Herdeiras da Sombra
O sorriso de Leila ia de uma ponta à outra de sua face. Os dentes brancos e bem cuidados brilhavam em reflexo à luz que perpassava a janela. O que dizer, então, do barulho suave das ondas que iam e vinham a todo instante, como uma orquestra infinita e melodiosa? E, para coroar sua satisfação, tinha diante de si o amado Carlos. Estava no melhor dos mundos!
Logo os seus lábios se comprimiram para um demorado beijo, os pelos da nuca se eriçando de tesão. Num aperto de leoa, agarrou o rosto do homem com tamanha volúpia que o assustou; mas ele pôs as mãos em seus braços delicadamente e disse:
– Vamos deixar para mais tarde, está bem? Hoje eu ainda preciso trabalhar…
– Ah, que isso… fica mais um pouco, fica.
– Não posso. Você sabe como são as coisas. Temos a semana toda pela frente, viu?
– Tá bom! – Ela respondeu com um tapinha no peito descoberto do amante, sorrindo maliciosamente com o canto da boca.
Era apenas a segunda manhã daquela viagem. E que viagem! Uma semana inteira num resort paradisíaco do litoral do Nordeste, tudo pago pelo Estado. Ah, as mordomias da alta burocracia!
Carlos deixou a moça esparramada na cama, recolheu suas roupas e vestiu-as. Queria tomar um café da manhã reforçado para a maratona de palestras do dia. Tanto ele quanto Leila estavam em um daqueles congressos enfadonhos sobre as últimas novidades do processo civil. O advogado, por conta própria. A funcionária pública, pelo Estado.
Ela não ligava para o que era discutido nas preleções – havia inventado uma desculpa de “aprimoramento profissional” para estar ali. Na prática, só queria as delícias: jantares nababescos, bebidas exóticas, quartos com vista para o mar, atenção, namoricos...
Enquanto ele se arrumava, Leila verificou o celular.
– O idiota do Erasmo está no hospital, sabia? Parece que deu um jeito de se envenenar com aqueles remédios... ou talvez alguém tenha dado um empurrãozinho...
– Você tem algo a ver com isso?
– E eu lá sou mulher de sujar as mãos? Só estou dizendo que as coisas acontecem... – Ela soltou uma sonora risada.
Ele retribuiu com um sorriso amarelo. Deixou-a com um selinho, abriu a porta da suíte e partiu para o restaurante. Leila, então, aproveitando sua solitude, decidiu tomar um bom e demorado banho de banheira para começar o dia. Antes que pudesse se despir, contudo, alguém bateu à porta. Revirando os olhos, ela foi até lá e abriu-a.
– Serviço de quarto! Gostaríamos de saber se a senhora gostaria de limpeza hoje…
– Não viu a tarja de “não perturbe”?! Ah, faça-me o favor!
– Senhora, acho que você esqueceu de colocá-la na porta.
Recobrando a consciência depois daquele rompante agressivo, Leila verificou que, realmente, não havia aviso.
– Ah, o Carlos deve ter esquecido…
A jararaca não havia reparado quem tinha diante de si: só agora, mais calma, pôde vislumbrar que era uma mulher nos seus trinta e cinco anos. A pele enrugada de sol era manchada como seu cabelo loiro, tingido em algum salão de quinta categoria. Não tinha atrativos – se havia, estavam escondidos debaixo do uniforme do hotel. Mas algo capturou a atenção da hóspede. Esta arqueou as sobrancelhas, encarando a outra, procurando entender o que ela tinha de tão… familiar? Não saberia dizer. Na verdade, parecia ser uma versão pobre de si mesma. Mirou o seu crachá: Laís.
– Não, hoje não vou precisar de limpeza, empregadinha. Tenha um bom dia! – E fechou a porta com uma careta, sem esperar resposta.
Leila não era conhecida pelos seus modos; mas, naquele momento, o gesto rude era devido ao medo. Uma sensação ruim sobreveio, como se a serviçal tivesse penetrado sua alma com seus olhos escuros, afora a estranha sensação de familiaridade. Aquilo foi realmente estranho. Ela rememorava algo que Leila não sabia explicar.
Dirigindo-se ao lavabo, abriu as torneiras da banheira. Os pensamentos jorraram como a água, infrenes. A sensação era a de que conhecia Laís de outro encontro. Ou será que esse encontro ainda não havia acontecido? Premonição? Déjà vu?
Até que emergiu uma lembrança que estava esquecida nos abismos de sua memória. Um fato ocorrido na infância que ela vagamente associou ao presente, talvez por envolver uma serviçal como Laís.
Sua família tinha uma empregada chamada Estela que cozinhava e limpava o apartamento em São Paulo, além de cuidar da criança Leila. Um dia, antes de ir para a escola, a menina encontrou-a chorando na cozinha. Muito apegada à mãe terceirizada e ainda inocente, indagou-a:
– Tela, por que está assim?
– Nada, minha filha. Vai passar.
A seguir, a mãe verdadeira invadiu o recinto bufando, a face corada de ódio.
– Quero você fora da minha casa, agora! Leila, fique longe dela!
– Por que, mamãe?
– Afaste-se logo!
Estela chorava abundantemente; contudo, após recolher suas coisas e dirigir-se à saída do apartamento, ela disse algo à patroa que Leila nunca compreendeu:
– Agora estamos ligadas pela eternidade! Meus frutos serão os seus daqui para frente.
Aquelas palavras enigmáticas se dissiparam na bruma do tempo, junto com a amargura da mãe, que foi transferida à filha. Esta nunca obteve respostas, e o marasmo da tristeza sublimou para os ares da indiferença.
A banheira já transbordava quando Leila voltou a si. A torrente de lembranças enfim chegara a termo, derramando dúvidas sobre a consciência da mulher. Sem encontrar nexo entre passado e presente, ela deu de ombros e entrou nas águas borbulhantes.
***
O crepúsculo descia ao mundo, tingindo as ondas de um tom púrpura que chamava a noite. Era essa a imagem que se via do salão de recepções do hotel, aberto para o cenário paradisíaco mais além.
Estava marcado um baile de confraternização, suntuoso e cheio de personalidades do estamento burocrático, conhecidos por uns poucos e desconhecidos da maioria: ministros, desembargadores, donos de bancas de advocacia, lobistas… a lista era enorme.
Leila pôs o melhor vestido para ir até lá, um daqueles que resplandeciam por causa das lantejoulas. Estava deslumbrante: as curvas delineadas pelo silicone, as feições tornadas jovens pela plástica. Mas, naquele baile de máscaras, ela se sobressaía e logo atraiu olhares para si. Carlos se antecipou:
– Está maravilhosa hoje… quero ver mais à noite! – Disse, enquanto se permitia a uma encoxada, escondido pelo buffet da festa.
– Cuidado, hein! – Ela sorriu, afastando a mão indelicada do amante, que voltou à sua mesa.
Enquanto se servia de quitutes, Lelia elevou os olhos para o outro lado do buffet e sobressaltou-se: lá estava Laís encarando-a. Os olhos fundos como dois abismos horripilantes, lançando suas profundidades sobre a outra.
“O que essa mulher quer comigo?!”, pensou Leila. Pretendia interpelá-la, mas se deteve ante aquele olhar, o qual a atravessava como uma lança. Ambas permaneceram numa visada hipnótica, duas felinas estudando uma à outra. A megera entrava naqueles olhos escuros, cada vez mais imersa num vazio inexplicável e, ao mesmo tempo, íntimo. Feito um espelho que refletia o nada de sua alma.
Na verdade, Leila não tinha mais certeza de quem ela observava, como se os seus olhos mirassem outrem, mas no fundo tivessem-na como único alvo. Os olhos são a porta da alma, já dizia o Evangelho. E ela imediatamente lembrou dessa passagem das aulas de catecismo de sua infância. Aquela pessoa tinha algo oculto que não sabia identificar.
Enfim, depois de minutos entorpecidos por essas elucubrações, Leila acordou do transe quando um terceiro veio até o buffet, e ela conseguiu desviar a mirada. Voltando a si, os olhos no chão, demorou voltar a sustentá-los. Quando o fez, percebeu que... Laís havia sumido!
Desnorteada, virou-se e disparou até a mesa onde Carlos estava. Com a vista inquisidora, ele a revistou de cima a baixo e disse:
– O que houve? Você está pálida…
– Nada, não.
Mas estava tudo errado.
Naquela noite, não houve mais festa, bebida e namoro. Leila despediu-se do amante, sob os protestos dele, e encaminhou-se para sua cama, onde teve um sono irrequieto.
***
O sol não apareceu naquela manhã. Tímido, ficou atrás da densa cortina de nuvens trevosas, indicativo da tempestade que provinha dos confins oceânicos, como uma mortalha sinistra que vinha cobrir as piscinas do paraíso. As rajadas atingiam as janelas da suíte feito pedregulhos, tamanha a força com que golpeavam a estrutura do resort.
Leila, enquanto isso, contorcia-se em meio aos lençóis, num abafamento que a deixou ensopada. A madrugada havia sido longa e pesarosa. De fato, o estranho acontecimento drenara suas energias, e ela não entendia o porquê. Estava tão bem! Sem mais nem menos, após a visitação daquela Laís, tudo desmoronou. Seu ânimo foi ao chão; a noite de desfile perdeu-se.
Com dificuldade, removeu os lençóis e pôs o chambre; as faixas arroxeadas ao redor dos olhos pareciam complementar o vestuário. Depois, direcionou-se até o lavabo e, quando chegou à pia, ficou como um poste, estática, a pele a suar frio. Não em virtude do cansaço, mas sim pelo objeto que estava por sobre a bancada: um bilhete.
Aproximando-se com cautela, pois não se lembrava de tê-lo visto antes, tomou-o com as mãos trêmulas, o coração disparando. Num suspiro de alívio, percebeu que era apenas o aviso do hotel sobre os horários da conferência.
Mas como ele foi parar ali? “Alguém invadiu o meu quarto!”, pensou ela.
Virando-o, Leila novamente sentiu uma palpitação no peito: havia um rabisco no verso. Em letras cursivas, numa estranha caligrafia, constava um endereço: Rua dos Anjos, nº 6, Vila Santa Maria.
Deixando o papelote em seu lugar e afastando as mãos hesitantes, ela se perdeu no pânico. O que estava acontecendo? Quem esteve ali durante a noite? Será que era aquela Laís de novo?
A torrente de pensamentos recomeçava. O bilhete havia sido um novo catalisador de seus medos mais íntimos. Estava sendo perseguida, perscrutada. Não tinha mais privacidade! Invadiram sua suíte durante a madrugada! Se isso ocorreu, poderiam fazer o que quisessem com ela! E que mensagem era aquela? Um convite, um chamado? Onde ficava aquele lugar? Que loucura!
Em meio à tormenta, sua memória restaurou fatos esquecidos, como um mecanismo de defesa contra invasores, e ela foi transportada de volta para a infância. Agora, para o dia seguinte à demissão de Estela.
– Chega! Eu não aguento mais… some da minha vida!
– Eu errei, eu sei... Desculpa!
– Não sei se posso te desculpar!
A menina Leila observava os pais pela fresta da porta. Discutiam acaloradamente, os dedos em riste. Mas quem tomava a dianteira da raiva era a sua mãe. As lágrimas derramavam-se, lágrimas de sangue, e ela batia no peito do marido com murros desesperados. O outro estava estático e cabisbaixo.
– Olha, então é melhor darmos um tempo. – As palavras do homem desceram como chuva de inverno. Enfim, deixou-a, a porta de saída sendo fechada num estrondo.
A mãe desabou no sofá da sala; chorava compulsivamente. Os soluços completavam a cena feito o tique-taque de um relógio de pêndulo, avisando o transcorrer da existência com precisão mecânica. Nesse momento, a criança deixou o esconderijo e pôs-se ao lado da genitora; os olhinhos estavam arregalados em dúvida. A mãe retribuiu com um leve sorriso, uma ilha que surgia em meio às lágrimas.
– Vai ficar tudo bem, querida…
Dessa época, Leila só se lembra que o pai sumiu. Foi encontrá-lo anos mais tarde, já no leito do hospital. Nunca soube o porquê do divórcio e, quando tocava no assunto com a mãe, ela se esquivava.
A dúvida da menina se perdeu pelas tortuosas veredas da vida, até que a reencontrou naquele quarto de hotel, por meio daqueles insólitos acontecimentos: Laís e o bilhete, os mensageiros que traziam de volta memórias ancestrais há muito deixadas nos recônditos de sua mente.
“Por que, Deus?! Por que isso? Justamente agora...”
Voltando a si, zonza e perdida, retornou ao quarto, tomou o telefone e discou o número da recepção.
– Tu… tu… tu… Recepção!
– Oi. Gostaria de informações sobre uma funcionária, uma camareira.
– O que houve? Alguma queixa?
– Sim, acho que ela invadiu meu quarto à noite.
– Pedimos desculpas pelo ocorrido. Você poderia me informar quem é a funcionária?
– Vi no crachá que ela se chama Laís.
– Laís? Não temos nenhuma Laís no hotel…
Leila mirou o nada e quase deixou o telefone escorregar pelas mãos.
– Senhora?
– Pode deixar.
Desligou. Ao mesmo tempo, tomou o celular e acionou o número de Carlos.
– Preciso de você aqui, agora!
– Leila... você está estranha desde ontem à noite. Está acontecendo alguma coisa?
– Vem pra cá agora!
Ela sequer esperou a resposta. Apertou o “desliga” e desmoronou na cama.
***
O Volvo rugia pelas estradas esburacadas do litoral, desviando das crateras e poças que apareciam. Mas esta era uma tarefa inglória: o breu noturno assomava-se melancólico pelas sendas cada vez piores, dificultando o manejo de Carlos, que ocasionalmente caía em algum desnível.
– Se der qualquer problema no carro, vou pagar uma fortuna para a firma!
Leila, no banco do carona, não respondeu. Seus olhos estavam vidrados na noite, como que perdidos em devaneios insondáveis.
– Você deveria ter esquecido essa estória com um bom vinho! – O sujeito continuava a resmungar, agora de um jeito mais ameno, pois a passageira mantinha-se irredutível.
Horas antes, Leila havia promovido um escarcéu em sua suíte. Recebera o amante aos berros, quando a chamara de louca por causa daquelas suspeitas. “É coisa de filme!”, ele dissera em vão. O que o tinha convencido foi a chantagem: a delação de suas atividades à esposa. Leila não se importava com o marido à beira da morte, mas Carlos temia a companheira, advogada como ele e traiçoeira como uma víbora. Ao final, cedera às vontades da outra, prometendo levá-la até o estranho endereço. Consultando o Google, viram que era uma alameda de uma vila de pescadores. E lá estavam eles, dirigindo-se à localidade, em total desconhecimento das circunstâncias.
A mulher pusera na cabeça que aquilo talvez fosse a resposta para as suas inquietações. Por que aquelas memórias ressurgiram depois de anos? Deveria haver alguma relação com Laís, que, assim suspeitava, estaria esperando por ela naquele fim de mundo.
– Olha, se alguém invadiu mesmo sua suíte e está te perseguindo, melhor deixar isso com a polícia...
– Carlos, cala a boca e dirige!
Ele não mais se opôs.
O veículo era como um grande chocalho brandido pelas sombras e assim se portou por cerca de uma hora, até que eles, finalmente, alcançaram a vila.
Era um amontoado de casinhas de taipa situadas numa rua empoeirada. O local sequer possuía energia elétrica – a luz provinha das estrelas de uma noite sem lua. Uma estranha calmaria após a tempestade precedente. Ao longe, ouviam-se as ondas rebatendo sobre a faixa de areia.
– Onde está o número seis?
Carlos diminuiu a velocidade e acionou os faróis altos. Os casebres passavam soturnos, como túmulos de um cemitério. Não se ouvia coisa alguma, até que alguém abriu uma janela para ver o clarão, feito um zumbi que se levanta de uma cova.
– Acha logo essa casa!
Na parca iluminação, mal conseguiam divisar os numerais das placas, nada mais que tocos de madeira riscados a facão. Um, dois, três, quatro, cinco… mas o seis não apareceu. A rua terminou.
– Onde fica essa merda?
– Leila, vamos voltar. Está perigoso.
– Espera um pouco! Olha isso ali!
A jararaca estremeceu. Ela viu que alguém se locomovia em direção ao veículo, vindo da lateral direita, um lugar onde não havia casas. Era uma silhueta mal iluminada pela abóbada celeste, esta que refulgia plácida dada a ausência de luz natural.
A silhueta aumentava, uma sombra sinistra que vinha decidida em direção a eles. Carlos, com uma gota de suor escorrendo pelas têmporas, já pensava em apertar o acelerador; mas a amante foi mais rápida e baixou o vidro do carro.
– Oi! Precisamos de ajuda para encontrar uma residência.
A pessoa respondeu sem deixar as sombras, uma voz feminina:
– Eu sei. Estava esperando por você. Venha comigo.
A treva falante mirava Leila e esta lhe retribuía o olhar. Com o tempo, sua vista se acostumou à noite estrelada, de modo que ela pode divisar contornos... humanos?
– Laís?
– Sou eu. Venha comigo! – Desta vez, a voz ressoou num tom quase imperativo.
– Leila, não faz besteira. – Carlos resmungou ao lado.
Mas ela não ouviu. Simplesmente pressionou o mecanismo de saída, abriu a porta do veículo e pôs os pés na estrada de areia.
– Vou te esperar aqui, O. K.? – O covarde disse, enquanto ela deixava-o em direção à treva.
A seguir, mesmo sem ter uma visão clara da outra, Leila a acompanhou por um caminho trespassado de mato, cactos e palmeiras. As plantas grosseiras do litoral intocado espetavam-lhe a pele esbelta, como facas cortando nacos de carne.
Após alguns minutos de caminhada, a vegetação escasseou e elas atingiram a praia. A fina camada de areia refletia o pálido brilho das estrelas, emprestando-lhe um aspecto fantasmagórico. O mar mais além se revelava feito um grande manto escuro salpicado de pontos brancos. Uns vinte metros à esquerda, Leila pôde divisar um pequeno monte sobre o qual jazia uma construção escura. Naquele breu, ela não soube identificar o que era, mas se assemelhava a mais uma daquelas casinhas de pau-a-pique. Laís direcionou-se para lá e ela seguiu.
Àquela altura, o andar de Leila era como de uma criança em suas primeiras andanças. Ela tremia e tropeçava. A compulsão por descobrir o significado daquilo tudo perdera a força e agora abria espaço para o medo puro e simples. “O que eu vim fazer aqui?”, pensou. Carlos estava certo: ela perdera a sanidade, estar ali com uma completa desconhecida no breu da noite.
Mas algo lhe dizia que era o certo a se fazer. Ela precisava entender!
Quando enfim chegaram ao monumento obscuro, Leila percebeu que aquela não era uma casinha como as outras. Estava abandonada, destruída. As paredes, carcomidas pelo tempo e pela maresia. O teto havia sido levado por alguma tempestade e, através das toras que antes haviam sustentado as telhas, via-se o tênue fulgor dos atros mais além.
– Que lugar é este? O que quer de mim?
Leila encarou a outra. Na verdade, agora percebia algo estranho naquela pessoa. Mesmo com a vista afeita à escuridão, ela não conseguia divisar a forma de Laís. Era como uma sombra ambulante.
– Quem é você?! – Crescia o tom.
– Você sabe quem eu sou. Sempre soube.
Leila balançou a cabeça, negando desesperadamente, até que a sombra projetou algo parecido com um membro. Apontava para um pedregulho que estava enterrado na areia, logo ao lado da construção.
– Jogue a luz do seu aparelho e veja.
A riquinha tateou os bolsos e retirou o celular. Ligou a lanterna. Imediatamente a direcionou para a pedra, tremendo ao iluminá-la e ver as inscrições gravadas: "Aqui jazem Estela e Laís". Era uma tumba.
Leila pôs as mãos na boca, cambaleando para trás, e gemeu:
– Meu Deus, o que é isso?!
Com a lanterna, tentou mirar a figura diante de si, mas a luz não atravessava o vulto. Era como um buraco no tecido do mundo. Uma sombra viva.
Aquela visão foi demais para Leila. Ela gritou e correu. Mas, antes que desse dez passos pela areia, a sombra estava diante de si novamente. E, do fundo daquele abismo, uma voz gutural proveio:
– Leila, sou sua irmã.
A outra recuou, horrorizada. Mesmo naquela penumbra, os olhos resplandeciam de tão abertos, como dois globos de vidro saltando das órbitas. As ondas negras vinham e tocavam-lhe os pés, feito cobras injetando veneno.
– Não pode ser... Isso é loucura! – Leila esganiçava. Era um arremedo de gente naquele ponto.
– Loucura? – A sombra riu, um som áspero e cavernoso. – Você também sente. Sempre sentiu.
– O que... que quer dizer com isso?
– Nossos caminhos se entrelaçaram. Você percebeu isso quando me viu.
– Sim, mas...
– A vida toda te procurei, mas num golpe de sorte você veio até mim, até o lugar onde minha mãe me matou e me aprisionou. Eu não vi a luz da vida, só a treva! E você faz parte disso...
– Co... como?
– Sou filha de Estela e de seu pai.
Como uma lâmpada subitamente acesa na escuridão, tudo agora fazia sentido. Leila aglutinava os cacos desconexos dos últimos dias, juntando-os para formar uma figura horrenda de seu passado. Estela tinha sido o pivô do divórcio de seus pais. Fruto da traição, Laís foi abortada.
– Meu Deus! Você... você então é filha de meu pai?
– Sim. Neste plano, somos meias-irmãs. No outro, porém, tanto eu quanto você somos ligadas pela mesma coisa.
– Como assim?
– Nós nascemos da treva da discórdia e fomos enredadas pela teia da desesperança. Agora, fazemos parte da trama da morte. Venha! Volte de onde saiu!
– Não!
– Você não é a primeira. Nem será a última. Ninguém pode fugir à própria natureza!
Leila tropeçou para trás, tentando se afastar da sombra que se aproximava. A voz da criatura Laís ecoava, mas agora parecia vir de todos os lados, misturada com o som do vento e das ondas.
– Não há para onde correr, Leila. Nós estamos ligadas. Sempre estivemos.
De repente, o ar ficou denso, como se o tempo tivesse parado. A sombra começou a mudar, suas extremidades se alongando e se retorcendo até formarem algo grotesco: longos membros finos, como patas de um aracnídeo. A figura se ergueu diante de Leila, uma criatura informe com o contorno de uma aranha gigantesca, feita da pura noite.
As "patas" da criatura se moveram lentamente, como que testando o chão, antes de avançarem até a Leila. Ela tentou gritar, mas o som morreu em sua garganta. Quando a primeira delas tocou seu ombro, uma sensação gélida percorreu todo o seu corpo.
A criatura não falou, mas, em seu silêncio, Leila sentiu uma mensagem clara: “Você é nossa”.
Com movimentos fluidos, a sombra em forma de aranha envolveu-a completamente. Apenas o som das ondas se fez ouvir, quebrando na praia como uma melodia fúnebre.
E então, havia apenas silêncio.