Linha 666
A noite caía pesada sobre a cidade, envolvendo tudo em uma escuridão quase tangível, um manto negro que parecia absorver até mesmo os últimos resquícios de luz.
Os escassos pedestres que ainda perambulavam pelas vias moviam-se hesitantes, como se o calor sufocante da noite os oprimisse, deixando no ar uma sensação de inquietação.
Eram 22h40 de uma sexta-feira de verão, e o clima estava insuportavelmente quente e seco, como se o próprio ar tivesse sido drenado de vida.
Ângelo e Alfredo, estudantes do terceiro período de matemática, caminhavam em direção ao ponto de ônibus na Avenida Brasil.
Os dois amigos conversavam animadamente sobre o "Último Teorema de Fermat", rindo e trocando piadas, mas algo nos arredores parecia errado. O ar estava carregado, como se uma tempestade estivesse prestes a se formar, mas não havia uma única nuvem no céu. O calor era sufocante, e até a brisa os havia abandonado.
Quando avistaram o ônibus se aproximando, Ângelo deu um aceno rápido, e os dois subiram a bordo.
Assim que cruzaram a porta do veículo, uma sensação desconfortável os envolveu, como se tivessem atravessado um portal invisível para outra realidade.
O cheiro acre de mofo e podridão permeava o ar, e o motorista, um homem de aspecto cadavérico, mal se dignou a olhar para eles, seus olhos ocultos sob um boné esfarrapado. Havia algo inquietante na sua postura, algo que Ângelo não conseguia identificar, mas que fez seu estômago revirar.
— Alfredo, acho que pegamos o ônibus errado... — Ângelo murmurou, sentindo uma onda de pânico subir por sua espinha. — Estávamos distraídos... Só vi o primeiro número, mas não é o 618... Eu cometi um erro.
Alfredo, inicialmente cético, lançou um olhar de dúvida para Ângelo, mas logo percebeu que o ônibus estava se movendo rápido demais, as janelas estavam cobertas de sujeira e poeira, impedindo qualquer tentativa de ver onde estavam.
O desconforto inicial deu lugar a um medo palpável, enquanto o silêncio dentro do ônibus se tornava insuportável, quebrado apenas pelo som do motor que rugia como uma fera ferida.
— Vamos perguntar ao motorista — sugeriu Alfredo, tentando parecer calmo.
Ele se levantou e se aproximou da cabine, mas ao tentar chamar a atenção do motorista, percebeu que ele estava usando fones de ouvido. A música que tocava era alta e distorcida, uma melodia infernal que fez os pelos de sua nuca se arrepiarem. O motorista não se moveu, não piscou, não deu qualquer sinal de estar ciente da presença de Alfredo.
Ao voltar para o banco, Alfredo notou que os poucos passageiros no ônibus os observavam com olhos vazios, quase como se estivessem mortos, ou pior, como se nunca tivessem estado vivos.
Os dois amigos trocaram um olhar nervoso, mas não disseram nada. O que poderiam dizer? Que estavam com medo? Que algo estava muito errado?
— Alfredo... — Ângelo começou, sua voz trêmula. — Tem algo que não está certo. Você percebeu quantos passageiros estavam no ônibus quando entramos? Contando o motorista, éramos 13... E... Bem, 13 é um número de azar. Os Templários foram condenados à fogueira numa sexta-feira 13...
Alfredo riu nervosamente, mas a risada morreu em sua garganta quando o ônibus fez uma curva violenta, jogando-os contra os assentos.
O pânico tomou conta deles.
Ângelo, sempre o racional, começou a balbuciar sobre números, sobre coincidências, sobre Pierre Fermat e sua morte em 1665, um ano antes de 1666... A data fatídica que muitos associavam ao apocalipse.
De repente, um dos passageiros, um velho com uma aparência grotesca, levantou-se. Seus olhos eram pálidos e sem vida, seus dentes quebrados e amarelados, e sua voz era um sussurro que parecia vir do fundo de um túmulo.
— Vocês querem saber que linha é essa? — o velho murmurou, aproximando-se com passos arrastados. — Querem saber para onde estão indo?
Ângelo e Alfredo ficaram paralisados de medo, incapazes de responder.
— Vocês estão na linha 666 — o velho sussurrou, seu hálito podre invadindo o espaço entre eles. — E sua próxima parada... é a morte. O inferno os aguarda, e vocês nunca mais verão a luz do dia.
As palavras do velho foram seguidas por uma gargalhada coletiva, uma risada que não parecia humana, mas sim o som de almas condenadas.
O motorista, os passageiros, todos riam, e o som ecoava dentro do ônibus como um coral de espíritos malignos.
Alfredo e Ângelo tentaram desesperadamente encontrar uma saída, mas as portas estavam trancadas, as janelas cobertas por uma sujeira opaca que parecia se fechar sobre eles.
O ônibus acelerava, ultrapassando os limites do que era possível, oscilando em curvas impossíveis que desafiam as leis da física. As luzes do trajeto desapareceram, e o que restava era apenas escuridão.
Ângelo começou a sentir uma pressão esmagadora em seu peito, como se o ar estivesse sendo sugado para fora do ônibus. Alfredo gritava, mas não havia som; suas palavras eram engolidas pelo vácuo que agora preenchia o veículo.
E então, tudo se dissolveu.
Não havia mais cidade, não havia mais estrada. Apenas o vazio. O ônibus estava voando por um espaço negro e infinito, cercado por trevas que se estendiam como tentáculos famintos. As risadas se transformaram em gritos de agonia, e os passageiros começaram a se desintegrar, suas peles se desfazendo em cinzas que se misturavam ao ar pesado e fétido.
Ângelo e Alfredo, agora os únicos sobreviventes, agarraram-se mutualmente, seus corpos tremendo de terror absoluto. Eles sabiam que não havia escapatória. O ônibus finalmente parou, mas não em um lugar que pudessem reconhecer. As portas se abriram, revelando um abismo de fogo e sofrimento eterno. A próxima parada, como o velho havia dito, era o inferno.
Eles tentaram resistir, mas uma força invisível os puxou para fora do ônibus, lançando-os nas profundezas do abismo. E enquanto caíam, ouvindo os gritos de dor das almas condenadas ao seu redor, uma única certeza invadiu suas mentes: eles nunca mais voltariam.
O ônibus 666 continuou seu trajeto, sem parar, sem destino, buscando mais almas para levar ao inferno. Às vezes, ele ainda é visto, percorrendo as ruas desertas da cidade, sempre à espreita, pronto para capturar aqueles que se atrevem a embarcar em sua jornada sem retorno.
E assim, a lenda da Linha 666 se espalhou, um aviso sombrio para aqueles que ousam desafiar o destino. Pois, uma vez a bordo, não há escapatória. Não há retorno. Apenas a morte.