O Vilarejo que Esquece

 

 

O motor do carro roncava baixo enquanto Eduardo estacionava na beira da estrada deserta. A noite era densa, como um cobertor pesado que abafava os sons ao redor. Na distância, luzes amareladas piscavam vagamente, marcando a entrada de um vilarejo que parecia ter sido esquecido pelo tempo.

 

"Colobraro", lia-se no letreiro enferrujado e inclinado, mal iluminado por um poste que parecia lutar para manter-se aceso. Eduardo observou o vilarejo por um momento, os dedos tamborilando no volante. O mapa no celular confirmava que ele estava no lugar certo, mas algo dentro de si resistia a sair do carro. Talvez fosse o cansaço da longa viagem, talvez o silêncio incomum daquele lugar.

 

Ele suspirou, desligou o motor e desceu.

 

As pedras soltas rangiam sob seus sapatos enquanto ele caminhava em direção às luzes. Colobraro era pequeno e pitoresco, com ruas de paralelepípedos que refletiam a luz fraca das lâmpadas antigas. As casas, com fachadas desgastadas e janelas de madeira fechadas, pareciam ter sido retiradas de uma pintura envelhecida. Era perfeito demais, como se alguém tivesse montado um cenário de vila tradicional... e esquecido de preenchê-lo com vida.

 

Havia uma quietude inquietante no ar, como se o vilarejo estivesse prendendo a respiração. Eduardo tentou afastar o pensamento enquanto seguia para o hotel local, um prédio modesto com uma placa enferrujada que dizia "Pousada Colobraro".

 

O sino na porta soou com um tilintar agudo ao ser empurrada. No balcão, uma mulher de rosto simpático e um sorriso brilhante o cumprimentou, mas seu olhar parecia fixo demais, quase... distante.

 

— Bem-vindo! — disse ela, com entusiasmo ensaiado. — Está de passagem?

 

Eduardo hesitou por um instante antes de responder.

 

— Sim. Preciso de um lugar para pernoitar.

 

— Claro, claro! — Ela girou sobre os calcanhares com uma agilidade que parecia robótica, retirando uma chave do painel atrás de si. — Número 7. É um bom quarto. Fique à vontade!

 

Ele pegou a chave, murmurando um agradecimento. A escada que subia para o andar superior era estreita e rangia sob seus passos, como se há muito não suportasse o peso de um visitante. O quarto, pequeno e austero, exalava um perfume de madeira antiga e velhas lembranças.

 

Enquanto Eduardo se deitava, o cansaço o envolvia, mas não trazia conforto. O silêncio do vilarejo não era acolhedor; era o tipo de silêncio que espreita, observa e espera. Seus olhos pesaram até se fechar, mas sua mente permaneceu alerta, presa a um desconforto que ele ainda não sabia nomear.

 

⛧⛧⛧

 

Ao descer para o café da manhã, Eduardo encontrou a mulher da recepção atrás do balcão, agora com um sorriso tão largo que parecia quase doloroso.

 

— Bom dia! Como posso ajudá-lo? — perguntou ela, como se fosse a primeira vez que o via.

 

Eduardo hesitou antes de responder, sentando-se em uma das mesas.


— Café, por favor. E... uma pergunta: você costuma dormir aqui também?

 

A mulher piscou, confusa, mas o sorriso permaneceu fixo.


— Dormir? Ah... não, eu... eu tenho uma casa. — Sua resposta parecia mecânica, como se fosse dita por obrigação, e não pela lógica da pergunta. — Mas que pergunta curiosa! Como foi sua noite?

 

Eduardo franziu a testa.


— Tranquila, eu acho. Ainda que... algo na atmosfera me deixe inquieto.

 

Ela inclinou a cabeça, como um pássaro estudando algo estranho.


— Que curioso... mas não se preocupe. Colobraro é sempre calmo, sempre tranquilo.

 

Havia algo no tom dela, uma entonação forçada, como se estivesse recitando uma frase que ouvira muitas vezes. Eduardo percebeu o detalhe: ela usara "sempre" duas vezes.


— Sempre? — ele perguntou, testando.

 

O sorriso dela tremeu por um breve instante antes de se fixar novamente.


— Sim... sempre.

 

O desconforto cresceu dentro dele. Eduardo sentiu que a mulher não estava mentindo, mas que também não dizia toda a verdade. A cena se tornou ainda mais estranha quando ela continuou.


— Espero que aproveite seu café. Ah, e lembre-se... — ela inclinou-se ligeiramente, abaixando a voz, mas mantendo o sorriso fixo. — O senhor é muito... sortudo.

 

— Sortudo? — Eduardo repetiu, confuso.

 

Ela piscou novamente, como se tivesse ido longe demais.


— Ah, claro, por estar aqui em uma época tão... boa.

 

Eduardo não insistiu, mas o arrepio em sua espinha permaneceu. Algo na forma como ela disse “boa” parecia mais uma advertência do que um desejo.

 

Ao deixar a pousada, ele optou por passear pela área.

 

Conversando com diversos moradores, percebeu rapidamente um padrão perturbador: todos eram amigáveis, mas de uma forma estranhamente desconectada da realidade. As perguntas que fazia eram simples, sobre o vilarejo, o cotidiano, o clima, mas as respostas que obtinha eram evasivas, mais parecendo relatos de histórias ouvidas do que experiências pessoais vivenciadas.

 

Eduardo avistou um homem idoso sentado em um banco de madeira, com um chapéu gasto cobrindo parte de seu rosto. Ao se aproximar, percebeu que o homem parecia entretido, murmurando algo para si, como uma canção sem melodia.

 

— Com licença, senhor — chamou Eduardo, educado.

 

O homem levantou o rosto lentamente, revelando olhos apagados, como se vissem, mas não registrassem.


— Pois não, rapaz?

 

— Que dia é hoje? — perguntou Eduardo, tentando soar casual.

 

O homem parou por um instante, franzindo a testa profundamente, como se a pergunta fosse um enigma complexo.


— Hoje... hoje... — Ele esfregou o queixo, pensativo. — Deve ser domingo, talvez?

 

Eduardo sentiu um frio percorrer a espinha.


— Domingo? Tem certeza?

 

O homem riu suavemente, mas não havia humor em seu riso.


— Quem sabe? O tempo aqui não importa muito. Sempre parece igual, não acha?

 

Eduardo consultou seu celular. Segunda-feira.

 

O homem o observou com um olhar vazio, antes de murmurar algo quase inaudível.


— Quando tudo se repete... dias, noites... quem se importa com o nome deles?

 

— Repete? — Eduardo perguntou, agora intrigado.

 

O idoso levantou o olhar para o céu, onde as nuvens pareciam estáticas.


— Nada muda aqui, rapaz. Nada nunca muda. — Ele riu novamente, mas dessa vez parecia um lamento. — Nem os forasteiros.

 

Eduardo engoliu em seco, mas antes que pudesse responder, o homem voltou a murmurar sua canção desconexa, ignorando completamente sua presença.

 

⛧⛧⛧

 

Naquela noite, o vilarejo parecia um vazio absoluto. A escuridão era tão densa que parecia sufocar. Eduardo espiava pela janela do quarto, inquieto, quando notou os primeiros movimentos: os moradores saindo de suas casas, um por um, em silêncio.

 

Eles caminhavam em direção à praça central. Seus passos eram lentos e deliberados, sincronizados como uma procissão sombria. Eduardo sentiu um calafrio ao perceber que nenhum deles carregava uma lanterna, e mesmo assim pareciam enxergar perfeitamente na penumbra.

 

Havia algo mais. Algo que ele quase não viu no início.

 

À primeira vista, pareciam apenas manchas escuras no chão, projetadas pelo brilho rarefeito da lua. Mas então ele percebeu que essas sombras não estavam alinhadas com os corpos. Elas se moviam... sozinhas.

 

Eduardo prendeu a respiração. As figuras eram amorfas, ondulando como fumaça presa em água. Por vezes, pareciam crescer e se contorcer, quase tangíveis, antes de encolherem novamente em formas disformes e inquietantes.

 

Ele desceu as escadas da pousada, o coração martelando no peito. Cada passo parecia ecoar em sua mente como um tambor. No saguão, tudo estava vazio.

 

Na rua, o ar parecia mais frio do que antes, cortante e pesado. Eduardo manteve-se nas sombras das casas, seguindo a multidão à distância. O vilarejo estava mortalmente silencioso, exceto pelo som abafado dos passos. Mas havia outro som agora, algo no limite de sua audição. Um murmúrio baixo, como centenas de vozes sussurrando ao mesmo tempo, mas indistintas, inalcançáveis.

 

Quando Eduardo chegou à praça central, a visão que encontrou o fez vacilar.

 

Os moradores estavam reunidos em um círculo perfeito, com as sombras dançando ao redor deles. Não, não apenas ao redor. As sombras estavam interagindo com eles. Flutuavam sobre seus corpos, tocando seus rostos, como se examinassem algo profundamente íntimo.

 

Eduardo sentiu náuseas quando percebeu que as sombras não eram incorpóreas. Cada uma parecia pulsar com uma substância densa, quase viva, que emitia um brilho sutil, como carvão incandescente prestes a apagar.

 

E então aconteceu.

 

As sombras começaram a entrar nos moradores.

 

Uma por uma, as figuras escuras atravessavam os corpos imóveis, que tremiam levemente ao contato. O processo era lento e metódico. Os moradores não resistiam. Não se moviam. Mas Eduardo podia ver, mesmo à distância, a mudança em seus rostos. Suas expressões, inicialmente vazias, passaram a exibir terror por um breve instante, como se uma memória profunda e horrível fosse arrancada à força.

 

Eduardo cambaleou para trás, tentando afastar o terror crescente.

 

“Estão roubando algo deles...”

 

A ideia atingiu sua mente com a força de um relâmpago. Ele não sabia como sabia, mas era uma certeza: as sombras estavam extraindo algo vital. Memórias, talvez? Ou algo ainda mais profundo?

 

Subitamente, um morador, uma mulher com cabelos grisalhos, ergueu a cabeça. Seus olhos encontraram os de Eduardo, e ela abriu a boca como se fosse gritar, mas nenhum som saiu. Em vez disso, uma das sombras se virou em sua direção, como se tivesse sido alertada.

 

Eduardo congelou.

 

Àquelas coisas começaram a flutuar em sua direção, lentamente no início, mas com uma deliberada intenção predatória. Eduardo não conseguia se mover. O ar parecia denso, pesado, como se ele estivesse tentando correr contra uma correnteza invisível. Cada movimento era difícil, como se algo o puxasse para trás, seus pés firmemente presos no chão, enquanto as criaturas se aproximavam com uma calma assustadora. Ele não conseguia respirar, o ar estava sendo sugado de seus pulmões.

 

“Corra.”

 

O instinto finalmente o arrancou do transe. Ele girou sobre os calcanhares e disparou pelas ruas estreitas, o som abafado de seus passos ecoando entre as paredes de pedra. Atrás dele, o murmúrio das sombras crescia, um som ancestral e distorcido, como dezenas de vozes entrelaçadas.

 

Seu coração batia tão forte que parecia querer escapar de seu peito. O vilarejo, que antes parecia pequeno e tranquilo, agora se tornava um labirinto opressivo. Eduardo virava esquinas às cegas, tropeçando nas pedras irregulares enquanto o frio sobrenatural das criaturas se aproximava.

 

“Não vou conseguir… elas estão perto demais!”

 

A mente de Eduardo era um turbilhão de pensamentos caóticos, misturados ao medo visceral de ser alcançado. Ele olhou por cima do ombro e viu a escuridão ondulante, fluida, avançando como uma maré viva. E no centro de tudo, rostos... rostos vagos e distorcidos, se formando e se apagando nas sombras, como se fossem fragmentos das almas que haviam devorado.

 

Ele alcançou a praça central. O carro estava perto. Apenas mais alguns metros.

 

As sombras sussurravam em uníssono agora, e Eduardo percebeu que conseguia entender parte do que diziam.

 

“Venha conosco... esquecimento... alívio... venha...”

 

Eduardo balançou a cabeça com força, tentando afastar a sedução hipnótica daquela voz. Ele não podia parar. Ele tinha que sair dali.

 

Quando finalmente alcançou o carro, seus dedos tremiam tanto que quase deixou as chaves caírem. Por um momento, sentiu que as criaturas o tocavam, uma sensação gelada e opressiva em sua nuca, como se sugassem algo invisível de sua mente.

 

“Não!”

 

Ele girou a chave na ignição. O motor roncou, e Eduardo acelerou, derrapando nas pedras soltas antes de entrar na estrada sinuosa que levava para fora do vilarejo.

 

O medo queimava dentro dele, mas Eduardo não conseguia afastar a sensação de que algo o acompanhava. Ele arriscou um olhar pelo retrovisor. As luzes do vilarejo desapareciam à distância, mas a escuridão parecia mais densa ao seu redor, como se as sombras tivessem se agarrado a ele.

 

Eduardo balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos, mas o zumbido persistente das vozes ecoava em sua mente, fraco, mas presente.

 

"Não pode ser real... Não pode ser real..."

 

Mas então, algo chamou sua atenção. Um pequeno ponto no para-brisa.

 

Era uma marca. Pequena, escura, como uma mancha de fuligem. Eduardo passou a mão freneticamente, tentando limpá-la, mas ela não desaparecia. Na verdade, ao olhar mais de perto, percebeu que a mancha pulsava levemente, como se tivesse vida própria.

 

O pânico tomou conta de Eduardo. Ele tentou ignorar, mantendo os olhos na estrada, mas a marca parecia crescer no canto de sua visão. Sempre que ele desviava o olhar, percebia um movimento no canto do olho, como se o mundo ao seu redor estivesse se desmanchando.

 

E então, ele ouviu mais uma vez.

 

"Você pertence a nós agora..."

 

Eduardo freou bruscamente, saindo da estrada com um solavanco. Sua respiração estava descontrolada, sua visão turva. Ele olhou para suas mãos no volante e percebeu que algo estava errado. A pele, antes pálida, agora tinha um tom enegrecido, como se estivesse sendo invadida pela mesma mancha que via no para-brisa.

 

"Não... isso não pode estar acontecendo..."

 

⛧⛧⛧

 

Na manhã seguinte, o vilarejo de Colobraro acordou, tranquilo e pacífico, como sempre. Os moradores seguiam suas rotinas habituais, com sorrisos mornos e olhares vagos. Nenhum deles se lembrava de nada.

 

Nem do homem que havia chegado na noite anterior.

 

Na pousada, a recepcionista reorganizava o painel de chaves, assobiando baixinho. No número 7, o quarto estava vazio, arrumado e impessoal, como se nunca tivesse sido ocupado.

 

Mas havia algo diferente naquele dia.

 

Na fronteira do vilarejo, onde a estrada se desfazia em uma ampla planície de pedras partidas, uma sombra jazia imóvel. Carecia de forma concreta, mas vibrava suavemente, como em expectativa. E quem ousasse olhar de perto veria ali um rosto despedaçado e perdido, como uma lembrança abandonada...

 

 

 

Fim

Frater Mandrake
Enviado por Frater Mandrake em 14/12/2024
Código do texto: T8219087
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.