O Lobisomem de Pôrto Alegre

Com (ou sem) a licença do Vampiro de Curitiba, eu vou contar aqui a história verdadeira de um lobisomem que andou apavorando um certo bairro da capital gaúcha na época em que havia acento circunflexo em seu Pôrto Alegre. Pois foi a minha própria mãe que me contou sobre o grande pavor que a sua Vó Marica sentia quando se aproximavam as noites de lua cheia desde que aquele casal de vizinhos mudara-se para a rua dela...

Consta que até então era um bairro muito tranquilo, o bairro Petrópolis. Mais tranquila ainda era a rua onde a minha mãe morava com sua família e a Vó Marica –é melhor manter em sigilo o nome da rua, vamos que ainda haja alguma outra testemunha ocular... Nesta rua, portanto, tudo fora calmaria até a chegada do casal que comprou a casa próxima a da Vó Marica e que ficara vazia, quase abandonada mesmo por vários anos.

Talvez mais ninguém nunca tenha feito a relação entre os novos vizinhos e os estranhos acontecimentos que passaram a ter lugar naquela vizinhança. Animais domésticos [lembra-te que estou falando do final da década de 1920 e início da de 1930] passaram a ser encontrados mortos nos quintais de várias casas... Entretanto, não haviam morrido de velhice, nem de ataque cardíaco, não! Galinhas, perus, patos, gansos, e até mesmo porquinhos e cabritos eram encontrados com seus ventres abertos e sem as entranhas, uma visão dos infernos!

A exceção, assim ela acreditava, foi a Vó Marica, que jurou de pés juntos para a sua neta mais velha, a minha mãe, que vira com os seus próprios olhos que a terra um dia veio a comer, que sabia quem era o causador daquela sangrenta mortandade animalesca. O assunto tornou-se um segredo muito bem guardado para não atrair nenhuma tragédia maior.

Contou a Vó Marica o que vira naquela noite clara, estrelada e de lua cheia, em detalhes para a minha mãe sob o juramento de manter o segredo. A minha mãe cumpriu a promessa por muitas décadas até que eu tivesse idade suficiente para, por minha vez, jurar também manter tão temível segredo. Por falta de herdeiros meus, resolvi revelar aqui para ti leitor que também hás de jurar manter o segredo do que estou te contando...

Segundo o relato da Vó Marica, ela estava com uma baita panela cheia de pedaços de abóbora-menina na chapa do fogão à lenha quando percebeu que não havia em casa açúcar suficiente para preparar o doce tradicional, sua especialidade culinária. Resolveu, num ímpeto, ir à casa da vizinha nova pedir algumas xícaras de açúcar. Ainda era tardinha, o sol não havia se posto e a vizinha abriu a porta com um sorriso trêmulo nos lábios. Enquanto a Vó Marica aguardava na sala de visitas que a vizinha pegasse o açúcar, um fato insólito fez percorrer um arrepio por toda a sua espinha. Um homem alto, robusto, com espessos bigode e barba, trajado com roupas esquisitamente gastas e até mesmo um tanto sujas, cruzou pela sala e ao vê-la, deteve-se. Olhou-a com olhos de pânico por breves segundos e, sem nada dizer, apressou o passo e saiu rapidamente pela porta da frente.

Logo em seguida surgiu a vizinha com o açúcar embrulhado num pacotinho e entregou-o para a Vó Marica. Aparentemente, ela nem percebera a insólita passagem do seu marido pela sala. A Vó Marica agradeceu o açúcar e ao sentir uma inquietude no olhar da vizinha, despediu-se sem mais delongas retornando para casa assustada. Não comentou nada com ninguém, porém ficou matutando o ocorrido.

A noite já ia longe quando o doce de abóbora ficou pronto. Quase todos dormiam na casa. A Vó Marica, ainda arrumando o doce em vidros para compota, escutou um barulho entre as suas galinhas. Abriu a porta que dava para o quintal após haver retirado o avental e secado as mãos. Só o que pôde observar foi um vulto enorme esgueirando-se pelo fundo do terreno. A escuridão da noite impossibilitaria a Vó Marica de enxergar àquela distância não fosse a claridade conferida pela fase lunar. A lua cheia revelou que o vulto pulando o muro assemelhava-se a um gigantesco cachorro, um lobo o descreveria melhor. Uns trapos agarravam-se ao corpo da fera, eram roupas velhas e sujas. De cima do muro, sua cabeça peluda girou e os olhos voltaram-se exatamente para onde a Vó Marica se encontrava, paralisada, a olhar a cena aterradora. Por segundos seus olhares fixaram-se hipnoticamente.

A Vó Marica teve, então, a certeza de que as suas galinhas foram as mais recentes vítimas dos ataques sobrenaturais do novo vizinho, o lobisomem de Pôrto Alegre... A minha mãe, sempre acreditou piamente no relato da Vó Marica. E eu... bem, eu? Quem sou eu para duvidar da Vó Marica?

*Escrevi esse meu conto em homenagem a minha mãe Elsa e a minha bisavó Marica. Minha mãe me contava essa história volta e meia desde a minha infância. Gostaria que elas tivessem podido lê-lo...