O estranho

Estava ancorado numa ilha de circunstâncias inóspitas, que subia em volutas de miasmas através de certezas precárias e alegações claudicantes, todas cosidas num arabesco de medo e frágeis vaticinios.

Adalberto sabia que era uma flecha torta a cindir convicções que não lhe diziam com clareza que tipo de alegoria é necessária para atuar no palco escorregadio do teatro da existência humana.

Adalberto saia de casa como se fosse um tatu. E, como um, enfiava-se em todos os buracos que a vida lhe cavava. Como um coveiro que enterra corpos sem identidade e para o qual não há solução que contorne a pá sem cabo que cavuca a terra dura.

Adalberto ia. E como ia, também ficava. Pois de nada adianta ir se não sabemos quando ficar, mesmo que ignoremos onde. E, esta é uma regra. Tão implacável quanto um dente podre em uma boca sem nenhum.

Chegou em casa depois do trabalho, com a cabeça doendo de tanto ser comida pelo calor dos vitupérios de quem lhe enfiava ordens como quem mete um pau num cu sem entrada. Sentou no puído sofá da sala, ainda mais que sua massa disforme, com seus nadas espalhados por todos os arredondados cantos (como é se prestarmos atenção na arquitetura de toda edificação que nada faz a não ser desdenhar de quem tinham mesmo é que abrigar), e suspirou como um bucéfalo pronto para ser usado por quem o acha mesmo um pano de chão para sua cavalaria existencial.

Dormiu. Adalberto.

Acordou. Adalberto.

Sentado a mesa da cozinha, tão humilhada quanto sua contígua companheira sala, tomava seu café enquanto ruminava pensamentos há muito engravidando cada espacinho da sua cabeça oca de verdades e vazia de sítios em branco. Adalberto.

- Quem, Adalberto?

- Quem o quê, voz?

- Quem é que sabe?

- Sabe o que, voz?

- Tivesse eu essa resposta, nem mesmos saberia como perguntar.

- Então, por que a fez, voz?

- Porque é o que a gente faz. Todo dia. Até o resto da vida de vocês.

- Vocês, voz?

O silêncio tonitruante só foi rasgado pelo barulho dos toc tocs agressivos. Havía três dias. Sem Adalberto. Haveria muitos outros.

MementoMori
Enviado por MementoMori em 19/01/2025
Reeditado em 30/04/2025
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