas o irmão continuava, o olhar fixo na vastidão ao redor.

Rodrigo hesitou por um instante, o pânico o congelando no lugar. Então, com um esforço tremendo, passou também para o outro lado, decidido a não deixar Daniel sozinho. O vento chicoteava seu rosto, e o vazio abaixo parecia puxá-lo, como se quisesse engoli-lo.

Foi então que aconteceu.

Um som grave e seco cortou o ar. Como um bater de asas. Rodrigo olhou para o céu, e seus olhos se arregalaram.

Uma das gárgulas havia voltado!

Ela surgiu do nada, cortando o céu como uma sombra viva, e pousou bem diante de Daniel. O impacto das patas contra a pedra fez todo o través estremecer. Rodrigo viu o irmão congelar no lugar, os olhos arregalados e a respiração presa, como se o tempo tivesse parado. Ele próprio sentia o mesmo — petrificado, hipnotizado pelo horror que se erguia diante deles.

A criatura era grotesca, como um pesadelo materializado. Parecia uma cruza impossível de lagarto e cavalo, com um corpo robusto coberto de escamas verde-escuras que refletiam a luz da lua de maneira sinistra. Era do tamanho de um cavalo, mas sua cabeça era claramente a de um réptil. Os olhos brilhavam com um tom amarelo fosco, e a boca... a boca estava torcida em algo que lembrava um sorriso. Mas não era um sorriso humano. Era algo diabólico, zombeteiro. Rodrigo mal conseguia entender como algo assim podia ser o guardião de uma catedral.

De repente, a criatura abriu suas asas, enormes e negras, que pareciam cobrir todo o céu. Quando ficou de pé sobre as patas traseiras, parecia ainda maior, quase impossível. O ar ao redor deles mudou. Um cheiro horrível, de carne podre e putrefação, invadiu os sentidos de Rodrigo, quase o fazendo vomitar. E então veio o som.

O grito da gárgula foi a coisa mais horrível que Rodrigo já ouvira. Um som gutural e estridente, como se um milhão de unhas arranhassem vidro ao mesmo tempo, misturado com o rugido de um predador. Rodrigo instintivamente levou as mãos aos ouvidos, mas não conseguiu abafar o som. Ele penetrava, reverberava em seu peito, como se quisesse arrancar sua sanidade.

Ela estava se preparando para atacar.

Daniel finalmente reagiu. Ele se virou e correu, os passos rápidos e desajeitados no través estreito. Rodrigo seguiu o exemplo correndo para a outra direção, mas quando se virou para pular de volta para a amurada do sino, parou bruscamente. Dois olhos amarelos brilhavam na escuridão à sua frente.

Outra gárgula estava ali, bloqueando o caminho. Essa era diferente — ainda mais horrenda. Seu corpo era coberto por pelos, como uma fera selvagem, mas o rosto... o rosto era uma visão do inferno. A pele parecia esticada demais, distorcida num esgar maligno, com um queixo pontudo e dois grandes chifres curvados que se projetavam acima dos olhos. Rodrigo sentiu outra onda de pânico tomar conta de seu corpo, e um grito escapou de sua garganta.

Ele tentou recuar, mas tropeçou. As mãos desesperadas buscaram a amurada, mas escorregaram. O mundo virou de cabeça para baixo enquanto ele caía.

O ar cortava seu rosto enquanto despencava em direção ao chão. Ele podia ver o solo se aproximando cada vez mais, e por um momento, achou que tudo terminaria ali. Mas então, antes de atingir o chão, olhou para cima. A gárgula que perseguia

Daniel havia levantado voo. Ela descreveu um círculo no ar e mergulhou, alcançando o irmão com uma velocidade aterrorizante.

Rodrigo mal conseguiu processar o que via. Uma pata gigantesca, com garras afiadas como facas, o agarrou a poucos centímetros do impacto. Por um instante, sentiu alívio. Mas esse alívio durou pouco.

Ele olhou para cima, e o horror o envolveu como um abraço gelado. Era a gárgula que estivera na amurada. Agora, cada uma das criaturas tinha um dos irmãos em suas garras. Rodrigo podia sentir a força esmagadora da pata ao seu redor, como se pudesse ser despedaçado a qualquer momento.

As gárgulas subiam, batendo as asas poderosas, levando-os cada vez mais alto no céu enluarado. Rodrigo não conseguia desviar os olhos do rosto monstruoso que o segurava. Ele queria gritar, mas o som parecia preso em sua garganta. Tudo o que restava era o vento gelado e a aterrorizante vastidão vazia do céu.

Elas subiam cada vez mais alto. Rodrigo sentia o vento frio cortando sua pele e a pressão das garras da gárgula esmagando seu corpo. Um pensamento terrível começou a tomar forma em sua mente: talvez... talvez elas estivessem indo tão alto só para ter o prazer de soltá-los de lá. Uma altura grande o suficiente para garantir que morreriam de uma vez por todas.

Rodrigo apertou os olhos, mas não conseguiu impedir que uma lágrima escorresse. Então, viu as outras duas gárgulas. Elas voavam ao lado das companheiras, ladeando-as como escoltas sombrias. Essas eram diferentes — seus corpos cinzentos, mais robustos, lembravam dragões, com longos chifres que projetavam sombras assustadoras sob a luz da lua.

E então, um pensamento ainda pior se espremeu nos recantos da sua mente de doze anos. Ele imaginou as gárgulas arremessando os irmãos para cima, como brinquedos, como pássaros que brincam com presas indefesas antes de devorá-las.

Na sua visão aterrorizante, via os corpos dos dois despencando, retorcendo-se no ar antes de serem despedaçados no chão. O pavor era tão grande que ele abriu a boca para gritar por socorro, mas, antes que pudesse emitir qualquer som, a gárgula que o carregava mudou de direção.

Rodrigo sentiu o movimento no ar. Um mergulho súbito. O mundo virou, e agora eles estavam descendo — mais rápido do que haviam subido.

O bosque. Estavam indo na direção do bosque.

Meu Deus, pensou Rodrigo, o coração disparado. Elas vão nos estraçalhar lá dentro. Ninguém nunca vai encontrar nossos corpos.

As árvores começaram a crescer diante de seus olhos, cada vez mais próximas. Os galhos pareciam mãos esqueléticas, estendendo-se para recebê-los. As gárgulas desaceleraram no último instante, planando baixo por entre as copas das árvores. Rodrigo podia ouvir o som de asas enormes cortando o ar e o estalar das folhas enquanto passavam.

Então, ele sentiu. A pressão das garras ao redor do seu corpo desapareceu de repente.

Ele estava caindo.

Rodrigo girou no ar, o pânico dominando cada pensamento. Tentou instintivamente cruzar os braços à frente do corpo, como fazia ao cair de skate, na esperança de amortecer o impacto. O chão chegou rápido, e ele bateu, deslizando pelo solo do bosque. Os galhos e pedras arranharam seus braços e pernas, deixando cortes que arderiam como fogo quando tomasse banho. Mas ele mal notou a dor, porque uma certeza terrível o acometeu: nunca mais tomaria outro banho. Nunca mais voltaria para casa.

O impacto o deixou zonzo, mas conseguiu levantar a cabeça. Seu peito subia e descia rapidamente, tentando captar ar.

Daniel caiu logo em seguida, aterrissando com um baque pesado a poucos metros de distância. Rodrigo engoliu em seco, tentando ignorar a dor que irradiava pelo próprio corpo, e arrastou-se na direção do irmão.

— Eu disse pra você não sair de casa! — gritou, fechando a cara para Daniel, o pavor ainda latejando em sua voz.

Daniel deu de ombros, erguendo-se do chão com um movimento ágil.

— Relaxa. — Ele limpou a sujeira das mãos na calça, como se nada tivesse acontecido. — Acho que, se quisessem nos matar, já teriam feito isso. Era só terem nos soltado lá do céu, né?

Rodrigo piscou, incrédulo.

— Você tá maluco? — bradou, o medo transbordando. — Se não vão nos matar, por que nos trouxeram pro meio do bosque? — Ele deu um passo para trás, olhando em volta, os olhos arregalados. — Lembra das pessoas dilaceradas que eu te contei?

Elas vão fazer a mesma coisa com a gente!

Daniel abriu a boca para responder, mas as palavras nunca saíram.

Um som interrompeu a tensão, gelando o sangue de ambos. O bater de asas. Acima das copas das árvores, o som era profundo e ameaçador, como o de um grande predador que acabava de localizar suas presas. Um farfalhar violento percorreu as folhas, e o ar ao redor deles pareceu mudar, ficando pesado e úmido.

Rodrigo sentiu a relva tremular sob seus pés quando elas chegaram.

As gárgulas desceram tão rápido que pareciam ter se materializado do nada. Em um instante, estavam lá. Quatro formas monstruosas, enormes, cercando-os. Rodrigo podia sentir o cheiro delas antes mesmo de vê-las completamente. Era o mesmo cheiro nauseante de antes — carne podre, misturada com algo mais acre.

Ele ergueu os olhos lentamente, o peito subindo e descendo com o pânico crescente. Todos aqueles olhos amarelos, brilhando na escuridão, estavam voltados para eles. Fixos. Observadores. Predadores.

As gárgulas começaram a se mover, cada passo esmagando folhas e galhos no chão. O círculo ao redor deles se fechava mais a cada segundo. Rodrigo podia ouvir o som das asas delas se dobrando, como couro velho sendo esticado. Ele olhou para Daniel, que parecia paralisado, os olhos fixos nas criaturas.

O cheiro ficou mais forte, invadindo suas narinas, sufocante. Rodrigo tentou não respirar, mas era impossível. Estava por toda parte.

É agora, pensou.

— Por favor, não matem a gente! — implorou Daniel, a voz trêmula de medo, quase um sussurro.

— E por que deveríamos poupá-los? — respondeu a gárgula que havia carregado Rodrigo. Sua voz parecia tão velha quanto o tempo, ressoando como pedras deslizando umas contra as outras.

Daniel engoliu em seco, o olhar fixo nos olhos amarelos e brilhantes da criatura.

— Porque... só queríamos vê-las. — Ele tremia. — Só queríamos saber como eram. Nada mais.

As gárgulas não responderam imediatamente. Ficaram imóveis, observando-os com aqueles olhares vazios e penetrantes. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do vento farfalhando as folhas ao redor.

Então, cada uma deu um passo à frente. O círculo se fechou ainda mais, e o cheiro nauseante ficou insuportável. Rodrigo apertou os lábios, lutando para não vomitar.

— A vida de vocês em troca de uma promessa — disse a gárgula mais alta, sua voz profunda e definitiva.

Os irmãos se entreolharam. Não havia tempo para hesitação, nem outra opção. Ambos acenaram afirmativamente, quase ao mesmo tempo.

— Vocês nunca devem revelar que nos viram — continuou a gárgula. — Nem descrever nossa verdadeira aparência. Caso quebrem essa promessa, qualquer um ao redor de vocês morrerá.

Rodrigo sentiu um arrepio correr pela espinha. Ele olhou para Daniel, que engoliu em seco antes de acenar novamente. Ambos estavam cientes do peso do juramento.

— Como prova de que vocês não irão quebrar esta promessa... nossa essência será parte de vocês.

Antes que pudessem reagir, as gárgulas abriram as bocas de onde começou a emanar uma névoa escura, densa, como fumaça de carvão queimado. A substância flutuava no ar, serpenteando como uma coisa viva. Rodrigo tentou recuar, mas a fumaça já estava ao seu redor. Ele sentiu a pressão dela contra sua pele, fria e pesada. Em seguida, a névoa invadiu suas narinas e boca, queimando como gelo ao entrar.

Daniel caiu de joelhos, tossindo e lutando para respirar, mas a fumaça continuava a entrar. Rodrigo sentia um frio indescritível se espalhando por seu corpo, como se algo estranho e antinatural estivesse se fundindo a ele. Imagens turvas passavam por sua mente: lugares sombrios, ruínas esquecidas, rostos que ele nunca vira e que o aterrorizavam.

Quando a névoa finalmente se dissipou, Rodrigo caiu no chão, ofegante, o peito subindo e descendo descontroladamente. Daniel estava ao seu lado, pálido e tremendo. Os dois se olharam, mas não disseram uma palavra. Não havia o que dizer.

As gárgulas recuaram, abrindo suas asas com um movimento súbito. Sem mais palavras, levantaram voo, desaparecendo na escuridão do céu.

Por um momento, os dois ficaram ali, imóveis, sentindo o vazio ao redor e a estranha sensação dentro de seus corpos, como se uma parte das gárgulas estivesse agora alojada neles. Rodrigo olhou para Daniel, que estava pálido, mas já de pé. E então, juntos, começaram a chorar.

***

Voltaram para casa em silêncio. Para encontrar a saída do bosque, seguiram a direção em que as gárgulas haviam voado. O caminho parecia interminável, e o céu começou a clarear. Finalmente, avistaram a Catedral de Nossa Senhora Imaculada ao longe, as torres góticas se erguendo contra o horizonte. Subiram o caminho até a casa, mas antes de entrar, ambos olharam para o topo da catedral.

Elas estavam lá. Imóveis. Como se nunca tivessem saído.

Pouco antes do sol nascer, entraram na casa. Os pais ainda dormiam, inconscientes da ausência dos filhos. No corredor, antes de entrar no quarto, Daniel parou. Olhou para Rodrigo, e os dois trocaram um aceno silencioso, uma promessa não dita.

***

Nunca mais procuraram pelas gárgulas. Mas, em pelo menos duas ocasiões, notaram que elas haviam desaparecido. Nunca falaram sobre isso com ninguém.

Certa vez, Daniel viu as gárgulas o seguirem com os olhos enquanto atravessava a rua. Suas cabeças se moviam lentamente, acompanhando seus passos. Ele não disse uma palavra a Rodrigo.

Rodrigo, por sua vez, ficou atento aos noticiários. Nunca mais ouviu falar de pessoas estraçalhadas no bosque. O caso das vítimas anteriores foi arquivado, com o relatório oficial afirmando que haviam sido atacadas por um animal selvagem, talvez um cachorro do mato ou uma onça. Mas Rodrigo sabia a verdade. Ele tinha certeza de que foram as gárgulas. Certeza de que aquelas pessoas haviam quebrado um juramento.

E eles nunca esqueceriam o peso do próprio pacto.

***

Os anos passaram, e o evento com as gárgulas tornou-se apenas uma sombra distante, enterrada no fundo da memória de Rodrigo. A vida seguiu seu curso, e ele tentou se convencer de que aquilo não passara de um pesadelo. Daniel, por sua vez, parecia ter feito o mesmo. Conheceu uma jovem na universidade, casou-se com ela e se mudou para São Paulo, longe de Portuária, de Vila Magnólia e da Catedral de Nossa Senhora Imaculada.

Mas o passado nunca os deixou.

Meses após o casamento, uma tragédia abalou a família. Daniel e a esposa foram encontrados mortos em seu apartamento. Estraçalhados. Como se um animal selvagem tivesse invadido pela janela. A cena era tão brutal que os jornais evitaram divulgar os detalhes, mas Rodrigo sabia. Ele sabia exatamente o que tinha acontecido.

Daniel achara que, ao deixar Portuária e se mudar para outro país, poderia escapar do juramento. Achara que a distância era suficiente para se libertar das gárgulas e de sua promessa. Mas havia quebrado o pacto. E elas vieram buscá-lo.

Naquela mesma noite, enquanto seus pais choravam ao receberem a notícia, Rodrigo foi para o quarto. Sentado na cama, olhou para a janela. A Catedral de Nossa Senhora Imaculada se erguia contra o céu noturno, mas algo estava diferente. Ele já sabia o que era antes mesmo de olhar.

As gárgulas não estavam lá.

Sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Se levantou lentamente e caminhou até a janela, os olhos fixos no céu. Lá longe, contra o brilho pálido da lua, avistou uma sombra. Uma delas. Voando, sumindo na vastidão da noite.

Um profundo sentimento de tristeza o preencheu. Não era apenas pela perda de Daniel, mas pela certeza de que aquilo nunca acabaria. Onde quer que fosse, o evento daquela noite fatídica o seguiria. A promessa que fizera estava gravada em sua alma, como um peso invisível, e ele sabia que deveria levá-la para o túmulo.

Rodrigo tentou se convencer de que podia esquecer. Podia enterrar a memória ao lado das outras lembranças sombrias de sua infância, prosseguir com sua vida, fingir que nada daquilo havia acontecido. Era o que ele queria fazer. Era o que tinha decidido fazer.

Mas enquanto olhava para o céu escuro, o vento frio entrando pela janela, ele soube que a lembrança nunca o abandonaria.

Ela o seguiria em cada passo, em cada sonho.

As gárgulas estariam sempre lá. Observando.

Fim

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 25/01/2025
Reeditado em 25/01/2025
Código do texto: T8249318
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