A Lâmina do Vazio

A Lâmina do Vazio

No início do século XX, no vilarejo remoto de Eshford, na Escócia, um objeto de origem desconhecida é encontrado por escavadores que trabalhavam na reconstrução de uma antiga abadia. Enterrada a poucos metros de profundidade, jaz uma lâmina negra e curvada, tão afiada que corta pedra ao simples toque. Os aldeões acreditam que é uma relíquia medieval, mas logo rumores se espalham de que aqueles que a tocam enfrentam visões aterrorizantes e enlouquecem.

O arqueólogo e linguista Dr. William Harrington, fascinado pelos relatos, viaja ao vilarejo para investigar a descoberta.

Harrington é recebido com relutância pelos aldeões. Eles o advertem para não tocar na lâmina, conhecida como “O Fio Sem Fim”. Segundo uma antiga lenda local, a abadia foi construída para selar algo terrível, mas os detalhes se perderam nas gerações.

Na primeira noite de sua estadia, Harrington é acordado por um som estranho, semelhante a um metal vibrando. Ele encontra a lâmina em seu alojamento, mesmo tendo sido guardada no centro da vila, trancada. O objeto parece pulsar, e, ao aproximar-se, ele tem sua primeira visão: uma vastidão de escuridão líquida, pontuada por formas colossais que parecem deslizar entre estrelas moribundas.

Examinando inscrições na lâmina, Harrington percebe que os símbolos não pertencem a nenhuma língua conhecida. Eles parecem estar em constante mutação, mas uma análise mais detalhada revela uma estrutura estranhamente matemática. Ao comparar os padrões com registros antigos, ele descobre referências a uma entidade chamada Vyr’ith, descrita como “A Afiadora do Vazio”.

Relatos medievais sugerem que Vyr’ith é uma força primordial que consome realidades, reduzindo tudo a uma ausência absoluta. A lâmina, aparentemente, é um fragmento físico de sua essência, uma âncora deixada em nosso plano quando os monges da abadia realizaram um ritual desesperado para bani-la.

Conforme Harrington estuda a lâmina, sua sanidade começa a se desgastar. Ele vê figuras humanoides nas sombras, seus olhos brilhando como facas. À noite, ele ouve sussurros em uma língua que ele não compreende, mas que lentamente começa a fazer sentido.

Outros no vilarejo também são afetados. Os animais fogem para as florestas, e algumas pessoas começam a desaparecer. Uma mulher é encontrada vagando, com os olhos vazios e palavras incoerentes saindo de seus lábios. Ela repete a frase: “O corte vem para todos.”

Harrington descobre que a lâmina não é apenas um artefato, mas uma chave. A abadia foi construída para esconder um portal, selado com runas que os monges acreditavam serem impenetráveis. Mas o tempo enfraqueceu o selo, e a presença da lâmina acelera o processo.

Enquanto as inscrições na lâmina mudam, ele percebe que elas descrevem um ritual inverso, capaz de fechar o portal, mas a um custo terrível: a alma de quem realiza o ritual seria usada como lâmina para reforçar o selo.

Na última noite, o portal é aberto. Uma fenda luminosa surge no chão da abadia, e dele emerge uma porção de Vyr’ith: um fragmento pulsante de escuridão sólida, que se estende e corta o próprio tecido do espaço. As leis da física começam a se desintegrar no vilarejo. A gravidade flutua, os sons se distorcem e a percepção do tempo se dissolve.

Os aldeões restantes tentam fugir, mas suas formas começam a se desintegrar como folhas sendo cortadas por vento afiado. Harrington, percebendo que o fragmento da lâmina é a única forma de deter Vyr’ith, realiza o ritual.

Harrington oferece sua alma à lâmina, selando novamente o portal. No momento do sacrifício, ele tem uma última visão: ele vê-se fora do tempo, eternamente cortando o tecido do vazio para manter Vyr’ith aprisionado. Ele é consumido pela consciência da entidade, mas sua mente persiste no limiar entre realidades, sentindo a lâmina cortar infinitamente.

A lâmina desaparece, mas Eshford é deixado em ruínas, vazio e esquecido pelo mundo. Décadas depois, uma equipe de exploradores encontra um diário de Harrington no que restou da abadia. Ele termina com as palavras:

"O corte nunca cessa. Eu sou o fio que separa. E quando eu falhar, o vazio será tudo que restará."

(Eduardo Andrade)
Enviado por (Eduardo Andrade) em 24/01/2025
Código do texto: T8248201
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