A verruga de Eleonora
A vida de Nádia tinha se transformado num verdadeiro inferno desde que Eleonora havia sido contratada. Sentada à sua frente como um espelho invertido, a mulher com seus óculos de aros de tartaruga, seus cabelos oleosos e escorridos divididos ao meio e cobertos de pontinhos brancos, com suas roupas de segunda mão e seu cheiro de naftalina, era uma ofensa ao seu senso de estética e à elegância do ambiente.
Desde o dia em que foram apresentadas, tinha se tornado impossível para Nádia concentrar-se em seu trabalho, condenada a olhar para aquela imagem que era exatamente o oposto da sua, mas naquela manhã, a bela secretária sentia-se especialmente incomodada com a presença de Eleonora. A pobre moça não conseguia desviar os olhos do pedaço de carne protuberante que saltava do queixo da colega de trabalho, uma pinta preta e coberta de pelos claros que parecia ter dobrado de tamanho da noite para o dia. Agora, as unhas longas com o esmalte vermelho descascado nas pontas arranhavam com violência a pele escura, um tique nervoso que tornava aquela mulher ainda mais repugnante.
Eleonora, ao notar o olhar da colega, respondeu com seu sorriso amarelo e patético, como se tivesse o pensamento absurdo de que Nádia nutria alguma simpatia por ela. A jovem conseguiu desviar os olhos por alguns segundos, mas a imagem não saia de sua mente. Estava obcecada por aquela verruga enorme e saliente que coroava a total falta de beleza de Eleonora, e quanto mais tentava tirar aquilo da cabeça, mais seus pensamentos eram tomados por ideias absurdas.
Sem conseguir afastar as imagens que invadiam sua imaginação, viu-se envolvendo o pequeno pedaço de carne macilenta com seus dentes muito brancos enquanto sua língua resvala nos pequenos pelos claros e eriçados que brotavam da pele de cor marrom desbotado, imaginou-se mordendo e arrancando a bola de carne que ao pousar em sua língua explodiu como jabuticaba madura em sua boca. Aquilo foi tão real que ela chegou a sentir o gosto amargo do líquido viscoso e aquele pensamento nauseabundo a fez salivar. Enjoada e percebendo que não controlaria a náusea, sem qualquer explicação levantou-se e correu em direção à toalete. Ajoelhada em frente ao sanitário, enquanto colocava para fora o croissant e o chocolate quente, sentiu uma mão áspera tocando seu ombro e, ao olhar para trás, deparou-se com a enorme verruga.
Preocupada ao ver Nádia sair da sala em tamanha descompostura, Eleonora seguiu em seu encalço para ver se a colega precisava de ajuda, ao chegar ao banheiro e perceber a condição deplorável da pobre Nádia que expelia o café da manhã tanto pela boca quanto pelo nariz, ajoelhou-se ao seu lado e segurou seus cabelos sussurrando palavras de apoio até que nada mais restasse nas entranhas de Nádia. Então, com seus braços fortes de mulher que pega no pesado, Eleonora ajudou a frágil Nádia a se levantar, colocou-a sentada sobre o sanitário e, com uma delicadeza que não combinava com seus dedos grossos e calejados, comum longo pedaço de papel higiênico, limpou o rosto de Nádia salpicado com os restos do café da manhã que haviam respingado na lousa do vaso e voltado em sua direção.
Nádia, que ainda estava bastante atordoada, permaneceu em silêncio enquanto aceitava aquele cuidado quase maternal, até que Eleonora se aproximou mais para poder verificar a temperatura de sua colega com o gesto universal de tocar a testa do doente com a costa das mães. Foi aí que tudo desandou, pois no momento em que Nádia se deparou com a verruga, objeto de seu mais profundo desejo, tão próxima de seus olhos e de sua boca, foi tomada por ímpeto incontrolável, um querer enlouquecido que a levou a cravar os dentes brancos no pedaço de carne que se soltou da pele de Eleonora fazendo sangue jorrar para todo lado.
Foi um pandemônio. Os gritos de Eleonora atraíram várias pessoas e quando o banheiro foi invadido todos ficaram estarrecidos ao se deparar com uma típica cena de filme de terror. De um lado Eleonora chorando com as mãos no queixo tentando parar o sangramento que mais parecia uma hemorragia, do outro a bela Nádia que, como disseram as testemunhas oculares, toda lambuzada de sangue e em transe mastigava algo como se saboreasse um delicioso manjar desfrutando do mais puro êxtase.
Nádia foi demitida por justa causa no mesmo dia.
Eleonora, por sua vez, recebeu uma gorda indenização de seus empregadores e com o valor da bolada pôde reconstruiu o estrago causado em seu rosto. Sem nenhum rancor e após alguns meses de terapia e acompanhamento psiquiátrico, Eleonora voltou satisfeita ao trabalho, pois graças a perícia do médico, foi possível recuperar a verruga em seu queixo, aquela marca de nascença de que ela tanto se orgulhava.
PS: Esse texto é uma repostagem, e apesar de não ser um "terror" no sentido mais literal do termo, é um texto de "estranhamento", estilo que eu considero bem interessante e que eu encaro como assustador. Espero que goste!!